23/09/15
Boa noite, Nica!
Estou em Cirueña, um
povoadozinho de nada, mas numa pousadinha bem simpática. Tenho sido tão
abençoada com minhas hospedagens. Com raras exceções, tenho ficado em lugares
bem organizadinhos, e com hospedeiros simpáticos e acolhedores. É o caso de
Amparo, a dona do Albergue Turístico
Victoria. Esse albergue é na casa dela mesmo. Então, não tem essas regras
de hora de dormir. E tem uma grande mesa de jantar, com cadeiras confortáveis,
onde é mais cômodo escrever. Acabamos de jantar faz pouco. Um grande grupo de
peregrinos: alemães, canadenses, italianos, espanhóis e eu. Foi um jantar bem
animado. E a comidinha, caseira, saborosa.
Vou começar te
relatando o dia de hoje, que foi bem tranquilo. Saí de Nájera umas 9:30 da
manhã. O dia estava nublado, com toda cara de chuva. E fazia um friozinho bom.
Comecei minha caminhada sozinha. Pra variar, fui a última a deixar o albergue.
A saída de Nájera é bem mais agradável que a entrada. Mais ordenada, ainda que
as casas sejam de feição contemporânea. Na realidade, poucos metros após a
parte histórica, se chega ao fim da área urbana. Começa, então, uma estradinha
que segue ao lado das formações arenosas que parecem ser típicas dessa região.
Fui seguindo as setas pintadas nessas rochas. No início da caminhada a paisagem
é um pouco árida. Além desses morros pelados e cor de ferrugem, passei por
alguns descampados, onde não havia nenhum tipo de plantação. Porém, logo
adiante reapareceram os parreirais e surgiu uma bela cadeia montanhosa no
horizonte. As montanhas, que nem parecem ser muito altas, estavam envoltas em
neblina, formando uma bela paisagem.
Ventou muuuuito hoje,
quase o caminho todo. Um vento gelado. Mesmo com o casaco, senti frio. Solucionei
meu problema colocando minha capa de chuva, que imediatamente cortou o efeito
do vento. Quero dizer, do frio, porque o vento era tão forte que tornou a
caminhada mais pesada, especialmente quando dava de frente, criando uma força
contrária ao meu movimento. Também choveu várias vezes ao longo do dia. Chuva
fininha, contudo, que a capa resolveu muito bem. Cheguei ao meu destino
sequinha. Caminhei mais uma vez em meio a parreirais, e também junto a campos
com plantação de alguma verdura que não consegui identificar. Só sei que
formavam um bonito tapete verde. Começou a vindima aqui na Rioja. Pequenas
carretinhas carregam as uvas. As estradas entre os parreirais, vazias até
anteontem, se mostram mais movimentadas.
Cruzei um povoado
minúsculo, chamado Azofra (não consegui visitar a Igreja de Nossa Senhora dos
Anjos, que estava fechada) e segui adiante, até Cirueña, para onde havia
despachado minha mochila. Decidi fazer uma caminhada mais curta hoje. Apenas
15kms e meio. Era caminhada de subida, então, achei prudente poupar as
articulações e as costas. Creio que meu pé está melhorando. E também não senti
o joelho hoje. A única coisa que continua me aperreando são as costas, na
região dorsal. Ah! Tenho sentido uma sensibilidade ao doce no meu último molar
inferior esquerdo. Parece que caiu um pedacinho de obturação. Talvez seja
melhor procurar um dentista em Burgos, não? Tô com medo de acaba tendo dor de
dente, se não cuidar logo. Burgos é a próxima grande cidade no Caminho. Pela minha
programação, devo chegar por lá em quatro dias.
Na estrada, hoje,
reencontrei Terry, a californiana com quem dividi dormitório em Navarrete,
lembra? Ela está com dores no joelho e, como eu, caminha devagar. Tivemos uma
conversa bem interessante. Terry está fazendo o Caminho em busca de uma maior
conexão com Deus e com ela mesma. Caminha em busca de calma (para sair da
rotina estressante) e de bênçãos que crê estarem reservadas para ela.
Nessa conversa, algo
interessante aconteceu. Enquanto eu caminhava sozinha, pensando em como
organizar melhor meu tempo para meditar mais, ler e crescer na Fé, algo dentro
de mim falou: Esse não é um tempo de
aprendizagem, mas de cura. Pois quando eu estava conversando com Terry e
falando sobre minha própria motivação para fazer o Caminho, ela me disse: Muito bem. E você também vai curar a você
mesma. É a terceira vez, em dois dias, que esse tema da minha própria cura
aparece. É engraçado porque a gente normalmente não pensa que precisa se curar
espiritual e emocionalmente. E, no entanto, todos nós temos nossas cicatrizes
de alma. Há sempre eventos e pessoas que nos feriram, mesmo que
involuntariamente, e que deixaram marcas no nosso inconsciente que precisam ser
tratadas. Agora me parece claro que devo usar esse tempo de caminhada para
analisar, des-cobrir (levantar o véu que cobre) essas feridas e tratá-las.
Normalmente, isso envolve perdoar outros e se perdoar pelos próprios erros. É o
que pretendo fazer de agora em diante.
Bom, Cirueña é uma
cidade estranha. O povoadozinho, como te disse, é minúsculo e até meio feioso.
A Igreja (Santo André) não guarda nenhum traço de sua construção original, pelo
menos no exterior. Estava fechada e não consegui visitá-la. A parte esquisita
está antes do povoado. Há um belo campo de golfe, seguido de vários condomínios
(apartamentos e casas), quase totalmente vazios. Parece uma cidade de faroeste.
Terry até comentou que deviam trazer os refugiados da Síria pra cá. Placas de Vende-se estão por toda parte. É de dar
dó ver uma área residencial tão extensa, meio que abandonada. Indaguei Amparo
(a dona da pousada a respeito) e ela me disse que são residências de veraneio,
e que no mês de agosto a cidade fica mais movimentada. Ainda assim, há mesmo
muitos apartamentos vazios, por causa da crise financeira que vem afetando a
Espanha nos últimos anos.
Na entrada do povoado,
me despedi de Terry e segui para o meu albergue. Estou no quarto com um casal
canadense simpaticíssimo. Eles têm a minha idade e já tem filhos de 22 e 18
anos. Agora que os filhos estão grandes, resolveram tirar um tempo para viajar.
Estão fazendo o Caminho para se redescobrirem como pessoas e como casal.
Adorei. Finalmente passei a encontrar mais pessoas que estão fazendo o Caminho
com alguma motivação de natureza espiritual ou existencial. No jantar, também
conheci um casal alemão, na faixa dos 50, que está fazendo o Caminho para rezar
pelos seus entes queridos e pedir graças. Achei tão bonitinho quando o marido,
em certo momento, disse que espera que quando eles voltem para a Alemanha
encontrem as coisas diferentes, transformadas pela Graça divina. Eles estão
caminhando há dois meses. Começaram na Alemanha!
Essas foram as
novidades de hoje. Para que não fique uma carta tão comprida, vou encerrar por
aqui e te escrever uma nova carta sobre o maravilhoso dia de ontem.
Beijocas, Niquinha!
Léia
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