quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 8


17/09/15

Minha Irmã, Amada,

Hoje peguei bem mais leve. Estou em Villamayor de Monjardín. Em lugar dos 24 kms caminhados nos últimos dois dias, hoje fiz apenas 10 kms. Por duas razões. Primeiro, porque do Mosteiro dos Capuchinhos ligamos para fazer reserva em Los Arcos (21 kms de Estella), e estava tudo cheio. Acho que os peregrinos estão se dando conta de que está faltando lugar, e estão ligando para reservar antes. Ontem, quando estávamos entrando em Estella, encontramos uma jovem americana que estava esperando um táxi para levá-la, junto com sua mãe, de volta à cidade anterior, porque não havia mais hospedagem em Estella. Estava tudo lotado. A moça estava contrariada, pois além de não ter onde ficar, ainda tinha perdido uma de suas botas, que estava amarrada na mochila. Ela esperava o táxi à entrada de Estella e perguntava a todos os peregrinos que chegavam se alguém tinha visto sua bota. Fiquei com dó dela.
Bem, ligamos para todos os albergues de Los Arcos e não havia lugar. Só num hotel, por 30 euros, o dobro dos albergues mais caros. Como Norma e Tom têm data para terminar o Caminho e eu não (e ele é um médico americano aposentado, enquanto eu sou uma brasileira lascada com a desvalorização do Real...), decidi ficar na última cidade antes de Los Arcos, que é justamente Monjardín. E tinha lugar num dos dois albergues locais. Fiquei um pouco sentida de ter de deixar a companhia dos dois, e eles, mais ainda. Eles já estavam dizendo pra todo mundo que eu sou a filha adotiva deles. Realmente nos demos muito bem. Eles me dão o conforto de não caminhar sozinha, e acho que dou a eles o conforto de quem fala a língua local e pode desenrolar as coisas com mais facilidade. Enfim, confesso que, de outro lado, me animou a ideia de fazer uma caminhada mais curta hoje, porque meu pé continua doendo. E hoje voltei a caminhar com minha mochila, portanto, também sinto um pouco as costas (mas tá melhorando!).
Saímos de Estella por volta das dez e meia (nunca conseguimos sair cedo!). Ventava muito e fazia um friozinho bom. Mas pelo menos não havia sinal de chuva. Quase todos os dias pegamos um pouco ou um muito de chuva, o que é chato porque a gente fica pondo e tirando a capa de chuva, que esquenta muito. Pouco depois de Estella, chegamos a Irache, onde há uma grande vinícola. A Bodegas Irache tem uma fonte de vinho! É um agrado aos peregrinos. A pessoa pode se servir de vinho a vontade, e também de água. E se você não tiver um copo, tem uma máquina que vende copinhos de vidro por um euro. Um cartaz pede que as pessoas se sirvam o quanto quiserem, mas que não peguem vinho para levar. Pelo que vi, a maioria dos peregrinos respeita o pedido.
Logo depois da Fonte, o Mosteiro de Irache, com sua Igreja românica e claustro do século XII, não tão bonitos como os de São Pedro, em Estella. A medida que nos afastamos de Irache, a paisagem foi ficando cada vez mais bonitas. A caminhada é uma subida, entre parreirais e outras plantações, e ao fundo uma cadeia de montanhas e um belo platô, iluminado por réstias de sol que passavam entre as nuvens. Hoje, me voltei para trás muitas vezes, para admirar a paisagem.
Sempre subindo, chegamos a Azqueta. E ali aconteceu uma coisa linda! Azqueta é mais um charmoso povoadozinho de três ruas. O único bar do povoado estava fechado. E com o frio que fazia, estávamos sonhando por um café e umas cadeiras para descansar da subida. Nada de bar. No entanto, um pouco adiante, um albergue, com bancos de madeira e uma poltrona de veludo à porta. Uma placa indicava o nome Perla Negra e tinha o símbolo para restaurante. Tão logo nos aproximamos para perguntar se eles tinham café ou chá, um simpático rapaz saiu de dentro com uma bandeja cheia de biscoitos, bolinhos e chocolate. Perguntou se queríamos chá ou café. Outros peregrinos se aproximaram: uma moça canadense que caminha com o pai e a jovem americana que perdera a bota ontem. Aquele delicioso lanche nos foi oferecido como cortesia! Todas as quintas-feiras, como o bar do povoado está fechado, a dona da pousada oferece comida e bebida aos peregrinos. Não é o máximo?!
O jovem que nos atendeu tão gentilmente se chama Nataniel e é francês. Ele fez o Caminho no ano passado. Ao voltar para casa, na França, caiu numa depressão. Passou o inverno todo dormindo e quando chegou a primavera, entendeu que precisava reagir e se livrar da depressão. Daí se lembrou do Caminho e especialmente desse povoado e dessa pousada, onde havia ficado por alguns dias. A cada vez em que ele pensava nesse lugar, sentia seu coração despertar do torpor em que andava metido, e vibrar. Decidiu, então, voltar a Azqueta e propor à senhora de trabalhar em troca de casa e comida. E ali ele está, novamente vivo e feliz. Tanto que já está pronto para partir. No final do mês deve voltar pra casa e descobrir que rumo dar à sua vida. Nataniel tocou violão para nós e soprou bolhas de sabão para saudar os peregrinos. Uma gracinha!
Na conversa com os demais peregrinos, outra bela história. A moça americana, que encontramos ontem à noite contrariada com a perda da bota e a ausência de acomodação em Estella, estava radiante de felicidade. Imagine, Minha Irmã, que ao tomar o táxi de volta para Villatuerta, pensando ela que estava andando para trás, foi justamente resgatar sua bota. Ao chegar ao albergue que conseguiram para ela, lá estava sua bota, que algum peregrino encontrou no Caminho e deixou no albergue! Além disso, ela e a mãe chegaram exatamente na hora do jantar. Segundo elas, foi a melhor refeição que fizeram, até então, em todo o Caminho. Como diz Tia Regina, as coisas de Deus são perfeitas. Até quando a gente pensa que uma coisa é ruim, ela pode se revelar o caminho necessário para conseguirmos algo maior e melhor. O problema é que nós temos a visão micro. Desconhecemos a visão de conjunto, e aí nos angustiamos, nos preocupamos, sofremos. Uma das coisas que eu tenho aprendido nos últimos meses é a aguçar minha sensibilidade para entender melhor os sinais de Deus na vida da gente. E queria que você pensasse numa coisa, Minha Irmã: toda dor guarda um aprendizado. E a gente precisa entender que aprendizado é esse. Também aprendi que o nosso coração sabe todas as respostas. A gente é que desaprende a escutar o coração, à medida que vai crescendo e incorporando todos os mecanismos de repressão, sociais e psicológicos. A meditação pode ajudar precisamente nessa reconexão com nosso coração, ou com nossa intuição, ou com nossa alma, como se preferir.
Bom, acho que deveria terminar por aqui. Mas vou só acrescentar que a subida até Villamayor de Monjardín não foi tão penosa quanto eu temia. O povoado é charmoso como os demais, com as mesmas casinhas ocres e brancas, e sua Igrejinha românica, linda de simplicidade. Como está no alto de uma colina, tem-se uma bela vista de um vale e das montanhas na linha do horizonte. Por trás do povoado de duas ruas, há um pico com as ruínas de um castelo onde se crê estar enterrado um rei que governou Navarra no século X. As chaves do castelo estão na pousada onde me encontro hospedada. Fiquei tentada a visita-lo, porém, o cansaço e a prudência falaram mais alto. Afinal, caminhei menos hoje para poder descansar melhor o corpo e ver se desinflamo o pé. Tirei um bom cochilo à tardinha e agora estou aqui, escrevendo para você. Todos os demais peregrinos já foram dormir.
A nota triste do dia ficou por conta do “Até logo” a Norma e Tom. Nos despedimos no largo em frente à Igrejinha de Santo André. Eles seguiram caminho. Mais 12 kms até Los Arcos, e sem parada no meio. Fiquei preocupada por Tom, que tinha dor nos pés. Espero que tenham chegado bem. Nos despedimos com emoção. Tom me disse que eu sou como a filha que eles não tiveram (eles têm seis filhos homens, lembra?). Sinto que ainda vamos nos reencontrar pelo Caminho. E prometemos nos falar sempre pelas noites, usando a internet. Adoraria seguir caminhando com eles! Do fundo do coração. O problema é que eles estão com o tempo apertado para chegar até Santiago, e eu, como não tenho compromisso, estou achando mais prudente adotar um ritmo mais lento, até que minha coluna se acostume e meus pés também. Não quero ficar pelo meio do caminho. Hoje de manhã, mesmo, na hora do café, lá nos Capuchinhos, conhecemos uma moça sueca, bem jovem, que está voltando pra casa porque os joelhos inflamaram e ela não consegue mais continuar. Portanto, preciso ser prudente. E serei. Amanhã devo caminhar mais 20 kms, até Torres del Río. É mais do que hoje e menos do que os 24 kms dos últimos dias. Veremos como se comporta meu organismo. Sinto meu pé menos inchado agora de noite. E sinto que a coluna também está desinflamando. Em compensação, notei, hoje, minha primeira bolhinha no pé. Está pequenininha e hoje já caminhei com ela protegida.
É isso, Minha Irmã, um dia de cada vez. Ou, com diz a filosofia Zen, vivendo no presente, que é o único tempo que realmente importa, porque é apenas sobre ele que temos algum poder.
Boa noite!
Beijos mil,


Léia

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