22/09/15
Boa Tarde, Nica!
Te escrevo do Mosteiro
de Yuso, em San Millán de la Cogolla. Decidi ficar um dia a mais em Nájera,
para conhecer dois mosteiros que são Patrimônio da Humanidade (Unesco). Peguei
um ônibus em Nájera e vim até essa cidadezinha, no meio das montanhas, para visitar
esses monumentos. Como toda boa cidadezinha espanhola, neste exato momento está
tudo fechado para a siesta. Desci do
ônibus (às 14h) e caminhei pela rua principal, obviamente deserta. Estou aqui
esperando que a recepção reabra, para subir até o Mosteiro de Suso. Enquanto
espero, vou te contar como foi o dia de ontem.
Dormi muito bem em
Navarrete, no albergue de um alemão radicado na Espanha, que como muitas
pessoas, fez o Caminho e se encantou com ele. Não sei como, mas o albergue
estava quase vazio. Éramos apenas três pessoas no quarto: eu, uma senhora
californiana chamada Terry, e um senhor alemão. Apesar das poucas pessoas,
achei que não ia conseguir dormir direito, porque quando saí pra te escrever,
na noite anterior, esse senhor alemão (bem redondinho), já roncava em altíssimo
e bom som. Pensei: Tô ferrada. Eu
tenho dormido com protetores auriculares, mas essa criatura roncava tão alto
que meus protetores teriam sido inúteis. Bem, como que por milagre, quando
voltei ao quarto, ele tinha parado de roncar. Dormi na mais santa paz. E o que
é melhor: não fui despertada pelo barulho de ninguém se arrumando. Pela
primeira vez, acordei com meu despertador, às sete da manhã. E fui a primeira a
acordar! Cumpri meu ritual de cuidados com os pés e alongamento, tomei meu café
na deliciosa varanda do albergue, preparei meu envelope para despachar a
mochila e me dirigi à Igreja de Santa María de la Asunción.
Pelo interior se vê
bem que a Igreja é uma construção gótica, de teto altíssimo, com delicado
rendilhado e as típicas arcadas em forma de ogiva. Já a fachada está
descaracterizada. Certamente sofreu intervenções posteriores. O altar principal
(que em espanhol se chama retábulo) é barroco, com todo o exagero característico,
todo em ouro, e com muitas imagens. Nessa Igreja eu gostei mesmo foi da Imagem
central, de Nossa Senhora sentadinha, no mesmo estilo da Imagem que te descrevi
ontem, mais alongada, e com uma espécie de véu debaixo do manto. Muito linda.
Também achei belo o órgão com duas enormes pinturas laterais. Aproveitei a
visita para fazer minhas orações, antes de começar a caminhada do dia.
A saída de Navarrete
não tem nenhum charme. Aliás, não achei muita graça na cidade, que tem um certo
ar de descuido. Muitas casas abandonadas e grossos fios de eletricidade
expostos nas paredes das edificações. Quando a gente sai do centro antigo, o
caminho segue rente à autopista, até depois de uma Ermida (Santa María de
Jesús). Ao lado dela há um cemitério com um belo pórtico do século XII. Passado
o cemitério, seguimos por uma estradinha toda ladeada por parreirais. Ao fundo,
uma pequena cadeia montanhosa. E do lado direito, a certa distância, uma bonita
formação rochosa, achatada no topo, como um platô.
Quando saí de
Navarrete, fazia um friozinho bom, mas o céu estava claro, sem nuvens no céu.
Obviamente, ao longo do dia, o calor foi aumentando, e quando cheguei a Nájera,
às 14:30h, posso dizer que estava um calor de cozinhar o cocoruto. Em todo
caso, prefiro o calor ao frio. E com o sol, o mundo fica mais vivo e mais
colorido. Mesmo com o cansaço, desfrutei bastante da beleza dos caminhos de
ontem. O contraste entre vales e colinas é muito bonito, tanto mais que estava
tudo verdinho. Como te disse, andamos o tempo todo pelo meio de parreirais. La
Rioja (província em que estou agora), produz o vinho mais famoso da Espanha (os
que provei até agora não me pareceram grandes coisas, para ser sincera). Por
duas vezes, peguei cachos de uva caídos aos pés das parreiras. Dulcíssimas as uvas,
tanto que deixam as mãos pegajosas.
Entre Navarrete e
Nájera há apenas duas cidadezinhas. Passei ao largo da primeira, Sostes, e
parei na segunda, Ventosa, para tomar um chá (venci meu vício de café!!!).
Sentada nas mesinhas do lado de fora, apreciando a vista do vale ao fundo,
conheci Daniella, uma jovem alemã, que perdeu a mãe há um ano, e está fazendo o
Caminho em busca de algum tipo de resposta ou conforto. Ela me disse que não
acredita “no Deus da Bíblia”, mas em alguma força maior. Fiquei pensando em
como já conheci muitas pessoas, na vida, que me disseram a mesma coisa. Eis
algo que mereceria reflexão por parte das Igrejas cristãs: por que o Deus “da
Bíblia” não fala ao coração de tantas pessoas? Bom, Daniella estava muito
aflita, ansiosa com os gatos que deixou em casa sozinhos, com o joelho que
começou a doer, com o Caminho de modo geral. Conversamos bastante, e acho que
ajudei a acalmá-la. Disse a ela, entre outras coisas, que ela peça auxílio e
confie nessa “força maior” que ela consegue sentir que existe. Os caminhos para
Deus são muitos. Religião alguma jamais deve ser um empecilho para que alguém
chegue a Deus.
Daniella ia dormir na
pequena Ventosa. Retomei meu caminho. Tentei visitar a Igrejinha da cidade,
que, infelizmente, estava fechada. Toda cidadezinha ao longo do Caminho, por
pequena que seja, tem uma Igrejinha. Mesmo naquelas que apenas vislumbramos ao
longe, sem atravessá-las, se pode avistar a torre graciosa de alguma Igreja. Saindo
de Ventosa, o Caminho segue pelo meio das videiras. Em Ventosa, tentei ver algo
chamado 1 Km de Arte, e só consegui observar duas obras: o muro de uma casinha
perto da Igreja e um quadro que se encontrava postado junto a uma videira, poucos
metros após a saída da cidade – o que não deixa de causar um efeito curioso.
A segunda parte da
jornada de ontem foi um pouco cansativa, por causa do sol, que, como eu lhe
disse, estava inclemente. Em compensação, a paisagem é bem bonita. Como eu já
registrei, caminhei por entre vales e colinas, quase sempre em meio ao verde
dos parreirais. Caminhando sozinha, fui rezando por todo mundo. Em certo
momento, já perto de Nájera, ao pé de uma pontezinha que cruza um belo riacho,
um senhor tocava gaita. Aos seus pés, uma cesta com pedrinhas esculpidas em
forma de coração. E do outro lado da ponte, um coração de pedras estava
desenhado no chão, como um mimo para os peregrinos. Achei tão delicado! Mais
alguns quilômetros e cheguei a Nájera.
A entrada de Nájera,
como no caso de muitas cidades que tenho cruzado, é bem feinha. Prédios de
construção recente, sem nenhum charme, denunciam o inevitável processo de adensamento
urbano. Cheguei às 14:30h e estava tudo fechado, para a siesta. Por sorte, ainda peguei um mercadinho de portas abertas e
comprei alguns itens para fazer uma salada e poder almoçar no albergue. Nájera
começa a ficar interessante quanto se chega a uma ponte que cruza o rio
Najerilla. Do outro lado da ponte, à margem do rio, um belo e agradável parque
se estende, com banquinhos e árvores. Também é ali que começa a parte antiga da
cidade, com suas velhas casinhas ocres, suas ruas estreitas e suas Igrejas.
Em frente ao parque encontrei
logo o albergue onde queria ficar. Tinha acabado de lotar. Só restava um quarto
duplo, a 40 euros. Era muito pra mim. Desolada, porque o albergue parecia
excelente, e eu vinha rezando pra encontrar lugar nele, saí andando à procura
de outra opção. Não há muitos albergues em Nájera, mas há hotéis. Rodei e não
achei nada que parecesse ter uma relação custo-benefíco mais razoável que o
primeiro. Estava exausta a essa altura e decidi arriscar o quarto duplo, na
esperança de que aparecesse alguma peregrina disposta a dividir a cama de casal
comigo. Se não aparecesse ninguém, pensei, teria o luxo de uma noite de hotel,
praticamente. Pelo menos poderia dormir bem tranquila, sem ninguém me acordando
às seis da manhã. Voltei ao Puerta de Nájera, paguei os 40 euros, me instalei
no meu quarto, tomei banho e desci para preparar meu almoço e matar minha fome.
Quando estava
almoçando, pensava no meu quarto duplo e pedia a Deus: Só me mande alguém para dividir o quarto comigo, se for uma pessoa
muito legal, ou por alguma boa razão, se não, vou aproveitar esse luxo como um
merecido mimo. Estava nesse estado de espírito, quando chegou outra
Daniella, uma moça holandesa que dormiu no mesmo dormitório que eu, em Viana.
Ela estava naquele grande grupo que já mencionei, com o rapaz das Bermudas e
vários jovens americanos. Bem, Daniella tinha vindo buscar uma caixa que ela
havia despachado pro meu albergue. Ela se sentou ao meu lado, atarantada, e
começou a despejar sua ansiedade. Não queria ficar no albergue municipal, onde
estavam os outros, porque lhe pareceu precaríssimo. Além disso, já estava meio
cansada da balbúrdia do grupo, e sentia que precisava caminhar um pouco
sozinha, mas se sentia culpada de abandonar os amigos, feitos desde os
primeiros dias de Caminho. Enquanto ela falava, meu coração me disse: é ela que vai partilhar o quarto com você.
Então, eu lhe fiz a proposta. Daniella ficou meio surpresa e hesitou, presa ao
sentimento de culpa por deixar os amigos. Mas após alguns instantes, ela me
disse que topava, sim. Foi buscar sua bagagem e se instalou no quarto comigo.
Como eu tinha comida sobrando, lhe ofereci o almoço. Ela ficou muito feliz. Se
sentiu amparada, creio. E eu agradeci muito a Deus a possibilidade de ser o
instrumento do auxílio de que ela estava precisando exatamente naquele momento.
E, claaaro, também agradeci pelos vinte euros economizados!
O albergue Puerta de Nájera é uma gracinha. Todo
novinho, um comedor e uma salinha de estar bem agradáveis. Banheiros limpos e
organizados (até suporte para xampu e sabonete tem!). Pensei que seria bom
seguir seu conselho de descansar um pouco minhas costas, e também meu joelho e
meu pé, e decidi ficar ali mais uma noite. Além de tudo, a dona, Maitê, é um
verdadeiro amor! Me tratou com tanto carinho. Perguntei se ela tinha uma cama
disponível num dos quartos coletivos, para mais uma noite, e ela me disse que
sim. E me sugeriu que aproveitasse o dia de descanso para visitar dois
Mosteiros próximos, que são Patrimônio da Humanidade. Adorei a sugestão. Já era
tarde da noite, mas eu ainda fiquei mais um pouquinho pelo comedor, escrevendo
e conversando com uns argentinos muito simpáticos, como acho que lhe mencionei
ontem. Logo após as dez da noite, horário do “toque de recolher” em muitos
albergues, eu e Daniella fomos para o quarto. A noite de sono foi tranquila,
mas ao contrário das minhas expectativas, acordei super cedo, com o barulho dos
quartos vizinhos. Nos levantamos, cumpri todo meu ritual de organização,
ofereci frutas e iogurte a Daniella. Comemos e fui com ela aos Correios, porque
ela precisava localizar uma encomenda que lhe enviaram da Holanda, e ela não
fala espanhol. Após resolvermos a vida dela, ela me convidou para um café. Tomei
um leitinho quente com croissant e nos despedimos. Ela estava agradecidíssima,
dizendo que eu tinha sido um anjo enviado por Deus. Eu lhe respondi que Deus
sempre toma conta da gente, e que essa ajuda normalmente chega por meio de
outras pessoas. Todos nós podemos ser “anjos” de Deus. É só a gente se
disponibilizar para isso. Por sinal que na porta desse café encontrei a outra
Daniella, que estava chegando em Nájera acompanhada de duas mulheres maduras,
que pareciam estar “tomando conta” dela. Certamente são os anjos de que ela
andava precisando.
Após me despedir da
Daniella holandesa, fui visitar um Convento e um Mosteiro em Nájera mesmo, fiz
um lanche no parque à beira do rio e no início da tarde peguei o ônibus que me
trouxe até San Millán, onde vou visitar esses Patrimônios da Humanidade. Amanhã
te conto os detalhes dessa aventura de hoje. Agora, tenho de ir pegar minhas
entradas pros Monastérios.
Até breve, Niquinha!
Beijos mil,
Léia
Obs: o sinal de internet ontem à noite estava
péssimo, e hoje de manhã também, por isso, só tô conseguindo fazer essa
postagem agora (23/09)
estou viajando em cada passo seu... !
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