quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: Visitando os Mosteiros de Nájera e San Millán


23/09/15

Oi, Niquinha,
Óia eu aqui outra vez!
Então, quero te contar agora sobre o belo dia de ontem.
Como você já sabe, de manhã cedo fui com Danielle aos Correios e depois de tomar um café com ela, fui visitar os monumentos religiosos de Nájera. A Igreja de Santa Elena (sec. XVII), que é parte do Convento das Irmãs Clarissas, não tem nada de muito especial. A Igreja da Santa Cruz (sec. VII) eu achei propriamente feia e sombria. Já o Mosteiro de Santa María La Real é bem bonito e vale demais a visita. A edificação é de princípios do século VXI e conserva muito de seus traços e peças originais. A Igreja é gótica e tem um altar principal barroco rebuscadíssimo, com uma particularidade: nas laterais tem imagens dos reis que fundaram o Mosteiro. Segundo a lenda, o rei Don García Sánchez III saiu um dia para caçar e, seguindo seu falcão, chegou a uma caverna onde estava uma imagem de Nossa Senhora, um sino, uma lâmpada e um vaso com açucenas. Logo após, esse rei venceu uma batalha contra os muçulmanos e decidiu erguer o Mosteiro em agradecimento à Virgem. Por isso é um Mosteiro Real e abriga tumbas de vários reis. Essas tumbas ficam na parte posterior da Igreja, que é um Mausoléu. E no fundo do Mausoléu está a cova onde supostamente o rei encontrou a Imagem de Nossa Senhora. Uma estátua em madeira, do século XIV, reproduz a Imagem de Nossa Senhora da Rosa, que é semelhante às Virgens sentadas que venho te descrevendo, só que ela tem uma rosa na mão.
Só para esclarecer, os fundos da Igreja efetivamente encontram uma grande formação arenosa que se situa nos fundos de Nájera. É uma pequena montanha de algum tipo de arenito (espero não estar usando uma expressão muito equivocada), que se dispõe em camadas, de uma cor meio avermelhada, e cheia de covas, nas quais vivem muitas cegonhas. O Mosteiro foi construído de encontro a essa formação e a cova mítica está exposta à visitação.
O claustro do Mosteiro é igualmente gótico, com belos portais rendilhados, esculpidos em pedra, em torno ao pátio, com sua fonte típica dessas construções. Agora, o que eu mais gostei nesse Mosteiro foi o coro, onde os monges cantavam e rezavam diariamente. Tive a sorte de chegar justo na hora em que ia ter uma visita guiada ao coro, que fica suspenso. É um belo trabalho em madeira esculpida, de princípios do século XVI, com uma pintura ao fundo, onde estão representadas cenas com os reis e sua corte. Os assentos são uma preciosidade. São retráteis e como os monges deviam cantar de pé, os assentos têm umas carinhas esculpidas na parte inferior, de modo que quando estavam fechados, ainda assim ofereciam uma espécie de apoio para que os monges pudessem apoia os traseiros e descansar pernas e pés. Esses apoios se chamam misericórdias. O mais interessante é que as carinhas são alegóricas. Algumas representam pecados capitais, a morte, lobo em pele de cordeiro... muito interessante.
Após a visita a esse Mosteiro, me dirigi ao albergue, com a ideia de usar o código de entrada (que Maitê tinha me dado) e preparar meu almoço, antes de tomar o ônibus para San Millán de la Cogolla. Para meu azar, quando me aproximei da porta, uma peregrina veio a meu encontro, me dizendo logo que o albergue só abria a uma hora e que eles eram muito severos com o horário. Outros peregrinos aguardavam à porta. Eu não quis tumultuar o processo, acusando o meu privilégio de saber a senha, então, passei batida e fui para o parque à beira do rio, e fiz um lanche com o que eu tinha na mochilinha: damascos frescos, iogurte e croissants. Deixaria para comer minha salada quando chegasse de San Millán.
Comi e me dirigi à estação de ônibus. De manhã eu tinha passado na Oficina de turismo e tomado todas as informações, além de ter feito a reserva para a visita a Suso. Fiquei esperando o ônibus na praça e acompanhando uma conversa saborosa entre uma senhorinha e um senhor ainda mais idoso que ela. Eles só se conheciam de vista, mas entabularam um animado bate-papo sobre personagens da cidadezinha onde a senhora mora. E que fulano morreu, sicrano casou-se com beltrana, porque o filho isso, a filha aquilo... Típica conversa de gente de Interior, onde todo mundo se conhece e alguém sempre é filho de um fulano ou pai de sicrano. O ônibus chegou com uns quinze minutos de atraso, que ninguém está na Inglaterra. Subi junto com a senhorinha e fomos conversando as duas.
A viagem até San Millán leva uma meia hora, porque o ônibus vai entrando em vários povoados. Fui desfrutando da paisagem graciosa. Subimos uma serra e seguimos por uma estradinha cheia de curvas, em meio a colinas e vales bem verdinhos. Super bucólico. Não demorou muito, cheguei a San Millán. O motorista me perguntou se eu ia voltar, e diante da minha resposta afirmativa, me explicou direitinho onde eu devia pegar o ônibus de volta e me escreveu num papelzinho, a que horas eu deveria estar na parada. Achei tão gentil da parte dele.
A parada do ônibus fica na entrada da cidade. Precisei caminhar toda a rua principal (deve haver umas duas paralelas) até chegar ao Mosteiro de Yuso. De repente, após uma curva, a enorme construção se apresenta diante dos seus olhos, numa parte mais baixa, ao pé de uma ladeira. O Mosteiro estava fechado, como tudo o mais na cidade, porque eram duas e pouca da tarde, hora da siesta. Fiquei sentadinha no café do hotel de charme que ocupa uma parte do Mosteiro, escrevendo para você. Às três e meia me dirigi à bilheteria e comprei meu tíquete para a visita ao Mosteiro de Suso. Os nomes dos dois Mosteiros vêm do latim e significam acima (Suso) e abaixo (Yuso). Logo, Suso é o mosteiro que fica no alto da montanha, enquanto Yuso fica no vale em que também se situa o povoado de San Millán.
San Millán foi um ermitão que viveu no século V, nas covas acima da cidadezinha. É o mesmo tipo de formação arenosa que se vê em Nájera. Pois ele viveu ali e arregimentou seguidores, que viviam com ele nas covas e continuaram a viver ali após sua morte. As covas se converteram em ermida, e no século X começou a ser erguido um Mosteiro. Esse mosteiro é dos raros na Espanha que têm arquitetura moçárabe, porque nessa época a Espanha estava ocupada pelos muçulmanos. É emocionante de ver. Os arcos têm a forma típica das construções árabes. E nas pedras da entrada se encontram “grafites” também dos séculos X e XI. Ao fundo, estão as covas onde, em princípio, viveram San Millán e seus discípulos. Embora tenha sido enterrado ali, seus restos mortais foram transferidos para Yuso por um rei. Diz a lenda que o rei determinou que os restos do Santo fossem transportados a Nájera, só que os bois que puxavam o carro pararam na altura de Yuso e se recusaram a seguir adiante.  
Ainda tem mais um detalhe, os dois Mosteiros foram importantes centros de copismo. Códigos e livros de cantos eram copiados pelos monges, e as primeiras palavras em castelhano e em basco de que se tem registro estão em códices copiados em Suso. Só que como o Mosteiro está vazio (o edifício, hoje, é apenas para visitação), esses documentos foram levados para Yuso, que por razões óbvias abriga um centro de estudos de linguística espanhola.
Em Suso conheci Don Paco, um médico holista, formado em medicina chinesa, que me ensinou umas técnicas de massagem para aliviar as dores nos pés, joelho e costas. Adorei a conversa com ele e já comecei a praticar as técnicas. Não custa tentar! Foi ele também a primeira pessoa que, nesses últimos dois dias, me falou em cura interior. Do nada ele me disse que preciso me dedicar a um processo de cura que passa pelo perdão. Ele me disse que minhas dores estão associadas a isso. Eis um assunto para a gente conversar com mais calma. Farei isso em outra ocasião.
Após a visita a Suso, descemos a montanha no micro-ônibus e fomos fazer a visita de Yuso. Esse já é um Mosteiro bem mais recente. Data dos séculos XVI e XVII. Foi construído pelos Beneditinos, embora hoje seja habitado pelos Agostinhos. De fora, o prédio impressiona pelo seu tamanho. Dentro, impressiona pela opulência da Igreja, com enormes portas trabalhadas, com muito ouro e pinturas maneiristas. O altar principal até que é sóbrio, quando comparado com as talhas barrocas. No meio, uma enorme pintura representando San Millán numa batalha contra os mouros. Curiosidade: ele monta um unicórnio e empunha uma espada de fogo. Ao fundo da nave principal, dois coros, um superior e um inferior. O Inferior é luxuoso e tem uma enorme peça de madeira no meio, giratória, onde se punham os livros de cânticos. Os dois coros são em madeira entalhada, e têm as já mencionadas misericórdias. Separando o coro da parte posterior da Igreja, uma enorme porta dourada, belo trabalho em madeira, encimada por um grande círculo vazado, por onde passa a luz que entra pela rosácea central da parede. Duas vezes no ano a luz que atravessa a rosácea coincide exatamente com o círculo desse portal e ilumina o centro do altar. Um barato, né?
A sacristia do Mosteiro também é interessante, com suas paredes e tetos decorados com uma pintura rebuscada, acho que neoclássica. Porém, o que eu mais gostei dessa visita foi a biblioteca onde os monges guardavam os livros de cânticos e missários. Trata-se de um compartimento embutido na parede, com um sistema sofisticado de ventilação, para evitar o mofo, onde a gente vê enoooormes livros, que de tão grandes e pesados tinham de ser transportados por quatro monges. Podemos ver os livros, encadernados em couro! Uma coisa preciosa!
Após a visita ao Mosteiro de Yuso, como eu ainda tinha quase duas horas até o horário do ônibus, decidi subir a pé até Suso, por uma estradinha que segue pelo meio da montanha. É uma caminhada de menos de dois quilômetros, muito agradável. Nessa subida pude ter uma vista ainda mais encantadora de Suso. Visto do lado de fora, encravado no coração da montanha, em meio à vegetação (que começa a adquirir cores alaranjadas do outono) e colado à parede de areia, o Mosteiro de Suso é mesmo uma graça. A gente se sente quase como se estivesse em tempos medievais. Pensei muito em vocês, em como vocês teriam adorado visitar esse lugar, papai e Quel mais particularmente.
Desci por uma outra estradinha, que segue rente à pista de asfalto, tomei a rua principal e segui até o ponto de ônibus. Havia um senhorzinho, de oitenta e cinco anos, sentado no banco, descansando de sua caminhada diária. Ele tinha uns dois dentes na arcada inferior, e me custava um pouco compreender o que dizia. Ainda assim, ficamos conversando, até que chegou uma senhorinha do povoado e começou a conversar conosco. O senhorzinho se mudou pra uma vila próxima há poucos meses. Os dois se conheciam de vista. E de novo testemunhei uma boa “conversa de comadres” de Interior. Ambos verificando os conhecidos em comuns, falando das famílias das redondezas. Muito pitoresco.
Peguei meu ônibus e fui apreciando um belíssimo pôr-do-sol. Estava faminta quando cheguei a Nájera. Ao voltar para o albergue, fiz logo minha saladinha, e enquanto jantava conversei com um rapaz mexicano, chamado Fernando e uma moça alemã, se não me engano. Fernando está com uma tendinite no pé e também tirou o dia para repousar, em Nájera. Às dez horas, toque de recolher. Tomei banho e fui pro meu quarto, com apenas três pessoas. O casal canadense, que apenas tinha cumprimentado mais cedo, já estava dormindo. Mais uma vez, minha lanterninha foi providencial. Dormi uma boa noite de sono. E o resto você já sabe.
Amanhã tem mais. Fica com Deus, Minha Irmã!
Saudades muitas de todos.
Beijos mil,

Léia

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