segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 5


14/09/15

Minha Irmã Amada,

Ontem à noite saí para jantar com companheiros de peregrinação e cheguei muito tarde e cansada demais para escrever. Mas vamos lá, colocar o acontecido em dia.
Começo por dizer que o dia de ontem foi emocionante. Acordei por volta das sete da manhã. Na realidade, nos albergues ao longo do Caminho é praticamente impossível dormir até mais tarde. Primeiro porque a gente dorme em quartos coletivos, e sete horas no máximo já tá todo mundo se movimentando. Depois, porque normalmente os albergues também pedem que os peregrinos saiam cedo, de modo que possam preparar os quartos para quem vai chegando. O café da manhã, quando há, costuma ir até oito, oito e meia. Bom, acordei, preparei meu café na cozinha do Albergue Saint Nicolás (que eu adorei!), me alonguei e saí antes de Norma e Tom, que têm um processo lento de organização pelas manhãs. Ficamos de nos reencontrar na principal pousada de Pamplona. Saí de Larrasoaña com o dia raiando e uma bela revoada de andorinhas anunciando boas surpresas.
Atravessei a graciosa pontezinha medieval e segui por uma estradinha ladeada por uma vegetação de arbustos um tanto altos. Aqui e acolá algumas árvores esguias, que imaginei serem da família dos cipestres. Logo comecei a escutar um barulhinho bom de água correndo. Era um rio de águas verdes, que corre por boa parte do caminho entre Larrasoaña e Pamplona. Aos poucos, a vegetação foi ficando mais cerrada, até que passei a caminhar num bosque. Sempre com o rio correndo do meu lado direito. Como caminhar ao lado de um rio é algo especialmente prazeroso! Acho que a água acalma, emana uma energia suave e alegre ao mesmo tempo. Coincidência ou não, ontem escutei tantos pássaros enquanto caminhava...
Cerca de três quilômetros depois de Larrasoaña tem um comedor muito simpático, onde vários peregrinos tomam café da manhã. Chama-se La Parada de Zuriain. Inácio, que havia sido mais cedo que eu, disse que nos esperaria lá. Porém, não o encontrei. Imagino que ele se impacientou e seguiu adiante, porque realmente demoramos muito a nos preparar pela manhã. Mais alguns quilômetros a frente tem um outro lugarzinho simpático para comer, El Horno de Irotz. Como eu havia comido antes de partir, continuei meu caminho. Estava contente de caminhar um pouco sozinha (ainda que sempre me certificando de que tivesse gente ao alcance da minha vista), porque daí você pode rezar, meditar, conversar com seus botões. Foi o que fiz ao longo da manhã. E estava nessa conversa comigo mesma quando cheguei a uma “esquina”, em um povoadozinho chamado Zabaldika. Placas indicavam duas possibilidades de seguir o Caminho. Uma delas seguia por um alto, e a indicação mencionava uma Igrejinha do século XIII, aberta aos peregrinos. Como adoro uma antiguidade, peguei o caminho mais difícil, ou seja, a subida do monte.
Cheguei à Igreja de São Estêvão meio sem fôlego. Mas valeu demais o esforço! A Igrejinha é a coisa mais preciosa. Só havia dois peregrinos, pai e filha. Seguindo o exemplo deles, pus minha mochila no chão, à porta da Igreja, e estava me preparando para entrar quando uma senhorinha veio até mim e perguntou de onde eu era. Diante da minha resposta, foi buscar dois papéis em português, um sobre a Igreja e outro com As Bem-aventuranças do Peregrino. Ainda sentada do lado de fora, no átrio, li essa Oração e comecei a chorar de emoção. E enquanto estive na Igreja, não consegui parar as lágrimas. Foi a primeira forte emoção que senti no Caminho. À entrada da Igreja tem um crucifixo enorme e, por incrível que pareça, belo, sem a morbidez que é tão frequente nas imagens medievais. Em volta dele os peregrinos colam setinhas de papel com mensagens e pedidos. Claro que escrevi minha mensagem e deixei lá coladinha. No altar, um retábulo que vai até quase o teto, com umas quinze imagens de santos, e um crucifixo no ponto mais alto. Subi a torre da Igrejinha para ver e tocar um sino que data de 1377 e tem um som muito belo. Quando desci da torre, já havia vários peregrinos visitando a Igreja, e a senhorinha andava ocupadíssima (e nitidamente feliz), acolhendo todo mundo e distribuindo papéis em várias línguas. Ela faz parte de um grupo de voluntárias, que cuidam da Igreja e se encarregam de mantê-la aberta, para receber os peregrinos. Achei isso tão bonito!
Ainda estava emocionada quando deixei a Igreja. O caminho segue, então, pelas encostas de montes com uma vegetação de arbustos meio secos. Pela primeira vez me deparei com uma paisagem mais árida e pedregosa, ainda que florestas de pinheiros estejam sempre à vista. Esse trecho do Caminho não tem muito charme. Além da aridez, uma estrada movimentada corre paralela. A certa altura, a gente sente que está se aproximando de um ambiente propriamente urbano. Comecei a cruzar com locais, gente fazendo jogging, passeando com os filhos, ou com os cachorros, outros andando de bicicleta. O Caminho, na verdade, faz uma interseção com uma espécie de parque natural, com trilhas em meio aos montes e bosques. Mais um pouco de caminhada e chegamos a uma bela ponte de pedra, com uns cinco ou seis arcos. É a cidade ou povoado de Villava. Do outro lado da ponte, tem um Mosteiro com uma Igreja da Santíssima Trindade. No nicho central do grande retábulo do altar, Deus Pai e Jesus sentados, com o Espírito Santo por detrás deles. Acho que essa é uma imagem rara. E, em todo caso, a dessa Igreja é belíssima. Após visitar a Igreja, rezar e carimbar meu passaporte de peregrina, me sentei num banquinho à beira do rio e comi um sanduíche, pois estava faminta.
Depois de matar a fome, segui andando pela rua principal de Villava, com casarões compridos, estreitos e coloridos, de ambos os lados. Bandeiras bascas pendiam de algumas varandas. Pela primeira vez desde que comecei o Caminho, cruzei um centro urbano cheio de vida. Com gente andando pelas ruas, pessoas sentadas a mesa de bares e cafés. Aglomerados de gente na porta de uma grande Igreja, com todo jeito de estarem saindo da missa (a Igreja era moderna, por isso, nem entrei). Parei numa confeitaria, tomei um chá e comi um doce típico (coronilla), que na verdade não era nada além de uma massa de croissant com recheio de creme. Logo a gente sai dessa parte mais histórica e charmosa e passa a caminhar por amplas avenidas, onde passam ônibus. O Caminho segue literalmente pelo meio de um moderno centro urbano. As indicações para os peregrinos estão pintadas no chão. Ao passar por uma outra confeitaria, vi Norma e Tom, que estavam fazendo uma pausa para o lanche. Voltamos a caminhar juntos. Já estávamos em outro município, e bem pertinho de Pamplona. Havia faixas e pichações de afirmação da identidade basca.
Nas proximidades de Pamplona, caminhamos por uma rua com prédios antigos, mas muito degradados. Roupas pendiam das janelas. Notava-se claramente que era uma vizinhança pobre. Um jovem tocava guitarra espanhola sentado numa soleira de um prédio quase abandonado.  Ao final dessa rua, chegamos a um belo gramado, e mais adiante, vimos a ponte de Santa Madalena, que leva diretamente à entrada da Cidade Antiga. Há um parque belíssimo nesse entorno, com muitas árvores e belos gramados. Avistamos a muralha da velha Pamplona. Atravessamos a rua, cruzamos o grande pórtico e começamos a subir a ladeira que leva ao centro Antigo. Nesse trajeto, encontramos um brasileiro com quem Norma e Tom já haviam cruzado. Laércio é catarinense. Está caminhando na companhia de um médico americano que mora no Havaí. Cruzamos um segundo portal, e Laércio chamou minha atenção para as machas de tinta vermelha sobre as armas da Coroa espanhola. Protesto dos bascos. Estamos no Reino de Navarra, como advertem algumas sinalizações. Em Pamplona, por todos os lados se vê e se sente essa forte afirmação da identidade basca, contra Castilla. Quase tudo está escrito em castellano e em basco e há pichações e cartazes só em basco, que, como eu já te disse, é uma língua curiosíssima!
Bom, Pamplona é uma cidade absolutamente encantadora. O que eles chamam de Casco Antiguo é um conjunto de ruas estreitas, povoadas de Igrejas e de um casario semelhante ao de Villava: sobrados altos estreitos, coloridos e com charmosos abalcoados. Uma preciosidade. Há um albergue principal para peregrinos, mas tínhamos a informação de que os quartos são muito cheios e imprensados, por isso, eu e Norma saímos rodando atrás de uma hospedagem um pouco mais confortável. Após muito andarmos, localizamos uma pensão familiar e nos instalamos por lá. O dono, Felix, é uma gracinha de pessoa, mas a pensão é velha e meio precária. Após tomarmos banho, fomos à missa numa das várias Igrejas perto da pensão. A Igreja de São Lourenço é suntuosa, mas o que realmente me emocionou na missa foi um grupo de músicos que toca música religiosa com instrumentos e ritmos típicos de Navarra. A coisa mais linda. E eles tocaram A Barca e aquela música que sempre se cantava no Santa Maria: Ó vem conosco, vem caminhar... Fiquei emocionadíssima. Durante a missa, agradeci muito a Deus por esses primeiros dias de caminhada.
Como decidimos ficar duas noites em Pamplona, após a missa fomos fazer reserva num albergue novo, que estava cheio ontem, mas tinha lugar para o dia seguinte. Nesse albergue, reencontramos o pai e filho israelenses, Ram e Ionathan. Acabou que fomos todos jantar juntos. Comemos num lugar tipicamente navarrense (se você chamar um basco de espanhol, pode arrumar um inimigo), com patas de presunto penduradas no teto), bem gostoso, indicado por umas senhorinhas que encontramos na rua. Aliás, devo registrar que as pessoas aqui em Navarra são de uma amabilidade incrível. O perigo é você pedir uma informação e ter de passar meia hora conversando. Enfim, jantamos super bem. Ram e Ionathan são muito gente boa, e me convidaram para visitá-los em Israel. O pai é médico, e o filho está se preparando para entrar na Universidade.
É tão interessante como a gente faz conexões profundas tão rapidamente, no Caminho. Norma sempre me fala de um livro de um padre que diz que mesmo que você queira caminhar sozinho, o Caminho vai acabar lhe dando uma família. Talvez isso aconteça porque as pessoas estão mais abertas umas às outras. Em todo caso, é muito bonito. Já encontrei várias pessoas que estão com outras há apenas um ou dois dias, porque começaram a caminhar juntas, em algum momento. E você as vê juntas e pensa que são amigos de uma vida.  Parece que o Caminho ensina as pessoas a deixarem a autossuficiência de lado, e a serem solidárias e acolhedoras.
Apesar da pensão não ser grandes coisas, dormi bem (num quarto com Norma e Tom). Acordamos um pouco mais tarde, tomamos café numa confeitaria muito boa, perto da pensão, recolhemos nossas coisas e nos mudamos para o albergue. Natália, a dona do albergue, é uma figura. Conversadora que só ela. Nos demos super bem. O albergue é novo em folha, com exceção das duas charmosas mesas da copa, feitas de madeira de demolição: duas portas com quatrocentos anos de idade! Isso dito, devo registrar que todo albergue tem a simplicidade por princípio. Dorme-se num espaço com várias pessoas, o banheiro é compartilhado, não tem lençol, nem toalha. O peregrino tem de andar prevenido. Toalha, lençol e saco de dormir são essenciais. Só que eu estava carregando um saco de dormir pesadíssimo. Hoje fui ao Corte Inglés e comprei um saco de dormir efetivamente adequado ao Caminho, o que significa basicamente: LEVE. Mais um exercício de desapego, pois meu saco de dormir confortabilíssimo e novinho em folha, que venho carregado desde os Estados Unidos vai ter de ficar por aqui. Paciência. Vou doar pra Igreja.
Para encerrar esse longuíssimo relato, lhe digo, Minha Irmã, que valeu demais ficar um dia a mais em Pamplona, tanto para descansar um pouco o corpo, como para conhecer melhor a cidade. Eu e Norma preparamos nosso almoço no albergue (fiz pasta com molho de cogumelos e ela fez uma deliciosa salada). Depois, passeamos pelas muralhas e visitamos a Catedral de Nossa Senhora de Pamplona, uma construção gótica deslumbrante. A fachada foi modificada no século XVIII, parece (um crime de lesa humanidade!), mas o interior está inteiramente preservado. Além do que normalmente nos impressiona numa Catedral gótica (naves enormes, ogivas, teto altíssimos, vitrais...), os retábulos e altares laterais são absolutamente lindos. Várias peças dos séculos XIII e XIV. Muito ouro e prata. E o museu diocesano, nos claustros da Igreja, também é belo. Além das peças preciosas, a concepção museológica é muito interessante, porque “fala” com o público contemporâneo. É a primeira vez que vejo um museu sacro com uma concepção contemporânea. Adorei.
De resto, Pamplona é o que descrevi acima. Uma cidade medieval cheia de charme e de caráter. Não é a toa que Hemingway gostava tanto daqui. Aliás, para fechar o dia, eu, Norma e Tom fizemos um lanche no Café Iruña, um dos lugares favoritos de Hemingway. É um desses cafés ou confeitarias típicos da virada do século XIX para o XX. Muitos espelhos e lustres. Foi um fim de dia muito agradável. Agora, todos dormem no albergue, menos eu, rs, rs, rs. Estava aqui escrevendo, tomando chá e comendo uma torta típica de Navarra, cujo nome é impronunciável. Amanhã será um dia duro de caminhada, 24 kms, com subida pesada. Só espero que não chova.
É isso. Fica com Deus, Niquinha! Manda dizer pra todo mundo que estou com muitas saudades. E que quanto mais ando pelo mundo, quanto mais belezas e maravilhas vejo, mais aumenta em mim a certeza de que meu lugar é no Brasil, ou no meu quarto, no Recife.
Beijos mil,

Léia

Nenhum comentário:

Postar um comentário