segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 11


21/09/15

Boa noite, Nica!

Estou te escrevendo de Nájera. Hoje andei 16,4 kms. Mas foi uma caminhada tranquila. Despachei minha mochila pelo segundo dia consecutivo, e minha coluna está agradecendo. Pra ser sincera, fiz isso porque três dias atrás meu joelho esquerdo deu um estalo num dado momento (e nem foi numa descida), e comecei a sentir um tiquinho de dor. O pé está melhorando. E a coluna, depois desse descanso de dois dias também começa a melhorar. Acho que vou seguir despachando a mochila por mais uns três dias, pra ver se a coluna e o pé desinflamam de vez. Você, mamãe e todo mundo podem ficar tranquilos. Estou sendo cuidadosa, porque quero fazer o Caminho todo! Não quero ter de parar da metade por imprudência ou arrogância. Já pude testemunhar que os que não têm a humildade de reconhecer os próprios limites pagam um preço caro no Caminho.
Deixe-me começar pelo dia de ontem. Eu tinha dormido a noite anterior em Viana, que até aqui foi uma das minhas cidades favoritas. Não apenas pelo Oasis, mas porque a cidade é uma gracinha e cheia de vida. À noite, quando fui à missa, adorei ver as ruas cheias dos seus moradores, crianças brincando na praça em frente à Igreja, bares animados, com senhorzinhos e senhorinhas tomando vinho. Dava pra ver que a população local estava na rua, curtindo a noite fresca, do mesmo jeito que os turistas. Seja por causa do chá de anis que Lauren me deu, seja porque eu tinha dormido mal em Sansol (pelo frio, lembra?), o fato é que dormi muitíssimo bem. Acordei cedo, contudo, com o habitual barulho dos peregrinos se organizando para pôr o pé na estrada.
Como de costume, fui das últimas a deixar o albergue. Eu tinha decidido despachar minha mochila grande. Quando estava preenchendo o envelope que a gente deixa preso à bagagem, com o dinheiro do transporte dentro, um casal de americanos se aproximou e me pediu ajuda para chamar um táxi, porque a esposa estava com dor no quadril, e eles não falam nada de espanhol. Claro que eu me prontifiquei a ajudá-los. Me lembrei na hora de uma das bem-aventuranças do peregrino: Bem-aventurado és, peregrino, se descobres que um passo atrás para ajudar o outro vale mais que cem passos à frente, sem olhar ao teu redor. Fui com eles até uma padaria próxima e pedi à senhora para ligar para um táxi. Infelizmente, o único taxista da cidade não estava em casa, e para chamar e outra cidade ia ficar muito caro. Eles acabaram decidindo despachar a mochila dela e fazer o percurso devagar. Voltamos ao albergue e eles foram preencher o papelzinho deles. Normalmente, quando a gente quer despachar uma bagagem, a gente deixa de manhã cedo, no hall do albergue, com esse envelopinho preenchido, em que consta a cidade e o albergue pra onde você quer ter seus bens transportados. Isso custa entre cinco e sete euros (distância máxima de 30 kms). E você pode mandar pra qualquer albergue da cidade aonde você está indo, mesmo que você não se hospede lá. Estávamos nesse processo quando uma guardinha municipal chegou e disse que tínhamos que deixar o albergue porque já passavam das nove. Quando ela viu o que a gente estava fazendo, perguntou se havíamos chamado a transportadora, porque normalmente eles passam mais cedo. Eu disse que não. Ela nos aconselhou ir a um hotel próximo perguntar se eles já haviam passado (não tinha ninguém no nosso albergue!). Foi a nossa sorte! O rapaz não só já tinha passado, como não se podia deixar bagagem nesse albergue municipal. Tinha de ser no hotel mesmo. Voltei a albergue e levamos nossas mochilas pro hotel, pois o recepcionista ligou pro rapaz do transporte e ele se dispôs a voltar para pegar nossas mochilas.
Daí, naturalmente, comecei a caminhar com Mac e Brenda. Eles são uma gracinha de casal! São de Indiana. Ele é fazendeiro e ela trabalha numa companhia de alimentos. Eles vêm de casamentos anteriores. Brenda conheceu Mac depois de 15 anos de viuvez. Eles estão juntos há 12 anos. Ela é bem gordinha, e não sei como vai aguentar fazer o Caminho todo. Ambos são católicos e, segundo me contaram, há tempos tinham vontade de fazer o Caminho (viram o tal filme que eu preciso assistir), porém, desde o ano passado começaram a receber vários sinais de que era a hora de se lançar nessa empreitada. Eles não têm uma razão específica, mas estão certos de que Deus tem alguma coisa planejada para eles.
Conversamos muito sobre Fé ao longo da caminhada de ontem. Foi uma bela troca de experiências e energias. Vou te contar duas histórias que me tocaram mais profundamente. Uma delas tem a ver com o grupo de peregrinos eslavos que eu tinha visto no dia anterior. Lembra? Pois é. Brenda e Mac conversaram com eles. Esses peregrinos são da Lituânia. Estão na estrada desde maio. Saíram da Lituânia e vão até Santiago. Brenda me contou que eles caminharam junto com esse grupo por um bom tempo, e que ficaram muito emocionados com eles, particularmente com a moça que carrega a Imagem de Nossa Senhora. Brenda levava uma corrente com um crucifixo de ouro, cravejado com pedras preciosas, que ela usou no casamento dela com Mac. Ela disse que enquanto estava caminhando e conversando com esses peregrinos, ficou muito tocada a pureza e ternura dessa moça, e sentiu que devia dar a ela seu crucifixo. Por razões óbvias, ela hesitou, porque o crucifixo tem um enorme valor emocional para ela. Então, pediu uma confirmação a Deus se era aquilo mesmo que ela devia fazer. E dividiu seu ímpeto com o marido. Mac lhe disse para fazer o que seu coração pedisse. Ela, então, deu o crucifixo à moça, que ficou emocionadíssima. Nesse momento da história, Brenda começou a chorar. Eu fiquei toda arrepiada e emocionada também. Pra fechar a história, ao final daquele dia, Mac disse a Brenda que tinha aberto um livrinho de meditações e que caíra numa passagem que falava que a verdadeira generosidade de coração consiste em se abrir mão daquilo que é mais importante para você. Essa história me tocou demais. Imagine o que é você abrir mão de algo tão precioso para dar a uma estranha, porque você sente, no seu coração, que é isso que Deus está lhe pedindo....
A outra história aconteceu com um rapaz que é como um filho pra Mac. Esse rapaz teve uma ideia para montar um negócio (um tipo de produto que essas start ups fazem), só que ele não tinha capital para desenvolver o produto. Ele estava tentando ver empréstimos e outras possibilidades, quando entrou no elevador de um prédio comercial em que havia um senhor. Assim que ele entrou, escutou uma voz, dentro dele, que disse: Pergunte a ele se ele acredita em mim. O rapaz achou que estava fantasiando e continuou quieto no canto. Daí a alguns segundos, ele ouviu a mesma voz, um pouco mais alta: Pergunte a ele se ele acredita em mim. Ele continuou achando que era coisa da cabeça dele, e permaneceu imóvel. Então, a voz, dentro dele voltou a soar, e bem mais alto: Pergunte a ele se ele acredita em Deus! O rapaz disse que ficou tão atarantado que despejou: O senhor acredita em Deus? O senhor respondeu que sim. E os dois entabularam uma conversa sobre Fé que se estendeu para além do elevador. Tomaram um café, conversaram sobre outros assuntos, incluindo o projeto do rapaz. Ao se despedirem, o senhor lhe deu um cartão e disse, me ligue na segunda-feira. Resultado, o senhor financiou o projeto do rapaz, que alguns anos depois foi vendido por cerca de setecentos mil dólares.
Gostei muito dessa história porque há algumas semanas li um texto que dizia que Deus fala com a gente o tempo todo. A gente é que desaprende a escutar. E Deus fala com a gente sobretudo por meio do nosso coração. Claro que coração é uma metáfora para o que também se pode chamar de “voz interior”, ou de “intuição”. Segundo esse texto que li, nosso coração sempre sabe o que fazer, porque ele está em contato direto com Deus. Mas aí, vem a mente, os condicionamentos sociais, o inconsciente, e fica racionalizando, colocando obstáculos que dificultam o processo de escutarmos e entendermos essa “voz interior”. De certo modo é isso que pregam as filosofias orientais. A meditação é justamente uma ferramenta poderosa para nos ajudar a nos reconectarmos com a nossa intuição, com a nossa voz interior, por conseguinte, com Deus.
Bem, foi conversando sobre coisas semelhantes que fizemos nossa jornada de ontem. A saída de Viana é meio feinha (tal como a entrada), e mesmo com os parreirais, não há muito charme no percurso até Logroño. Em compensação, a entrada de Logroño, é linda. A gente já chega num lindo parque urbano, com um belo gramado verde e árvores que parecem ser da família dos pinheiros, mas têm a forma de cipestres. Cruzamos um rio e chegamos rapidamente à parte antiga da cidade, com suas ruazinhas estreitas e algumas casas nitidamente seculares. Mas há maior colorido em Logroño e maior variedade arquitetônica que os últimos povoados que eu vinha cruzando. Logroño é uma cidade de porte médio e estava em festa! Ontem, justamente, foi o primeiro dia das festas de San Mateos. A cidade estava em polvorosa. Muita, muita gente nas ruas. Muitas pessoas com um lencinho vermelho no pescoço, tipo aqueles dos trajes típicos do Rio Grande do Sul. Muitos grupos de jovens, e muita gente bebendo.
Na realidade, quando chegamos à praça central, ainda não havia uma multidão de pessoas. Tanto que logo avistamos aquele animado grupo de jovens peregrinos com quem eu havia partilhado o quarto em Viana. Eles estavam sentados no chão da praça, um deles tocava violão e tinha o chapéu junto, com um cartazinho que dizia: Para el vino. Acho que era pura gréia. Eu, Brenda e Mac visitamos a Igreja de Santa María del Palácio, com enormes altares barrocos, altamente elaborados, mas que me impressionou mesmo foi pela luz dos vitrais que se projetava nas paredes da construção gótica. Ah! Também adorei um tríptico sobre a pia batismal, com o batismo de Jesus. Depois, fomos conhecer a catedral, que também é de Santa Maria. A Catedral é mais bonita. Um belo exemplar de Igreja gótica, com o teto altíssimo, decorado com flores douradas nos pontos de junção dos arabescos, e um altar barroco que se harmoniza direitinho com a enormidade do edifício. Me chamou a atenção que nas duas Igrejas de Santa María, no nicho principal do altar tem uma espécie de árvore genealógica de Nossa Senhora. Quando chegamos à Catedral, percebemos que estava para começar uma missa. Brenda e Mac queriam ficar, e eu os acompanhei, mesmo tendo assistido missa na noite do sábado. Depois da missa, andamos pela Igreja, olhando os altares laterais e uma capela que tem nos fundos. Nada muito especial, com exceção de uma bela variação da Imagem de Nossa Senhora sentada, com o Menino Jesus no colo e um globo nas mãos. Não tinha indicação de data. Fiquei encantada com a imagem mais longilínea, mais delicada e com uma espécie de véu sobre os cabelos. Não sei, me deu uma impressão de roupas das cortes medievais. E as carinhas pareciam de marfim. Linda, linda!
Depois da missa fomos comer num restaurante indicado por um senhor local. Trata-se do restaurante mais antigo da cidade e se chama Café Moderno. Comemos bem. Eu pedi um bacalhau fresco, com molho de tomate e pimentões vermelhos que estava bem gostoso, super macio e saboroso. Quando saímos do restaurante já estava difícil caminhar pelas ruas, apinhadas de gente. Dei graças a Deus por não ter conseguido hospedagem em Logroño. Esse festival parece mais um carnaval sem música do que outra coisa. A saída da cidade me pareceu meio confusa. Meio difícil de achar as setinhas, em alguns momentos. A essa altura, fazia um sol de rachar, e já não havia a brisa da manhã. Eram duas e meia da tarde quando deixamos a área urbana e começamos a atravessar um enorme parque, muito bonito, todo arborizado e com um enorme lago. Nem sei quanto tempo caminhamos nesse parque, só sei que foi muito. Graças a Deus, porque ao menos pudemos caminhar à sombra. Passamos por várias fontes, onde era possível nos abastecermos de água.
Caminhamos mais devagar à tarde. Brenda estava sentindo mais os quadris, e acho que bateu em todos nós a fraqueza do almoço. Um pouco depois do parque, começamos a subir uma colina. A subida, em certo trecho, segue ao lado de uma rodovia, e acho que por isso há um gradil em toda a extensão. Nesse gradil, várias cruzes de gravetos, postas pelos peregrinos. São vários metros de cruzes, de todos os tamanhos. Também fiz a minha e deixei lá, marcando minha passagem e fazendo meu pedido. Entre Logroño e Navarrete são 13 kms. Te juro que foram os 13 kms mais curtos que já andei até aqui. Quando menos esperávamos, chegamos a Navarrete! Ficamos impressionados. Foi o milagre do encurtamento das distâncias!
A entrada de Navarrete é bem feinha. Na realidade, a cidade tem pouco charme. Logo na subida, comemos uns figos colhidos de uma figueira de rua (é de dar dó o desperdício de figos apodrecidos no chão). Ah! Sabe que desde ontem, toda vez que me dá vontade de comer uvas, passam-se alguns minutos e eu vejo um cacho caído no chão. Eu tinha prometido a mim mesma que não ia mais pegar cachos de uva das videiras (só um, pra ter a experiência), porque se cada peregrino que passa pelas estradas colher um cacho, não tem safra de vinho. Pois agora, quando me dá vontade, vejo um pelo chão. Aí posso comer sem culpa. Jogo uma água para tirar a terra e me delicio. Pense numas uvas docinhas!
Enfim, quando chegamos em Navarrete, me separei de Brenda e Mac. Eles ficaram no albergue municipal, e eu fui para um indicado por Natália, da Estrella Guía. Foi da varanda desse albergue (Albergue Pilgrim’s) que te escrevi ontem à noite, à luz das estrelas. Foi um especial. Fui dormir muito agradecida. Hoje o dia foi mais pesado. Cheguei mais cansada. Felizmente, estou num albergue muito confortável. Me dando ao luxo de ficar num quarto duplo. Amanhã te conto. Estou aqui, tomando um vinho com duas senhorinhas e um senhor argentinos. Super simpáticos. Em breve temos de nos recolher. Regras do albergue: toque de recolher às dez.
Até amanhã, então, Niquinha!
Beijos mil,

Léia 

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