quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 12


22/09/15

Boa Tarde, Nica!
Te escrevo do Mosteiro de Yuso, em San Millán de la Cogolla. Decidi ficar um dia a mais em Nájera, para conhecer dois mosteiros que são Patrimônio da Humanidade (Unesco). Peguei um ônibus em Nájera e vim até essa cidadezinha, no meio das montanhas, para visitar esses monumentos. Como toda boa cidadezinha espanhola, neste exato momento está tudo fechado para a siesta. Desci do ônibus (às 14h) e caminhei pela rua principal, obviamente deserta. Estou aqui esperando que a recepção reabra, para subir até o Mosteiro de Suso. Enquanto espero, vou te contar como foi o dia de ontem.
Dormi muito bem em Navarrete, no albergue de um alemão radicado na Espanha, que como muitas pessoas, fez o Caminho e se encantou com ele. Não sei como, mas o albergue estava quase vazio. Éramos apenas três pessoas no quarto: eu, uma senhora californiana chamada Terry, e um senhor alemão. Apesar das poucas pessoas, achei que não ia conseguir dormir direito, porque quando saí pra te escrever, na noite anterior, esse senhor alemão (bem redondinho), já roncava em altíssimo e bom som. Pensei: Tô ferrada. Eu tenho dormido com protetores auriculares, mas essa criatura roncava tão alto que meus protetores teriam sido inúteis. Bem, como que por milagre, quando voltei ao quarto, ele tinha parado de roncar. Dormi na mais santa paz. E o que é melhor: não fui despertada pelo barulho de ninguém se arrumando. Pela primeira vez, acordei com meu despertador, às sete da manhã. E fui a primeira a acordar! Cumpri meu ritual de cuidados com os pés e alongamento, tomei meu café na deliciosa varanda do albergue, preparei meu envelope para despachar a mochila e me dirigi à Igreja de Santa María de la Asunción.
Pelo interior se vê bem que a Igreja é uma construção gótica, de teto altíssimo, com delicado rendilhado e as típicas arcadas em forma de ogiva. Já a fachada está descaracterizada. Certamente sofreu intervenções posteriores. O altar principal (que em espanhol se chama retábulo) é barroco, com todo o exagero característico, todo em ouro, e com muitas imagens. Nessa Igreja eu gostei mesmo foi da Imagem central, de Nossa Senhora sentadinha, no mesmo estilo da Imagem que te descrevi ontem, mais alongada, e com uma espécie de véu debaixo do manto. Muito linda. Também achei belo o órgão com duas enormes pinturas laterais. Aproveitei a visita para fazer minhas orações, antes de começar a caminhada do dia.
A saída de Navarrete não tem nenhum charme. Aliás, não achei muita graça na cidade, que tem um certo ar de descuido. Muitas casas abandonadas e grossos fios de eletricidade expostos nas paredes das edificações. Quando a gente sai do centro antigo, o caminho segue rente à autopista, até depois de uma Ermida (Santa María de Jesús). Ao lado dela há um cemitério com um belo pórtico do século XII. Passado o cemitério, seguimos por uma estradinha toda ladeada por parreirais. Ao fundo, uma pequena cadeia montanhosa. E do lado direito, a certa distância, uma bonita formação rochosa, achatada no topo, como um platô.
Quando saí de Navarrete, fazia um friozinho bom, mas o céu estava claro, sem nuvens no céu. Obviamente, ao longo do dia, o calor foi aumentando, e quando cheguei a Nájera, às 14:30h, posso dizer que estava um calor de cozinhar o cocoruto. Em todo caso, prefiro o calor ao frio. E com o sol, o mundo fica mais vivo e mais colorido. Mesmo com o cansaço, desfrutei bastante da beleza dos caminhos de ontem. O contraste entre vales e colinas é muito bonito, tanto mais que estava tudo verdinho. Como te disse, andamos o tempo todo pelo meio de parreirais. La Rioja (província em que estou agora), produz o vinho mais famoso da Espanha (os que provei até agora não me pareceram grandes coisas, para ser sincera). Por duas vezes, peguei cachos de uva caídos aos pés das parreiras. Dulcíssimas as uvas, tanto que deixam as mãos pegajosas.
Entre Navarrete e Nájera há apenas duas cidadezinhas. Passei ao largo da primeira, Sostes, e parei na segunda, Ventosa, para tomar um chá (venci meu vício de café!!!). Sentada nas mesinhas do lado de fora, apreciando a vista do vale ao fundo, conheci Daniella, uma jovem alemã, que perdeu a mãe há um ano, e está fazendo o Caminho em busca de algum tipo de resposta ou conforto. Ela me disse que não acredita “no Deus da Bíblia”, mas em alguma força maior. Fiquei pensando em como já conheci muitas pessoas, na vida, que me disseram a mesma coisa. Eis algo que mereceria reflexão por parte das Igrejas cristãs: por que o Deus “da Bíblia” não fala ao coração de tantas pessoas? Bom, Daniella estava muito aflita, ansiosa com os gatos que deixou em casa sozinhos, com o joelho que começou a doer, com o Caminho de modo geral. Conversamos bastante, e acho que ajudei a acalmá-la. Disse a ela, entre outras coisas, que ela peça auxílio e confie nessa “força maior” que ela consegue sentir que existe. Os caminhos para Deus são muitos. Religião alguma jamais deve ser um empecilho para que alguém chegue a Deus.
Daniella ia dormir na pequena Ventosa. Retomei meu caminho. Tentei visitar a Igrejinha da cidade, que, infelizmente, estava fechada. Toda cidadezinha ao longo do Caminho, por pequena que seja, tem uma Igrejinha. Mesmo naquelas que apenas vislumbramos ao longe, sem atravessá-las, se pode avistar a torre graciosa de alguma Igreja. Saindo de Ventosa, o Caminho segue pelo meio das videiras. Em Ventosa, tentei ver algo chamado 1 Km de Arte, e só consegui observar duas obras: o muro de uma casinha perto da Igreja e um quadro que se encontrava postado junto a uma videira, poucos metros após a saída da cidade – o que não deixa de causar um efeito curioso.
A segunda parte da jornada de ontem foi um pouco cansativa, por causa do sol, que, como eu lhe disse, estava inclemente. Em compensação, a paisagem é bem bonita. Como eu já registrei, caminhei por entre vales e colinas, quase sempre em meio ao verde dos parreirais. Caminhando sozinha, fui rezando por todo mundo. Em certo momento, já perto de Nájera, ao pé de uma pontezinha que cruza um belo riacho, um senhor tocava gaita. Aos seus pés, uma cesta com pedrinhas esculpidas em forma de coração. E do outro lado da ponte, um coração de pedras estava desenhado no chão, como um mimo para os peregrinos. Achei tão delicado! Mais alguns quilômetros e cheguei a Nájera.
A entrada de Nájera, como no caso de muitas cidades que tenho cruzado, é bem feinha. Prédios de construção recente, sem nenhum charme, denunciam o inevitável processo de adensamento urbano. Cheguei às 14:30h e estava tudo fechado, para a siesta. Por sorte, ainda peguei um mercadinho de portas abertas e comprei alguns itens para fazer uma salada e poder almoçar no albergue. Nájera começa a ficar interessante quanto se chega a uma ponte que cruza o rio Najerilla. Do outro lado da ponte, à margem do rio, um belo e agradável parque se estende, com banquinhos e árvores. Também é ali que começa a parte antiga da cidade, com suas velhas casinhas ocres, suas ruas estreitas e suas Igrejas.
Em frente ao parque encontrei logo o albergue onde queria ficar. Tinha acabado de lotar. Só restava um quarto duplo, a 40 euros. Era muito pra mim. Desolada, porque o albergue parecia excelente, e eu vinha rezando pra encontrar lugar nele, saí andando à procura de outra opção. Não há muitos albergues em Nájera, mas há hotéis. Rodei e não achei nada que parecesse ter uma relação custo-benefíco mais razoável que o primeiro. Estava exausta a essa altura e decidi arriscar o quarto duplo, na esperança de que aparecesse alguma peregrina disposta a dividir a cama de casal comigo. Se não aparecesse ninguém, pensei, teria o luxo de uma noite de hotel, praticamente. Pelo menos poderia dormir bem tranquila, sem ninguém me acordando às seis da manhã. Voltei ao Puerta de Nájera, paguei os 40 euros, me instalei no meu quarto, tomei banho e desci para preparar meu almoço e matar minha fome.
Quando estava almoçando, pensava no meu quarto duplo e pedia a Deus: Só me mande alguém para dividir o quarto comigo, se for uma pessoa muito legal, ou por alguma boa razão, se não, vou aproveitar esse luxo como um merecido mimo. Estava nesse estado de espírito, quando chegou outra Daniella, uma moça holandesa que dormiu no mesmo dormitório que eu, em Viana. Ela estava naquele grande grupo que já mencionei, com o rapaz das Bermudas e vários jovens americanos. Bem, Daniella tinha vindo buscar uma caixa que ela havia despachado pro meu albergue. Ela se sentou ao meu lado, atarantada, e começou a despejar sua ansiedade. Não queria ficar no albergue municipal, onde estavam os outros, porque lhe pareceu precaríssimo. Além disso, já estava meio cansada da balbúrdia do grupo, e sentia que precisava caminhar um pouco sozinha, mas se sentia culpada de abandonar os amigos, feitos desde os primeiros dias de Caminho. Enquanto ela falava, meu coração me disse: é ela que vai partilhar o quarto com você. Então, eu lhe fiz a proposta. Daniella ficou meio surpresa e hesitou, presa ao sentimento de culpa por deixar os amigos. Mas após alguns instantes, ela me disse que topava, sim. Foi buscar sua bagagem e se instalou no quarto comigo. Como eu tinha comida sobrando, lhe ofereci o almoço. Ela ficou muito feliz. Se sentiu amparada, creio. E eu agradeci muito a Deus a possibilidade de ser o instrumento do auxílio de que ela estava precisando exatamente naquele momento. E, claaaro, também agradeci pelos vinte euros economizados!
O albergue Puerta de Nájera é uma gracinha. Todo novinho, um comedor e uma salinha de estar bem agradáveis. Banheiros limpos e organizados (até suporte para xampu e sabonete tem!). Pensei que seria bom seguir seu conselho de descansar um pouco minhas costas, e também meu joelho e meu pé, e decidi ficar ali mais uma noite. Além de tudo, a dona, Maitê, é um verdadeiro amor! Me tratou com tanto carinho. Perguntei se ela tinha uma cama disponível num dos quartos coletivos, para mais uma noite, e ela me disse que sim. E me sugeriu que aproveitasse o dia de descanso para visitar dois Mosteiros próximos, que são Patrimônio da Humanidade. Adorei a sugestão. Já era tarde da noite, mas eu ainda fiquei mais um pouquinho pelo comedor, escrevendo e conversando com uns argentinos muito simpáticos, como acho que lhe mencionei ontem. Logo após as dez da noite, horário do “toque de recolher” em muitos albergues, eu e Daniella fomos para o quarto. A noite de sono foi tranquila, mas ao contrário das minhas expectativas, acordei super cedo, com o barulho dos quartos vizinhos. Nos levantamos, cumpri todo meu ritual de organização, ofereci frutas e iogurte a Daniella. Comemos e fui com ela aos Correios, porque ela precisava localizar uma encomenda que lhe enviaram da Holanda, e ela não fala espanhol. Após resolvermos a vida dela, ela me convidou para um café. Tomei um leitinho quente com croissant e nos despedimos. Ela estava agradecidíssima, dizendo que eu tinha sido um anjo enviado por Deus. Eu lhe respondi que Deus sempre toma conta da gente, e que essa ajuda normalmente chega por meio de outras pessoas. Todos nós podemos ser “anjos” de Deus. É só a gente se disponibilizar para isso. Por sinal que na porta desse café encontrei a outra Daniella, que estava chegando em Nájera acompanhada de duas mulheres maduras, que pareciam estar “tomando conta” dela. Certamente são os anjos de que ela andava precisando.
Após me despedir da Daniella holandesa, fui visitar um Convento e um Mosteiro em Nájera mesmo, fiz um lanche no parque à beira do rio e no início da tarde peguei o ônibus que me trouxe até San Millán, onde vou visitar esses Patrimônios da Humanidade. Amanhã te conto os detalhes dessa aventura de hoje. Agora, tenho de ir pegar minhas entradas pros Monastérios.
Até breve, Niquinha!
Beijos mil,
Léia

 Obs: o sinal de internet ontem à noite estava péssimo, e hoje de manhã também, por isso, só tô conseguindo fazer essa postagem agora (23/09)


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