23/09/15
Oi, Niquinha,
Óia eu aqui outra vez!
Então, quero te contar
agora sobre o belo dia de ontem.
Como você já sabe, de
manhã cedo fui com Danielle aos Correios e depois de tomar um café com ela, fui
visitar os monumentos religiosos de Nájera. A Igreja de Santa Elena (sec.
XVII), que é parte do Convento das Irmãs Clarissas, não tem nada de muito
especial. A Igreja da Santa Cruz (sec. VII) eu achei propriamente feia e
sombria. Já o Mosteiro de Santa María La Real é bem bonito e vale demais a
visita. A edificação é de princípios do século VXI e conserva muito de seus
traços e peças originais. A Igreja é gótica e tem um altar principal barroco
rebuscadíssimo, com uma particularidade: nas laterais tem imagens dos reis que
fundaram o Mosteiro. Segundo a lenda, o rei Don García Sánchez III saiu um dia
para caçar e, seguindo seu falcão, chegou a uma caverna onde estava uma imagem
de Nossa Senhora, um sino, uma lâmpada e um vaso com açucenas. Logo após, esse
rei venceu uma batalha contra os muçulmanos e decidiu erguer o Mosteiro em
agradecimento à Virgem. Por isso é um Mosteiro Real e abriga tumbas de vários
reis. Essas tumbas ficam na parte posterior da Igreja, que é um Mausoléu. E no
fundo do Mausoléu está a cova onde supostamente o rei encontrou a Imagem de
Nossa Senhora. Uma estátua em madeira, do século XIV, reproduz a Imagem de
Nossa Senhora da Rosa, que é semelhante às Virgens sentadas que venho te
descrevendo, só que ela tem uma rosa na mão.
Só para esclarecer, os
fundos da Igreja efetivamente encontram uma grande formação arenosa que se
situa nos fundos de Nájera. É uma pequena montanha de algum tipo de arenito
(espero não estar usando uma expressão muito equivocada), que se dispõe em
camadas, de uma cor meio avermelhada, e cheia de covas, nas quais vivem muitas
cegonhas. O Mosteiro foi construído de encontro a essa formação e a cova mítica
está exposta à visitação.
O claustro do Mosteiro
é igualmente gótico, com belos portais rendilhados, esculpidos em pedra, em
torno ao pátio, com sua fonte típica dessas construções. Agora, o que eu mais
gostei nesse Mosteiro foi o coro, onde os monges cantavam e rezavam
diariamente. Tive a sorte de chegar justo na hora em que ia ter uma visita
guiada ao coro, que fica suspenso. É um belo trabalho em madeira esculpida, de
princípios do século XVI, com uma pintura ao fundo, onde estão representadas
cenas com os reis e sua corte. Os assentos são uma preciosidade. São retráteis
e como os monges deviam cantar de pé, os assentos têm umas carinhas esculpidas
na parte inferior, de modo que quando estavam fechados, ainda assim ofereciam
uma espécie de apoio para que os monges pudessem apoia os traseiros e descansar
pernas e pés. Esses apoios se chamam misericórdias. O mais interessante é que
as carinhas são alegóricas. Algumas representam pecados capitais, a morte, lobo
em pele de cordeiro... muito interessante.
Após a visita a esse
Mosteiro, me dirigi ao albergue, com a ideia de usar o código de entrada (que
Maitê tinha me dado) e preparar meu almoço, antes de tomar o ônibus para San
Millán de la Cogolla. Para meu azar, quando me aproximei da porta, uma
peregrina veio a meu encontro, me dizendo logo que o albergue só abria a uma
hora e que eles eram muito severos com o horário. Outros peregrinos aguardavam
à porta. Eu não quis tumultuar o processo, acusando o meu privilégio de saber a
senha, então, passei batida e fui para o parque à beira do rio, e fiz um lanche
com o que eu tinha na mochilinha: damascos frescos, iogurte e croissants.
Deixaria para comer minha salada quando chegasse de San Millán.
Comi e me dirigi à
estação de ônibus. De manhã eu tinha passado na Oficina de turismo e tomado
todas as informações, além de ter feito a reserva para a visita a Suso. Fiquei
esperando o ônibus na praça e acompanhando uma conversa saborosa entre uma
senhorinha e um senhor ainda mais idoso que ela. Eles só se conheciam de vista,
mas entabularam um animado bate-papo sobre personagens da cidadezinha onde a
senhora mora. E que fulano morreu, sicrano casou-se com beltrana, porque o
filho isso, a filha aquilo... Típica conversa de gente de Interior, onde todo
mundo se conhece e alguém sempre é filho de um fulano ou pai de sicrano. O
ônibus chegou com uns quinze minutos de atraso, que ninguém está na Inglaterra.
Subi junto com a senhorinha e fomos conversando as duas.
A viagem até San
Millán leva uma meia hora, porque o ônibus vai entrando em vários povoados. Fui
desfrutando da paisagem graciosa. Subimos uma serra e seguimos por uma
estradinha cheia de curvas, em meio a colinas e vales bem verdinhos. Super
bucólico. Não demorou muito, cheguei a San Millán. O motorista me perguntou se
eu ia voltar, e diante da minha resposta afirmativa, me explicou direitinho
onde eu devia pegar o ônibus de volta e me escreveu num papelzinho, a que horas
eu deveria estar na parada. Achei tão gentil da parte dele.
A parada do ônibus
fica na entrada da cidade. Precisei caminhar toda a rua principal (deve haver
umas duas paralelas) até chegar ao Mosteiro de Yuso. De repente, após uma
curva, a enorme construção se apresenta diante dos seus olhos, numa parte mais
baixa, ao pé de uma ladeira. O Mosteiro estava fechado, como tudo o mais na
cidade, porque eram duas e pouca da tarde, hora da siesta. Fiquei sentadinha no café do hotel de charme que ocupa uma
parte do Mosteiro, escrevendo para você. Às três e meia me dirigi à bilheteria
e comprei meu tíquete para a visita ao Mosteiro de Suso. Os nomes dos dois
Mosteiros vêm do latim e significam acima (Suso) e abaixo (Yuso). Logo, Suso é
o mosteiro que fica no alto da montanha, enquanto Yuso fica no vale em que
também se situa o povoado de San Millán.
San Millán foi um
ermitão que viveu no século V, nas covas acima da cidadezinha. É o mesmo tipo
de formação arenosa que se vê em Nájera. Pois ele viveu ali e arregimentou
seguidores, que viviam com ele nas covas e continuaram a viver ali após sua
morte. As covas se converteram em ermida, e no século X começou a ser erguido
um Mosteiro. Esse mosteiro é dos raros na Espanha que têm arquitetura moçárabe,
porque nessa época a Espanha estava ocupada pelos muçulmanos. É emocionante de
ver. Os arcos têm a forma típica das construções árabes. E nas pedras da
entrada se encontram “grafites” também dos séculos X e XI. Ao fundo, estão as
covas onde, em princípio, viveram San Millán e seus discípulos. Embora tenha
sido enterrado ali, seus restos mortais foram transferidos para Yuso por um
rei. Diz a lenda que o rei determinou que os restos do Santo fossem
transportados a Nájera, só que os bois que puxavam o carro pararam na altura de
Yuso e se recusaram a seguir adiante.
Ainda tem mais um
detalhe, os dois Mosteiros foram importantes centros de copismo. Códigos e
livros de cantos eram copiados pelos monges, e as primeiras palavras em
castelhano e em basco de que se tem registro estão em códices copiados em Suso.
Só que como o Mosteiro está vazio (o edifício, hoje, é apenas para visitação),
esses documentos foram levados para Yuso, que por razões óbvias abriga um
centro de estudos de linguística espanhola.
Em Suso conheci Don
Paco, um médico holista, formado em medicina chinesa, que me ensinou umas
técnicas de massagem para aliviar as dores nos pés, joelho e costas. Adorei a
conversa com ele e já comecei a praticar as técnicas. Não custa tentar! Foi ele
também a primeira pessoa que, nesses últimos dois dias, me falou em cura
interior. Do nada ele me disse que preciso me dedicar a um processo de cura que
passa pelo perdão. Ele me disse que minhas dores estão associadas a isso. Eis
um assunto para a gente conversar com mais calma. Farei isso em outra ocasião.
Após a visita a Suso,
descemos a montanha no micro-ônibus e fomos fazer a visita de Yuso. Esse já é
um Mosteiro bem mais recente. Data dos séculos XVI e XVII. Foi construído pelos
Beneditinos, embora hoje seja habitado pelos Agostinhos. De fora, o prédio
impressiona pelo seu tamanho. Dentro, impressiona pela opulência da Igreja, com
enormes portas trabalhadas, com muito ouro e pinturas maneiristas. O altar
principal até que é sóbrio, quando comparado com as talhas barrocas. No meio,
uma enorme pintura representando San Millán numa batalha contra os mouros.
Curiosidade: ele monta um unicórnio e empunha uma espada de fogo. Ao fundo da
nave principal, dois coros, um superior e um inferior. O Inferior é luxuoso e
tem uma enorme peça de madeira no meio, giratória, onde se punham os livros de
cânticos. Os dois coros são em madeira entalhada, e têm as já mencionadas
misericórdias. Separando o coro da parte posterior da Igreja, uma enorme porta
dourada, belo trabalho em madeira, encimada por um grande círculo vazado, por
onde passa a luz que entra pela rosácea central da parede. Duas vezes no ano a
luz que atravessa a rosácea coincide exatamente com o círculo desse portal e
ilumina o centro do altar. Um barato, né?
A sacristia do
Mosteiro também é interessante, com suas paredes e tetos decorados com uma
pintura rebuscada, acho que neoclássica. Porém, o que eu mais gostei dessa
visita foi a biblioteca onde os monges guardavam os livros de cânticos e
missários. Trata-se de um compartimento embutido na parede, com um sistema
sofisticado de ventilação, para evitar o mofo, onde a gente vê enoooormes
livros, que de tão grandes e pesados tinham de ser transportados por quatro
monges. Podemos ver os livros, encadernados em couro! Uma coisa preciosa!
Após a visita ao
Mosteiro de Yuso, como eu ainda tinha quase duas horas até o horário do ônibus,
decidi subir a pé até Suso, por uma estradinha que segue pelo meio da montanha.
É uma caminhada de menos de dois quilômetros, muito agradável. Nessa subida
pude ter uma vista ainda mais encantadora de Suso. Visto do lado de fora,
encravado no coração da montanha, em meio à vegetação (que começa a adquirir
cores alaranjadas do outono) e colado à parede de areia, o Mosteiro de Suso é
mesmo uma graça. A gente se sente quase como se estivesse em tempos medievais.
Pensei muito em vocês, em como vocês teriam adorado visitar esse lugar, papai e
Quel mais particularmente.
Desci por uma outra
estradinha, que segue rente à pista de asfalto, tomei a rua principal e segui
até o ponto de ônibus. Havia um senhorzinho, de oitenta e cinco anos, sentado
no banco, descansando de sua caminhada diária. Ele tinha uns dois dentes na
arcada inferior, e me custava um pouco compreender o que dizia. Ainda assim,
ficamos conversando, até que chegou uma senhorinha do povoado e começou a
conversar conosco. O senhorzinho se mudou pra uma vila próxima há poucos meses.
Os dois se conheciam de vista. E de novo testemunhei uma boa “conversa de comadres”
de Interior. Ambos verificando os conhecidos em comuns, falando das famílias
das redondezas. Muito pitoresco.
Peguei meu ônibus e
fui apreciando um belíssimo pôr-do-sol. Estava faminta quando cheguei a Nájera.
Ao voltar para o albergue, fiz logo minha saladinha, e enquanto jantava conversei
com um rapaz mexicano, chamado Fernando e uma moça alemã, se não me engano.
Fernando está com uma tendinite no pé e também tirou o dia para repousar, em
Nájera. Às dez horas, toque de recolher. Tomei banho e fui pro meu quarto, com
apenas três pessoas. O casal canadense, que apenas tinha cumprimentado mais
cedo, já estava dormindo. Mais uma vez, minha lanterninha foi providencial.
Dormi uma boa noite de sono. E o resto você já sabe.
Amanhã tem mais. Fica
com Deus, Minha Irmã!
Saudades muitas de
todos.
Beijos mil,
Léia
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