Minha Irmã Amada,
Ontem à noite saí para
jantar com companheiros de peregrinação e cheguei muito tarde e cansada demais
para escrever. Mas vamos lá, colocar o acontecido em dia.
Começo por dizer que o
dia de ontem foi emocionante. Acordei por volta das sete da manhã. Na
realidade, nos albergues ao longo do Caminho é praticamente impossível dormir
até mais tarde. Primeiro porque a gente dorme em quartos coletivos, e sete
horas no máximo já tá todo mundo se movimentando. Depois, porque normalmente os
albergues também pedem que os peregrinos saiam cedo, de modo que possam
preparar os quartos para quem vai chegando. O café da manhã, quando há, costuma
ir até oito, oito e meia. Bom, acordei, preparei meu café na cozinha do
Albergue Saint Nicolás (que eu adorei!), me alonguei e saí antes de Norma e
Tom, que têm um processo lento de organização pelas manhãs. Ficamos de nos
reencontrar na principal pousada de Pamplona. Saí de Larrasoaña com o dia
raiando e uma bela revoada de andorinhas anunciando boas surpresas.
Atravessei a graciosa
pontezinha medieval e segui por uma estradinha ladeada por uma vegetação de
arbustos um tanto altos. Aqui e acolá algumas árvores esguias, que imaginei
serem da família dos cipestres. Logo comecei a escutar um barulhinho bom de
água correndo. Era um rio de águas verdes, que corre por boa parte do caminho
entre Larrasoaña e Pamplona. Aos poucos, a vegetação foi ficando mais cerrada,
até que passei a caminhar num bosque. Sempre com o rio correndo do meu lado
direito. Como caminhar ao lado de um rio é algo especialmente prazeroso! Acho
que a água acalma, emana uma energia suave e alegre ao mesmo tempo. Coincidência
ou não, ontem escutei tantos pássaros enquanto caminhava...
Cerca de três
quilômetros depois de Larrasoaña tem um comedor
muito simpático, onde vários peregrinos tomam café da manhã. Chama-se La Parada de Zuriain. Inácio, que havia
sido mais cedo que eu, disse que nos esperaria lá. Porém, não o encontrei.
Imagino que ele se impacientou e seguiu adiante, porque realmente demoramos
muito a nos preparar pela manhã. Mais alguns quilômetros a frente tem um outro
lugarzinho simpático para comer, El Horno
de Irotz. Como eu havia comido antes de partir, continuei meu caminho.
Estava contente de caminhar um pouco sozinha (ainda que sempre me certificando
de que tivesse gente ao alcance da minha vista), porque daí você pode rezar,
meditar, conversar com seus botões. Foi o que fiz ao longo da manhã. E estava
nessa conversa comigo mesma quando cheguei a uma “esquina”, em um povoadozinho
chamado Zabaldika. Placas indicavam duas possibilidades de seguir o Caminho.
Uma delas seguia por um alto, e a indicação mencionava uma Igrejinha do século
XIII, aberta aos peregrinos. Como adoro uma antiguidade, peguei o caminho mais
difícil, ou seja, a subida do monte.
Cheguei à Igreja de
São Estêvão meio sem fôlego. Mas valeu demais o esforço! A Igrejinha é a coisa
mais preciosa. Só havia dois peregrinos, pai e filha. Seguindo o exemplo deles,
pus minha mochila no chão, à porta da Igreja, e estava me preparando para entrar quando uma
senhorinha veio até mim e perguntou de onde eu era. Diante da minha resposta,
foi buscar dois papéis em português, um sobre a Igreja e outro com As Bem-aventuranças do Peregrino. Ainda sentada
do lado de fora, no átrio, li essa Oração e comecei a chorar de emoção. E
enquanto estive na Igreja, não consegui parar as lágrimas. Foi a primeira forte
emoção que senti no Caminho. À entrada da Igreja tem um crucifixo enorme e, por
incrível que pareça, belo, sem a morbidez que é tão frequente nas imagens
medievais. Em volta dele os peregrinos colam setinhas de papel com mensagens e
pedidos. Claro que escrevi minha mensagem e deixei lá coladinha. No altar, um
retábulo que vai até quase o teto, com umas quinze imagens de santos, e um
crucifixo no ponto mais alto. Subi a torre da Igrejinha para ver e tocar um
sino que data de 1377 e tem um som muito belo. Quando desci da torre, já havia
vários peregrinos visitando a Igreja, e a senhorinha andava ocupadíssima (e
nitidamente feliz), acolhendo todo mundo e distribuindo papéis em várias
línguas. Ela faz parte de um grupo de voluntárias, que cuidam da Igreja e se encarregam
de mantê-la aberta, para receber os peregrinos. Achei isso tão bonito!
Ainda estava
emocionada quando deixei a Igreja. O caminho segue, então, pelas encostas de
montes com uma vegetação de arbustos meio secos. Pela primeira vez me deparei
com uma paisagem mais árida e pedregosa, ainda que florestas de pinheiros
estejam sempre à vista. Esse trecho do Caminho não tem muito charme. Além da
aridez, uma estrada movimentada corre paralela. A certa altura, a gente sente que
está se aproximando de um ambiente propriamente urbano. Comecei a cruzar com
locais, gente fazendo jogging, passeando com os filhos, ou com os cachorros,
outros andando de bicicleta. O Caminho, na verdade, faz uma interseção com uma
espécie de parque natural, com trilhas em meio aos montes e bosques. Mais um
pouco de caminhada e chegamos a uma bela ponte de pedra, com uns cinco ou seis
arcos. É a cidade ou povoado de Villava. Do outro lado da ponte, tem um Mosteiro
com uma Igreja da Santíssima Trindade. No nicho central do grande retábulo do
altar, Deus Pai e Jesus sentados, com o Espírito Santo por detrás deles. Acho
que essa é uma imagem rara. E, em todo caso, a dessa Igreja é belíssima. Após
visitar a Igreja, rezar e carimbar meu passaporte de peregrina, me sentei num
banquinho à beira do rio e comi um sanduíche, pois estava faminta.
Depois de matar a
fome, segui andando pela rua principal de Villava, com casarões compridos,
estreitos e coloridos, de ambos os lados. Bandeiras bascas pendiam de algumas
varandas. Pela primeira vez desde que comecei o Caminho, cruzei um centro
urbano cheio de vida. Com gente andando pelas ruas, pessoas sentadas a mesa de bares e
cafés. Aglomerados de gente na porta de uma grande Igreja, com todo jeito de
estarem saindo da missa (a Igreja era moderna, por isso, nem entrei). Parei
numa confeitaria, tomei um chá e comi um doce típico (coronilla), que na verdade não era nada além de uma massa de
croissant com recheio de creme. Logo a gente sai dessa parte mais histórica e
charmosa e passa a caminhar por amplas avenidas, onde passam ônibus. O Caminho
segue literalmente pelo meio de um moderno centro urbano. As indicações para os
peregrinos estão pintadas no chão. Ao passar por uma outra confeitaria, vi
Norma e Tom, que estavam fazendo uma pausa para o lanche. Voltamos a caminhar
juntos. Já estávamos em outro município, e bem pertinho de Pamplona. Havia
faixas e pichações de afirmação da identidade basca.
Nas proximidades de Pamplona,
caminhamos por uma rua com prédios antigos, mas muito degradados. Roupas pendiam
das janelas. Notava-se claramente que era uma vizinhança pobre. Um jovem tocava
guitarra espanhola sentado numa soleira de um prédio quase abandonado. Ao final dessa rua, chegamos a um belo
gramado, e mais adiante, vimos a ponte de Santa Madalena, que leva diretamente
à entrada da Cidade Antiga. Há um parque belíssimo nesse entorno, com muitas árvores
e belos gramados. Avistamos a muralha da velha Pamplona. Atravessamos a rua,
cruzamos o grande pórtico e começamos a subir a ladeira que leva ao centro
Antigo. Nesse trajeto, encontramos um brasileiro com quem Norma e Tom já haviam
cruzado. Laércio é catarinense. Está caminhando na companhia de um médico
americano que mora no Havaí. Cruzamos um segundo portal, e Laércio chamou minha
atenção para as machas de tinta vermelha sobre as armas da Coroa espanhola. Protesto
dos bascos. Estamos no Reino de Navarra, como advertem algumas sinalizações.
Em Pamplona, por todos os lados se vê e se sente essa forte afirmação da
identidade basca, contra Castilla. Quase tudo está escrito em castellano e em
basco e há pichações e cartazes só em basco, que, como eu já te disse, é uma
língua curiosíssima!
Bom, Pamplona é uma cidade
absolutamente encantadora. O que eles chamam de Casco Antiguo é um conjunto de
ruas estreitas, povoadas de Igrejas e de um casario semelhante ao de Villava:
sobrados altos estreitos, coloridos e com charmosos abalcoados. Uma
preciosidade. Há um albergue principal para peregrinos, mas tínhamos a
informação de que os quartos são muito cheios e imprensados, por isso, eu e
Norma saímos rodando atrás de uma hospedagem um pouco mais confortável. Após
muito andarmos, localizamos uma pensão familiar e nos instalamos por lá. O
dono, Felix, é uma gracinha de pessoa, mas a pensão é velha e meio precária. Após
tomarmos banho, fomos à missa numa das várias Igrejas perto da pensão. A Igreja
de São Lourenço é suntuosa, mas o que realmente me emocionou na missa foi um
grupo de músicos que toca música religiosa com instrumentos e ritmos típicos de
Navarra. A coisa mais linda. E eles tocaram A
Barca e aquela música que sempre se cantava no Santa Maria: Ó vem conosco, vem caminhar... Fiquei
emocionadíssima. Durante a missa, agradeci muito a Deus por esses primeiros
dias de caminhada.
Como decidimos ficar
duas noites em Pamplona, após a missa fomos fazer reserva num albergue novo,
que estava cheio ontem, mas tinha lugar para o dia seguinte. Nesse albergue,
reencontramos o pai e filho israelenses, Ram e Ionathan. Acabou que fomos todos
jantar juntos. Comemos num lugar tipicamente navarrense (se você chamar um
basco de espanhol, pode arrumar um inimigo), com patas de presunto penduradas
no teto), bem gostoso, indicado por umas senhorinhas que encontramos na rua.
Aliás, devo registrar que as pessoas aqui em Navarra são de uma amabilidade
incrível. O perigo é você pedir uma informação e ter de passar meia hora
conversando. Enfim, jantamos super bem. Ram e Ionathan são muito gente boa, e
me convidaram para visitá-los em Israel. O pai é médico, e o filho está se
preparando para entrar na Universidade.
É tão interessante
como a gente faz conexões profundas tão rapidamente, no Caminho. Norma sempre
me fala de um livro de um padre que diz que mesmo que você queira caminhar
sozinho, o Caminho vai acabar lhe dando uma família. Talvez isso aconteça
porque as pessoas estão mais abertas umas às outras. Em todo caso, é muito bonito.
Já encontrei várias pessoas que estão com outras há apenas um ou dois dias,
porque começaram a caminhar juntas, em algum momento. E você as vê juntas e
pensa que são amigos de uma vida. Parece
que o Caminho ensina as pessoas a deixarem a autossuficiência de lado, e a
serem solidárias e acolhedoras.
Apesar da pensão não
ser grandes coisas, dormi bem (num quarto com Norma e Tom). Acordamos um pouco
mais tarde, tomamos café numa confeitaria muito boa, perto da pensão,
recolhemos nossas coisas e nos mudamos para o albergue. Natália, a dona do
albergue, é uma figura. Conversadora que só ela. Nos demos super bem. O
albergue é novo em folha, com exceção das duas charmosas mesas da copa, feitas
de madeira de demolição: duas portas com quatrocentos anos de idade! Isso dito,
devo registrar que todo albergue tem a simplicidade por princípio. Dorme-se num
espaço com várias pessoas, o banheiro é compartilhado, não tem lençol, nem
toalha. O peregrino tem de andar prevenido. Toalha, lençol e saco de dormir são
essenciais. Só que eu estava carregando um saco de dormir pesadíssimo. Hoje fui
ao Corte Inglés e comprei um saco de dormir efetivamente adequado ao Caminho, o
que significa basicamente: LEVE. Mais um exercício de desapego, pois meu saco
de dormir confortabilíssimo e novinho em folha, que venho carregado desde os
Estados Unidos vai ter de ficar por aqui. Paciência. Vou doar pra Igreja.
Para encerrar esse
longuíssimo relato, lhe digo, Minha Irmã, que valeu demais ficar um dia a mais
em Pamplona, tanto para descansar um pouco o corpo, como para conhecer melhor a
cidade. Eu e Norma preparamos nosso almoço no albergue (fiz pasta com molho de cogumelos e ela fez uma deliciosa salada). Depois, passeamos pelas muralhas e visitamos a Catedral de Nossa Senhora de
Pamplona, uma construção gótica deslumbrante. A fachada foi modificada no
século XVIII, parece (um crime de lesa humanidade!), mas o interior está
inteiramente preservado. Além do que normalmente nos impressiona numa Catedral
gótica (naves enormes, ogivas, teto altíssimos, vitrais...), os retábulos e
altares laterais são absolutamente lindos. Várias peças dos séculos XIII e XIV.
Muito ouro e prata. E o museu diocesano, nos claustros da Igreja, também é
belo. Além das peças preciosas, a concepção museológica é muito interessante,
porque “fala” com o público contemporâneo. É a primeira vez que vejo um museu
sacro com uma concepção contemporânea. Adorei.
De resto, Pamplona é o
que descrevi acima. Uma cidade medieval cheia de charme e de caráter. Não é a
toa que Hemingway gostava tanto daqui. Aliás, para fechar o dia, eu, Norma e Tom
fizemos um lanche no Café Iruña, um dos lugares favoritos de Hemingway. É um
desses cafés ou confeitarias típicos da virada do século XIX para o XX. Muitos
espelhos e lustres. Foi um fim de dia muito agradável. Agora, todos dormem no
albergue, menos eu, rs, rs, rs. Estava aqui escrevendo, tomando chá e comendo
uma torta típica de Navarra, cujo nome é impronunciável. Amanhã será um dia
duro de caminhada, 24 kms, com subida pesada. Só espero que não chova.
É isso. Fica com Deus,
Niquinha! Manda dizer pra todo mundo que estou com muitas saudades. E que
quanto mais ando pelo mundo, quanto mais belezas e maravilhas vejo, mais aumenta
em mim a certeza de que meu lugar é no Brasil, ou no meu quarto, no Recife.
Beijos mil,
Léia
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