20/09/15
Niquinha, Querida!
Ontem foi um dia muito
especial! Recebi um presente lindo dos Céus, como você vai ver mais adiante.
Não tinha dormido bem
em Sansol porque apesar do albergue charmosíssimo, fez frio no quarto. Acho que
as paredes de pedra da velha casa acabam mantendo a temperatura mais baixa
dentro da casa. Mesmo toda enrolada no meu novo saco de dormir, e vestida com
meia e casaco, senti frio e acabei dormindo mal. Em compensação, vi um lindo
amanhecer da janela logo acima da minha cama.
A saída de Sansol não
tem muito charme, porém, tem uma bela vista de Torres del Río, que fica a menos
de um quilômetro. No caminho entre as duas cidades, muitas amendoeiras, que
estou vendo pela primeira vez na vida. São árvores tão mirradinhas, com pouca
folhagem. Curiosamente, me dão a impressão de serem árvores de clima seco.
Em Torres del Río é
imperdível a visita à Igreja do Santo Sepulcro, cuja construção data do século
XIII, e se supõe ter sido dos Cavaleiros Templários. O teto é octogonal. A
Igreja é pequena e simples. De decoração tem apenas um belo crucifixo em
madeira policromada (acho eu). O detalhe mais interessante é que em lugar de
uma coroa de espinhos, tem uma coroa real, digamos assim, também esculpida em
madeira. É uma gracinha a Igreja.
Ontem caminhei apenas 11,2
kms, e levei três horas para fazer o percurso entre Sansol e Viana. Só que teve
muitas subidas. Pense nuns 11 kms compridos! Parecia que Viana não ia chegar
nunca. Agora, a paisagem entre as duas cidades é bem bonita. Caminhamos o tempo
todo por vales e colinas, e, pelo caminho, oliveiras, amendoeiras e videiras. Em
alguns trechos passamos pelo meio de pequenos bosques de pinheiros. No meio de
um deles, avista-se um canto com muitas “esculturas” de pedras, postas pelos
peregrinos. Ao longo de todo o Caminho, a gente se depara com essas “esculturas”,
que vão se formando a partir das pedrinhas que cada peregrino vai colocando. As
pedras funcionam, obviamente, como marcos da passagem das pessoas. São muito
frequentes nas encruzilhadas, especialmente onde há sinalizações do Caminho. E
em alguns pontos, por alguma razão, abundam dessas “esculturas”. Mas esse que
eu vi ontem, no trecho entre Torres de Río e Viana, é, sem dúvida, a maior concentração
desses montinhos de pedras que encontrei até aqui. Entre as pedras, alguns
peregrinos colocam fotos, mensagens, ramos de plantas, frutas ou pequenos
objetos que deixem o registro de sua passagem, ou de seus votos. Esse lugar de
que estou falando fica perto da Ermida de Nossa Senhora del Poyo. Acho que por
isso essa concentração de pedras e votos. E logo após as pedras, exatamente na
altura da Ermida, um trailer vende
comidas e bebidas: a Casita de Lúcia.
Após uma das muitas subidas
do trecho de ontem, chegamos a uma autoestrada e ao longe se podia ver Viana.
Agora, pense num negócio cabuloso. Eu via Viana e parecia pertinho. Daí eu
andava, andava, andava e nunca que chegava em Viana. Porque o danado do caminho
vai dando voltas. Parecido com o que aconteceu com Estella. A pessoa pensa que
está chegando, e nunca mais chega. Parece que os quilômetros se multiplicam! O
Caminho tem disso. Tem uns trechos de 4kms que parecem 20 kms. Em compensação,
um trecho de 12 kms que fiz hoje, pareceu, milagrosamente, que eram 6 kms.
A entrada de Viana é
muito feia. Tem muitas edificações modernas, e uns conjuntos residenciais meio
populares. Bem feinho mesmo. Logo ao lado esquerdo da cidade, uma grande mancha
urbana, que imagino ser Rioja. Viana é a última cidade do Reyno de Navarra. Hoje, já estou durmo em Rioja. Bem à entrada de
Viana, passou por mim um grupo de peregrinos com todo jeito de eslavos. Vários
homens carregavam um enorme crucifixo e uma moça levava uma imagem de Nossa
Senhora. Tive muita vontade de perguntar de onde eles vinham e o que faziam,
mas me faltou coragem para interpelá-los. Achei que eles podiam não apreciar
minha curiosidade. Eles vinham cantando e rezando.
Só após passarmos pelo
arco de acesso à cidade antiga, é que se revela o charme de Viana. Ruas
estreitas, casas de pedra, tudo cor de ocre, no mesmo estilo da maior parte
dessas cidadezinhas que venho encontrando desde Pamplona. Ao final da rua
principal, há uma lindíssima ruína da Igreja de São Pedro. E por trás dela, um
gramado e uma murada com vista linda para um vale.
Me dirigi ao albergue
municipal, porque tinha lido num blog que esse de Viana é bem razoável.
Normalmente, tenho evitado os albergues municipais porque tenho medo das
infames pulgas. Esses albergues também são mais baratos e costumam ter muita
gente nos quartos. Esse de Viana é realmente razoável. Tomei banho (que é tudo
que a pessoa deseja quando termina a caminhada do dia!), fui à farmácia e passei
numa loja de produtos esportivos para comprar uma sandália de montanhismo e uma
mochila. As duas compras me pareceram essenciais. Como o arco doo meu pé está
inflamado, quando eu tiro a bota e calço minhas havaianas, mal consigo colocar
o pé no chão. Ando mancando. Só estou conseguindo fazer o Caminho, neste
momento, porque comprei uma palmilha especial junto com as botas, que dá
suporte ao arco do pé. Foi caríssima e quase que eu não comprava. Mas tem sido
a minha salvação! Valeu cada dólar despendido. Já a mochila, vai ser muito útil
para quando eu resolver despachar a bolsa grande, porque eu preciso de algo
para levar comigo água, frutas, e outras coisas essenciais. Enfim, fiquei
contente com minhas compras.
Daí, me dirigi a um mercado,
para comprar comida. Fechado. O próximo, fechado também. Eram duas da tarde e
quase todo o comércio estava fechado. Vi avisos que diziam que o
estabelecimento fecha entre duas e cinco meia, em dias de semana. Estava morrendo
de fome, mas fazer o quê. Tinha que esperar as cinco e meia. A Igreja de Santa
María, que eu também queria visitar, igualmente fechada. Fui, então, para o
jardim que tem por trás das ruínas da Igreja de São Pedro. Fazia uma tarde
esplendorosa. Sol quente, sem uma nuvem no céu. Deitei no gramado, perto de
umas árvores, e cochilei. Despertei com o sol me queimando a pele. Sentei à
sombra, no pé de uma árvore e fiquei organizando fotos no computador. O local é
muito agradável. Estava deliciada. Atrás de mim, crianças brincavam e conversavam em basco. Fiquei só curtindo a soronidade dessa língua tão intrigante.
Já eram seis da tarde
quando me levantei para ir de novo ao mercado, comprar comida. Tudo fechado. Só
bares e restaurantes abertos. Foi aí que descobri que era sábado (perdi a noção
de dia da semana). E sábado, o comércio fecha às 14h e não abre mais. Já estava
voltando para o albergue, desolada, pensando que teria de me contentar com as
comidas das vending machines, quando
vi o Pilgrim’s Oasis. Eu tinha visto
um panfleto que falava em chás e bolos. Entrei. O lugar é uma graça. Pedi chá e
um biscoito recheado e descobri, para minha felicidade, que eles vendem alguns
produtos alimentícios. Comprei macarrão e pesto,
para cozinhar no albergue. Enquanto tomava um chá delicioso, fiquei conversando
com o dono, Lauren. Detalhe: a água do chá ele serve de um samovar, e tem
ampola para controlar o tempo da infusão. Chiquérrimo. E ele ainda me trouxe
gelo pra eu colocar no pé, porque eu comentei que estava com o pé um pouco
inflamado.
Bom, eu tinha visto
uma placa na entrada, que dizia Meditation
with Jesus, às 17 horas. Comentei com Lauren que eu adoraria ter chegado a
tempo da meditação. Ele disse: Se você
quiser, a gente faz uma sessão só pra você. Nisso, a esposa dele, Terry, que
estava se despedindo de um grupo de senhoras, se aproximou. Lauren comentou com
ela que eu queria fazer a meditação. Quando eu terminei meu chá, eles puseram
uma plaquinha do lado de fora, fecharam a loja (porque tem de ter silêncio pra
meditação), Terry colocou uma música linda de fundo, e começou a fazer a
meditação comigo. De tempos em tempos, ela lia trechos da Bíblia, e de um livro
de orações, abrindo aleatoriamente as páginas. Recebi três mensagens lindas,
que vou tentar resumir: 1) Não fique ansioso, peça e agradeça; a gratidão leva a
uma paz profunda; 2) Há um tempo certo para cada coisa, tempo para a espera e
tempo para a ação, tempo para a dor e tempo para a cura, tempo para dar e tempo
para receber....; 3) Jesus sempre vai te mostrar o caminho. Permaneci todo o
tempo de olhos fechados, ouvindo e sentindo a luz brilhar dentro de mim. Nem
preciso te dizer que essa meditação me deixou emocionadíssima. Chorei do
princípio ao fim. Mas choro de gratidão e de paz.
Lauren e Terry são
muito especiais. Eles são americanos. Moram há 19 anos na Espanha. Os filhos
cresceram e voltaram para os Estados Unidos. Os dois se aposentaram e passaram
a trabalhar ajudando algumas Igrejas que precisavam de trabalho voluntário, até
que decidiram vir para Viana e montar essa casa de chá, que é basicamente um
local de acolhida de peregrinos. Eles vivem para isso. Não é incrível? Fiquei
impressionada e muito agradecida pelo que eles me proporcionaram. Quando saí de
lá, estava convencida de que eu tinha de ir a Viana para viver esse momento.
Minha intenção original era passar de Viana e ir até Logroño, mas eu não
consegui hospedagem. Sônia, uma alemã que encontrei em Sansol, conseguiu
hospedagem em Logroño, na noite anterior, num albergue novo. Eu ainda tentei
ligar ontem de manhã cedinho, e não atendeu. Quando eu ia sair de Sansol pensei
em tentar ligar de novo, mas aí alguma coisa dentro de mim disse: deixa quieto, vai ser melhor pra você ficar
em Viana. E eu respondi pra mim mesma: tá
bom, então, deixa Deus tomar conta. Lauren ainda me deu – de presente – um chá que é muito bom para
dormir.
Ainda emocionada, voltei
pro albergue, cozinhei e comi meu macarrão com pesto, e corri pra pegar a missa das oito na Igreja de Santa María.
A Igreja é belíssima. O altar é barroco, todo dourado, só que a pintura das
imagens está bem esmaecida, então, parece que é tudo bege clarinho. Daí não
fica sobrecarregado. O tom neutro das imagens se harmoniza com o dourado de uma
maneira muito delicada. E por toda parte tem muitos, muitos anjos. Muito linda.
Das igrejas góticas foi a mais bonita que vi até agora. Depois da missa, fiquei
para a Bênção dos peregrinos. Adorei o jeitinho do padre, que era muito
simpático e ficou brincando com os peregrinos, de várias nacionalidades.
Voltei pro albergue
leve. Fui pro refeitório para te escrever, porém, chegou uma galera grande e
animada, que por sinal estava no mesmo quarto que eu, e começaram a conversar.
É uma turma bem legal, com gente de vários países. Tem até um cara das Bermudas.
A maioria é bem jovem. Eles se conheceram no Caminho e estão seguindo juntos.
Formaram uma grande família. É tão interessante observar a intimidade entre
eles, com apenas alguns dias de convivência!
Hoje também foi um dia
bonito. Caminhei 23 kms até Navarrete. Estou num albergue legal, com um terraço
muito agradável, e tem uma bela lua crescente no céu. Mas está friozinho e já
se faz tarde. Aliás, as noites e manhãs têm sido cada vez mais frias. Vou me
deitar, que o corpo tá pedindo descanso. Amanhã tentarei escrever o relato de
hoje, antes de colocar o pé na estrada.
Beijos saudosos da sua
mana,
Léia
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