quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 7


17/09/15

Niquinha, Querida!

Ontem, o Caminho me alimentou! Literalmente. Toda vez que eu pensava “Estou com fome”, me aparecia um pé de fruta à beira da estrada. E o almoço me foi oferecido numa festividade de santo, como você vai constatar daqui a pouco. Só tive de comprar qualquer para coisa para comer à noite. Os peregrinos dizem que o Caminho toma conta de você. Ontem eu tive essa reconfortante sensação.
 Ontem também foi um dia especial porque Norma e Tom me emocionaram rezando um Terço por você! Como você já sabe, eles rezam um Terço todos os dias, enquanto caminham. Pois ontem eles me disseram que tinham decidido que o Terço seria oferecido por você. Eu, prontamente, disse que rezaria com eles. E assim foi. Enquanto caminhávamos por uma bela colina, coberta de parreirais, Norma ia puxando o Terço. Tom respondia em inglês e eu, silenciosamente, em português. Senti uma profunda emoção, nesse momento, e agradeci muito a Deus por todas as bênçãos que sinto estar recebendo. E, aos dois, pelo gesto sensível, generoso e solidário.
Como de costume, acordamos cedo ontem, mas eu tinha que enviar umas adições ao livro de Ascenso, e quis te escrever meu relato do dia anterior. O resultado é que saí de Puente La Reina às 11:30 da manhã. Norma e Tom tinham ido um pouco antes. O Caminho segue pela rua principal da cidade, com seu ar meio medieval e seu tom inteiramente ocre. Aproveitei para dar uma entradinha na Igreja de Santiago. Mesmo tendo sua construção iniciada no século XII, a Igreja me pareceu ter mais traços góticos que românicos, no interior. As abóbadas altíssimas, em forma de ogiva, o teto decorado e os altares barrocos causam impressão quando a gente entra. Rezei um pouco, ofereci a caminhada do dia e segui em frente. A saída de Puente La Reina é bem bonita, porque cruzamos o Rio Arga por uma preciosa ponte medieval, erguida por três rainhas de Navarra, justamente para facilitar a vida dos peregrinos.
Quando deixei Puente La Reina, ainda fazia um pouco de sol e se podia ver o céu azul entre as nuvens, mas logo o tempo mudou e o céu cinzento anunciou a chuva que viria a cair em pouco tempo. Ah! Uma coisa que você vai gostar de saber. Como acordei com a planta do pé direito reclamando bastante, e a coluna ainda me incomodando, decidi seguir o conselho de Natália (minha hospedeira da Estrella Guía), e excepcionalmente despachei minha mochila para Estella, pelo serviço de transporte. Assim, pude caminhar mais leve e dar uma folga ao meu corpo.
Ao longo do dia de ontem, subi e desci encostas, com campos de plantação e alguns trechos de arbustos. Cruzei rodovias e passei por baixo delas, em túneis que parecem ter sido feitos para tornar o caminho dos peregrinos um pouco mais seguro. Esses túneis costumam ter pichações, e algumas advogam por uma “Navarra libre”, ou alertam os peregrinos de que eles não estão na Espanha. Até onde eu sei, os movimentos separatistas por aqui andam sob controle, mas essas pichações, além de cartazes que vi em Pamplona, me dão a sensação de que esse será um fantasma permanente para esse país. Há de se ver o que acontecerá quando da sucessão do Rei Juan Carlos...
Cruzei o pequeno povoado de Mañeru, que tem a mesma configuração de casinhas brancas e ocre, algumas com paredes em pedra (mas pedra cor de ocre), ou paredes de cal com detalhes em pedra. Imagino que haja alguma legislação de ordenamento urbano que obrigue as novas construções a seguirem o padrão histórico, porque você percebe que as novas casas se harmonizam com as casas seculares. A Igreja local estava fechada. A essa altura você já deve ter se dado conta de que em todas essas cidadezinhas que o Caminho atravessa têm pelo menos uma Igreja secular (românica ou gótica). E eu tento entrar em todas que estão abertas e rezar por alguns minutos. Tinha combinado com Norma e Tom de encontrá-los nessa primeira povoação, mas estava tudo fechado e as ruas, desertas. Na verdade, fiquei feliz que eles não estivessem esperando por mim, porque acabei demorando mais que o previsto para sair de Puente La Reina.
Depois de Mañeru comecei a ver vários parreirais. É que o Caminho corta a região vinícola de Navarra. Nesse trecho, conheci Justo, um espanhol de seus cinquenta anos, que está fazendo um trecho do Caminho, pelo desafio da atividade física mesmo. Ele é maratonista. Foi ele quem me incentivou a colher um cacho de uva de um dos parreirais que margeiam o Caminho. A uva, negra, era pequenina e doce feito mel! Pouco antes, exatamente no ponto em que nos conhecemos, eu estava colhendo frutos de uma figueira ao pé da estrada. Os figos maduríssimos apodreciam pelo chão. Comi alguns deliciosos e curti demais a sensação de comer figo colhido diretamente do pé.
Conversando com Justo, cheguei até Zirauqui. Subi suas ladeiras íngremes e, quando cheguei na área central desse ayuntamiento, me deparei com uma surpreendente concentração de pessoas. Debaixo dos arcos de uma velha construção (a sede do ayuntamiento), senhores e senhoras, com roupas em branco e vermelho (as cores dos bascos), pareciam celebrar algo. Ao lado esquerdo, numa grande mesa, estavam dispostos pão fresquinho, queijo curado e vinho de Navarra. Vários peregrinos estavam parados ali, comendo e bebendo com os moradores da vila. Me aproximei de uma senhora de lenço vermelho no pescoço e perguntei o que estava acontecendo. Ela me explicou que eles estavam celebrando uma festa de patrono. Trata-se de uma semana de festividades, com comida e bebida oferecidos a toda a comunidade e seus visitantes, além de música e outras diversões. Ela logo me ofereceu pão, queijo e vinho. Claro que eu não ia recusar participar de algo tão especial. Sem falar que estava mesmo na hora do almoço. O pão estava super crocante e o queijo era muito saboroso. Provei um pouquinho de vinho tinto, que não me pareceu grandes coisas, e do rosado, de que gostei mais. Comi e bebi um pouco, fiquei observando o movimento, procurei meus parceiros de caminhada com os olhos, e como não os encontrei, retomei meu caminho por entre as ruas estreitas. Bem na saída de Zirauqui, escutei alguém me chamando. Eram Norma e Tom. Fiquei feliz de reencontrá-los. Ao deixarmos o povoado para trás, vimos um enorme mapa mundi “desenhado” numa colina, com a própria vegetação.
Cruzamos uma pontezinha de pedra muito fofa e seguimos andando pelo meio dos parreirais. Foi nesse momento que rezamos o Terço. Mais à frente, passamos por campos de plantação, desnudos a essa altura do ano, e cheios de pedras! Eu e Norma ficamos curiosas para saber o que é que se cultiva nesses campos tão pedregosos. Algo será, porque os campos estavam arados, prontos para a semeadura. Subimos consideravelmente. E olhe que Natália tinha dito que a caminhada de hoje era fácil, quase toda plana! Fiquei imaginando que qualquer coisa que não signifique subir 700 metros de uma tirada pode ser considerada uma caminhada plana. O fato é que esse trecho entre Puente La Reina e Estella exige bastante da pessoa. O lado bom é que eu já não fico sem fôlego nas subidas (como nos dois primeiros dias). Mas o pé direito sentiu bastante a caminhada de ontem. A certa altura, não sei nem como, porque eu estava vestindo minha comprida capa de chuva, uma vespa me picou a batata da perna. Senti uma pontada de dor aguda e vi a danada agarrada na minha calça legging. Olha que com tecido e tudo pelo meio, a picada ardeu que só a bexiga. À noite pus cortisona e hoje também, mas até agora tô sentindo arder, e uma grande área em torno está vermelha e meio endurecida. O lado bom é que, ontem, a dor da picada ajudou a me distrair um pouco da dor no pé.
Chegamos a Lorca. Mais um povoadozinho composto de uma rua principal e três paralelas. Paramos para tomar um refresco e descansar das subidas. Só que Tom estava com muita dor no tornozelo (ele é um senhor de 66 anos e vê-se que teve o vigor físico debilitado pelo tratamento de câncer). Chamamos um táxi para levá-lo a Estella. Eu e Norma continuamos nossa caminhada sozinhas. Fomos conversando, paramos para colher figos (alguns dulcíssimos), uvas, atravessamos campos com enormes girassóis, que de tão grandes já nem conseguem girar para o lado do sol, e assim chegamos até a penúltima parada, Villatuerta. A essa altura eu já estava morta! O pé incomodando bastante (imagine se eu estivesse com a mochila). Paramos na cafeteria do ginásio local, para descansar um pouco, antes do derradeiro esforço. É nesses momentos que eu penso que a pessoa precisa ter uma motivação muito forte para fazer todo o Caminho, ou então, ser um desportista regular, com excelente condicionamento físico.
Antes de chegar a Estella, se passa pela Ermida de São Miguel, que fica a alguns metros da estrada. A curiosidade venceu o cansaço e lá fomos nós pela estradinha que leva à Ermida. É uma edificação medieval preciosa. Uma casinha de pedra, com um altar e um crucifixo. Creio que servisse para acolher os peregrinos quando não havia esses confortos atuais, de albergues em cada cidadezinha, com camas confortáveis e banho quente. Sobre o altar, pedras, bilhetes, fotos, ramos de plantas deixados pelos peregrinos, em busca de alguma Graça. Em torno à Ermida, um belo olival. Pena que as azeitonas ainda estivessem verdes. Alerto que uma azeitona verde é um horror de amargura! (eu não ia perder a oportunidade de provar uma azeitona colhida no pé, né?).
O último quilômetro e meio foi penoso. Mas, finalmente chegamos a Estella. Creio que Norma e eu fomos os últimos peregrinos do dia a chegar à cidade. Bem na entrada, uma enorme Igreja domina a cena, porque além do porte monumental, está numa colina. Mais ao alto, ruínas de algum antigo mosteiro. Heras e arbustos floridos davam um encanto especial a esse cenário. A Igreja, do Santo Sepulcro, estava fechada. Mais adiante, as ruelas de ar medieval, e a bela e elevada torre de outra Igreja. Tomamos o elevador e fomos visitar o claustro do século XII. Lindíssimo, com uma fonte no meio e rosas maravilhosas em volta. Descendo umas escadas, entramos na Igreja, dedicada a São Pedro. Lindo exemplar da arquitetura românica, com suas arcadas mais arredondadas e uma simplicidade na decoração interior que me dá maior sensação de paz e de conexão com Deus do que as rebuscadas e mais sombrias catedrais góticas. Em geral, as Igrejas de estilo românico (tu lembra que é anterior ao gótico?), têm poucas imagens no altar. Essa, de São Pedro, tem apenas três: um belo crucifixo no meio, uma imagem de Nossa Senhora de um lado (daquela que já te descrevi antes), linda, morena, com um manto dourado, e uma imagem de São Pedro sentado em seu trono. Numa das naves laterais, um quadro interessantíssimo da Santíssima Trindade, com Deus Pai segurando Jesus desfalecido no colo, como se ele tivesse acabado de ser tirado da cruz. Entre os dois, a Pomba do Espírito Santo. Nunca tinha visto essa representação. Triste, mas interessante.

Chegamos ao Mosteiro dos Capuchinhos, onde tínhamos reserva, às 20:15. O recepcionista nos esperava do lado de fora, porque Tom estava preocupadíssimo e acho que tinha transmitido o nervosismo aos outros. Fomos direto ao refeitório, jantamos e depois ainda assistimos a uma breve missa, celebrada por Padre Thomas, na Igrejinha do Mosteiro, também ela fofa de simplicidade. Uma imagem de Nossa Senhora do Rocamador (acho que descobri a origem dessa imagem de Nossa Senhora sentadinha, com o Menino Jesus no colo e um globo na mão) e um crucifixo meio de lado). Padre Thomas também estava pernoitando por lá, e ficou nos esperando para celebrar missa. Francisco, o cubano de belos olhos azuis e tristes, estava com ele. Pelo que percebi, estão caminhando juntos. Quando subimos aos quartos já eram mais de dez horas. Todos estavam dormindo e o quarto estava um breu. Minha lanterninha de um dólar foi a salvação! Tomei banho, pus remédio nos pés e nas costas e desmaiei no meu beliche. Estava muito cansada e com dores, mas, na missa, agradeci muito a Deus por mais esse dia de caminhada. Não me importo de sentir dores. Acho que elas fazem parte do Caminho. Tudo que eu quero é ter condições de concluir cada caminhada diária. Acho que o Caminho é isso. Um dia de cada vez.

Beijos saudosos,

Léia

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