Minha Irmã, Amada,
Hoje peguei bem mais
leve. Estou em Villamayor de Monjardín. Em lugar dos 24 kms caminhados nos
últimos dois dias, hoje fiz apenas 10 kms. Por duas razões. Primeiro, porque do
Mosteiro dos Capuchinhos ligamos para fazer reserva em Los Arcos (21 kms de
Estella), e estava tudo cheio. Acho que os peregrinos estão se dando conta de
que está faltando lugar, e estão ligando para reservar antes. Ontem, quando
estávamos entrando em Estella, encontramos uma jovem americana que estava
esperando um táxi para levá-la, junto com sua mãe, de volta à cidade anterior,
porque não havia mais hospedagem em Estella. Estava tudo lotado. A moça estava
contrariada, pois além de não ter onde ficar, ainda tinha perdido uma de suas
botas, que estava amarrada na mochila. Ela esperava o táxi à entrada de Estella
e perguntava a todos os peregrinos que chegavam se alguém tinha visto sua bota.
Fiquei com dó dela.
Bem, ligamos para
todos os albergues de Los Arcos e não havia lugar. Só num hotel, por 30 euros,
o dobro dos albergues mais caros. Como Norma e Tom têm data para terminar o
Caminho e eu não (e ele é um médico americano aposentado, enquanto eu sou uma
brasileira lascada com a desvalorização do Real...), decidi ficar na última cidade
antes de Los Arcos, que é justamente Monjardín. E tinha lugar num dos dois
albergues locais. Fiquei um pouco sentida de ter de deixar a companhia dos
dois, e eles, mais ainda. Eles já estavam dizendo pra todo mundo que eu sou a
filha adotiva deles. Realmente nos demos muito bem. Eles me dão o conforto de
não caminhar sozinha, e acho que dou a eles o conforto de quem fala a língua
local e pode desenrolar as coisas com mais facilidade. Enfim, confesso que, de
outro lado, me animou a ideia de fazer uma caminhada mais curta hoje, porque meu
pé continua doendo. E hoje voltei a caminhar com minha mochila, portanto, também
sinto um pouco as costas (mas tá melhorando!).
Saímos de Estella por
volta das dez e meia (nunca conseguimos sair cedo!). Ventava muito e fazia um
friozinho bom. Mas pelo menos não havia sinal de chuva. Quase todos os dias
pegamos um pouco ou um muito de chuva, o que é chato porque a gente fica pondo
e tirando a capa de chuva, que esquenta muito. Pouco depois de Estella,
chegamos a Irache, onde há uma grande vinícola. A Bodegas Irache tem uma fonte
de vinho! É um agrado aos peregrinos. A pessoa pode se servir de vinho a
vontade, e também de água. E se você não tiver um copo, tem uma máquina que
vende copinhos de vidro por um euro. Um cartaz pede que as pessoas se sirvam o
quanto quiserem, mas que não peguem vinho para levar. Pelo que vi, a maioria
dos peregrinos respeita o pedido.
Logo depois da Fonte, o
Mosteiro de Irache, com sua Igreja românica e claustro do século XII, não tão
bonitos como os de São Pedro, em Estella. A medida que nos afastamos de Irache,
a paisagem foi ficando cada vez mais bonitas. A caminhada é uma subida, entre
parreirais e outras plantações, e ao fundo uma cadeia de montanhas e um belo
platô, iluminado por réstias de sol que passavam entre as nuvens. Hoje, me
voltei para trás muitas vezes, para admirar a paisagem.
Sempre subindo,
chegamos a Azqueta. E ali aconteceu uma coisa linda! Azqueta é mais um charmoso
povoadozinho de três ruas. O único bar do povoado estava fechado. E com o frio
que fazia, estávamos sonhando por um café e umas cadeiras para descansar da
subida. Nada de bar. No entanto, um pouco adiante, um albergue, com bancos de
madeira e uma poltrona de veludo à porta. Uma placa indicava o nome Perla Negra
e tinha o símbolo para restaurante. Tão logo nos aproximamos para perguntar se
eles tinham café ou chá, um simpático rapaz saiu de dentro com uma bandeja
cheia de biscoitos, bolinhos e chocolate. Perguntou se queríamos chá ou café.
Outros peregrinos se aproximaram: uma moça canadense que caminha com o pai e a
jovem americana que perdera a bota ontem. Aquele delicioso lanche nos foi
oferecido como cortesia! Todas as quintas-feiras, como o bar do povoado está
fechado, a dona da pousada oferece comida e bebida aos peregrinos. Não é o
máximo?!
O jovem que nos
atendeu tão gentilmente se chama Nataniel e é francês. Ele fez o Caminho no ano
passado. Ao voltar para casa, na França, caiu numa depressão. Passou o inverno
todo dormindo e quando chegou a primavera, entendeu que precisava reagir e se
livrar da depressão. Daí se lembrou do Caminho e especialmente desse povoado e
dessa pousada, onde havia ficado por alguns dias. A cada vez em que ele pensava
nesse lugar, sentia seu coração despertar do torpor em que andava metido, e
vibrar. Decidiu, então, voltar a Azqueta e propor à senhora de trabalhar em
troca de casa e comida. E ali ele está, novamente vivo e feliz. Tanto que já
está pronto para partir. No final do mês deve voltar pra casa e descobrir que
rumo dar à sua vida. Nataniel tocou violão para nós e soprou bolhas de sabão
para saudar os peregrinos. Uma gracinha!
Na conversa com os
demais peregrinos, outra bela história. A moça americana, que encontramos ontem
à noite contrariada com a perda da bota e a ausência de acomodação em Estella,
estava radiante de felicidade. Imagine, Minha Irmã, que ao tomar o táxi de
volta para Villatuerta, pensando ela que estava andando para trás, foi
justamente resgatar sua bota. Ao chegar ao albergue que conseguiram para ela,
lá estava sua bota, que algum peregrino encontrou no Caminho e deixou no
albergue! Além disso, ela e a mãe chegaram exatamente na hora do jantar.
Segundo elas, foi a melhor refeição que fizeram, até então, em todo o Caminho. Como
diz Tia Regina, as coisas de Deus são perfeitas. Até quando a gente pensa que
uma coisa é ruim, ela pode se revelar o caminho necessário para conseguirmos
algo maior e melhor. O problema é que nós temos a visão micro. Desconhecemos a
visão de conjunto, e aí nos angustiamos, nos preocupamos, sofremos. Uma das
coisas que eu tenho aprendido nos últimos meses é a aguçar minha sensibilidade
para entender melhor os sinais de Deus na vida da gente. E queria que você
pensasse numa coisa, Minha Irmã: toda dor guarda um aprendizado. E a gente
precisa entender que aprendizado é esse. Também aprendi que o nosso coração
sabe todas as respostas. A gente é que desaprende a escutar o coração, à medida
que vai crescendo e incorporando todos os mecanismos de repressão, sociais e
psicológicos. A meditação pode ajudar precisamente nessa reconexão com nosso
coração, ou com nossa intuição, ou com nossa alma, como se preferir.
Bom, acho que deveria
terminar por aqui. Mas vou só acrescentar que a subida até Villamayor de
Monjardín não foi tão penosa quanto eu temia. O povoado é charmoso como os
demais, com as mesmas casinhas ocres e brancas, e sua Igrejinha românica, linda
de simplicidade. Como está no alto de uma colina, tem-se uma bela vista de um
vale e das montanhas na linha do horizonte. Por trás do povoado de duas ruas,
há um pico com as ruínas de um castelo onde se crê estar enterrado um rei que
governou Navarra no século X. As chaves do castelo estão na pousada onde me
encontro hospedada. Fiquei tentada a visita-lo, porém, o cansaço e a prudência
falaram mais alto. Afinal, caminhei menos hoje para poder descansar melhor o
corpo e ver se desinflamo o pé. Tirei um bom cochilo à tardinha e agora estou
aqui, escrevendo para você. Todos os demais peregrinos já foram dormir.
A nota triste do dia
ficou por conta do “Até logo” a Norma e Tom. Nos despedimos no largo em frente
à Igrejinha de Santo André. Eles seguiram caminho. Mais 12 kms até Los Arcos, e
sem parada no meio. Fiquei preocupada por Tom, que tinha dor nos pés. Espero
que tenham chegado bem. Nos despedimos com emoção. Tom me disse que eu sou como
a filha que eles não tiveram (eles têm seis filhos homens, lembra?). Sinto que
ainda vamos nos reencontrar pelo Caminho. E prometemos nos falar sempre pelas
noites, usando a internet. Adoraria seguir caminhando com eles! Do fundo do
coração. O problema é que eles estão com o tempo apertado para chegar até
Santiago, e eu, como não tenho compromisso, estou achando mais prudente adotar
um ritmo mais lento, até que minha coluna se acostume e meus pés também. Não
quero ficar pelo meio do caminho. Hoje de manhã, mesmo, na hora do café, lá nos
Capuchinhos, conhecemos uma moça sueca, bem jovem, que está voltando pra casa
porque os joelhos inflamaram e ela não consegue mais continuar. Portanto,
preciso ser prudente. E serei. Amanhã devo caminhar mais 20 kms, até Torres del
Río. É mais do que hoje e menos do que os 24 kms dos últimos dias. Veremos como
se comporta meu organismo. Sinto meu pé menos inchado agora de noite. E sinto
que a coluna também está desinflamando. Em compensação, notei, hoje, minha
primeira bolhinha no pé. Está pequenininha e hoje já caminhei com ela
protegida.
É isso, Minha Irmã, um
dia de cada vez. Ou, com diz a filosofia Zen, vivendo no presente, que é o
único tempo que realmente importa, porque é apenas sobre ele que temos algum
poder.
Boa noite!
Beijos mil,
Léia
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