sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 2


11/09/15

Bom dia, Niquinha!
Estou em Roncesvalle! Primeiro dia de caminhada concluído!
Foram 24 kms percorridos ontem! Cheguei tão cansada que não tive nenhuma condição de escrever. Só consegui comer, tomar banho e meditar. Mas acaba que nem dormi bem. A cama era muito estreita, e eu estava no beliche superior. Fiquei sem muito espaço para me mexer, e com receio de cair, acho eu.
Mas deixa eu te contar sobre o dia de ontem. Dormimos num albergue bem razoável em Saint Jean Pied de Port (tirando a água do banho, que era apenas morninha). Acordamos cedo, às 6 da manhã, que é a hora em que todo mundo acorda. Ainda estava escuro. Descemos para tomar um café básico, pão, geleia, suco e café, mas só aquela baguete francesa deliciosa já vale o melhor café da manhã possível. Achei legal porque o refeitório da pousada tinha daquelas mesas compridas, em que senta todo mundo junto. Young estava com pressa, e como ainda estava escuro, e todos os peregrinos estavam pegando a estrada, acabou que nem demos uma volta pela muralha.
De Saint Jean Pied de Port a Roncesvalle há dois caminhos possíveis. Chovia levemente quando estávamos de partida, e em caso de chuva, se recomenda tomar a rota de Valcarlos, porque a outra, a de Napoleón, vai pela parte mais elevada e montanhosa dos Pirineus. Parei logo na lojinha em frente ao albergue e comprei uma boa capa de chuva. Me impressionou como a lojinha é bem equipada, e com preços muito razoáveis. Eu poderia ter deixado para comprar tudo lá: saco de dormir, bastões, bolsa de água. Inclusive, os sacos de dormir são bem mais adequados, leves e pequenos. Meu saco de dormir é enorme e corresponde à quase metade do peso que carrego. Todos me dizem que tenho uma mochila muito pesada. E é verdade. Recomenda-se levar o equivalente a 10% do peso do corpo. Devo estar levando uns 12 kgs. Acho que devo dizer que, por sorte, estou pesando quase oitenta! Pois é, engordei horrores nesses últimos meses. Minha esperança é perder, ao longo do Caminho, os quinze quilos que ganhei. Neste momento, porém, os quilos a mais vão me ajudar a carregar com o peso da minha mochila. Deus não é mesmo perfeito?
Eram oito horas da manhã quando começamos a caminhar, com o dia efetivamente raiando. Fomos seguindo o fluxo dos peregrinos e quando vimos, estávamos, na realidade, seguindo a rota de Napoleão. Graças a Deus, porque ela é muito mais bonita! A essa altura tinha parado de chover e fazia um dia bonito. O primeiro quilômetro foi de tirar o fôlego. Subida íngreme, com a mochila nas costas.... a sorte é que os bastões ajudam bastante! Fui andando devagarzinho. Parando para respirar, e respeitando meu ritmo. Logo, logo começamos a vislumbrar paisagens absolutamente maravilhosas! E a caminhada se tornou mais leve, porque você ia parando para contemplar as montanhas e vales. A coisa mais linda, aquelas montanhas verdinhas, casinhas brancas aqui e acolá, e pastos cheios de ovelhas. Havia uma forte neblina entre e sobre as colinas, o que deixava a paisagem quase mágica. Em alguns pontos, para usar uma expressão de Ascenso Ferreira, parecia que as montanhas estavam cachimbando, como se uma fumaça saísse de dentro da terra. Lindo de morrer!
Após oito quilômetros de caminhada chegamos a um lugar chamado Orisson, onde há uma pousada bem concorrida. Tem gente que fica nessa pousada (Refuge d’Orisson) e dorme lá, para continuar a caminhada no dia seguinte. Só que é concorridíssima. Tem de reservar com antecedência. É possível comer, usar os banheiros e abastecer-se de água nessa pousada. Praticamente todos os peregrinos param por lá, para descansar um pouco e fazer um lanche. Ali, reencontrei Young, que estava andando bem mais rápido que eu. Quando se chega a Orisson, um terço do trajeto do dia está cumprido. Eu até tinha pensado em perguntar sobre uma eventual desistência, se eu chegasse muito cansada ali, mas estava me sentindo bem disposta, e tive a certeza de que poderia chegar a Roncesvalle. Sentei, comi um saquinho de frutas secas e segui em frente. Os próximos oito quilômetros foram os mais difíceis. Além da subida contínua, começou a chover forte. E chuva de vento. A capa protegeu o corpo e a mochila, mas os pés ficaram encharcados. Não adianta de nada a bota ser à prova d’água, porque a água entra pelas meias. Fiquei preocupada porque todos os sites falam sobre a importância de se manter os pés secos. O maior problema de quem faz o Caminho são justamente os pés. Enfim, não havia nada a fazer. Estávamos todos de pés encharcados. Com a chuva, a neblina foi nos encobrindo. Passamos a caminhar na névoa, o que não deixou de ser especial e belo.
A essa altura, eu estava sentindo o peso da mochila nas costas. Felizmente, antes que começasse a chover, eu tinha parado e colocado um creme para dores, que esquenta. Na verdade, o creme cria uma distração para o cérebro, acho eu. A sensação de calor acaba escondendo a dor muscular. Até então, estávamos caminhando numa estrada asfaltada, por onde passam carros, vez por outra. Eu soube que quando começou a chover forte, alguns peregrinos pegaram táxis para ir até Roncesvalle.
Perto do final do segundo terço do trajeto, acaba o asfalto e começamos a caminhar por uma trilha, nas montanhas. Nada de muito difícil. É cansativo porque ainda é subida, mas relativamente suave. E com os bastões, não há motivo de preocupação, mesmo com chuva. Já perto da Espanha tem uma cabaninha de pedra, que funciona como um refúgio. A pessoa pode parar, fazer um lanche, ou simplesmente descansar, abrigada da chuva. Já tinha parado de chover, e algumas pessoas aproveitaram para trocar as meias. Eu decidi continuar com as meias molhadas mesmo, porque queria ter um par seco quando chegasse em Roncesvalle, e só trouxe dois pares.
Subitamente, após uma colina, começamos a descer. Isso já é do lado espanhol. E a paisagem vai mudando. Passamos a caminhar no meio de uma floresta. Com a neblina, que nos acompanhou praticamente até Roncesvalle, a floresta parecia mágica. Me senti num filme de Hobin Hood. Belíssimo! (Estou doida pra postar umas fotos, mas acabei de me dar conta de que não trouxe o cabo de transferência da máquina; terei de comprar um em algum lugar).
Todo o Caminho é muito bem sinalizado. Ao longo da estrada, nas montanhas, de tempos em tempos tem uma plaquinha de indicação, com a conchinha de Santiago estilizada. Já na floresta, flechas em amarelo fluorescente estão pintadas nas árvores. Não tem como a pessoa se perder. Creio que mais de uma centena de pessoas estavam caminhando ontem. A maioria em grupos, ou pares, e vários sozinhos, como eu. E a gente vai fazendo amizade, conversando. Caminha um pedaço com uma pessoa, outro pedaço com outra. Encontrei gente do Canadá, da França, da Bélgica, da Alemanha, dos Estados Unidos, da Irlanda, várias moças coreanas... Sempre que alguém passa por você, lhe cumprimenta e deseja “Buen Camino”. É um ambiente muito legal, com uma energia boa circulando. E a paisagem simplesmente obriga você a parar de vez em quando, para contemplar a beleza e sentir a presença de Deus. De brasileiros, encontrei dois rapazes de São Paulo, que estavam fazendo o Caminho de bicicleta.
Interessante que mesmo quando você caminha sozinha, você sabe que não está só. Tem sempre gente alguns metros à sua frente, e alguns metros atrás de você. Gostei muito disso, porque às vezes é muito bom estar caminhando “sozinha”, porque você pode rezar, se concentrar nos seus pensamentos, meditar. Ao mesmo tempo, você não precisa ter medo de estar só, no meio do nada, porque tem gente muito perto de você.
Na floresta, o chão estava meio escorregadio. E como é descida, requer atenção e cuidado. Força muito os joelhos, obviamente. Acho que os bastões são essenciais para fazer o Caminho! Agradeci muito a Deus por eu ter comprado tanto meus bastões como a capa de chuva (excelente). Olha que mesmo com os bastões, eu estava andando distraída num certo momento e acabei escorregando e caindo de traseiro no chão. Nada demais. Não me machuquei, só fiquei toda suja de lama.
Os últimos cinco quilômetros foram os mais difíceis, porque eu já estava cansada, com fome (comi meus dois saquinhos de frutas secas), com vontade de ir ao banheiro, com as costas doendo, e começando a sentir cansaço nos pés. E depois de Orisson, não tem absolutamente nada no Caminho, a não ser o abrigo de pedra, que é só a casinha mesmo, pra proteger da chuva, e sentar um pouco. O lado bom é que uma coisa acabava distraindo da outra; sobretudo, a fome me ajudou a me distrair do peso nas costas. Algumas vezes eu me peguei pedindo a Deus para chegar logo. Mas de modo geral, acho que me saí bem. Tentei me concentrar no presente. Como eu disse a uma moça coreana, a gente tem de pensar só no próximo passo. Eu tinha lido um livrinho sobre meditação andando, que Glácia me emprestou, e usei algumas técnicas. Uma delas é combinar a respiração com os pensamentos: AQUI (inspiração), AGORA (expiração). Juro que ajuda bastante.
Seguia meu caminho pela floresta, atenta às setas amarelas, quando de repente escutei um badalar de sinos, e, na sequência, latidos de cachorro. Eram claros sinais de que estava perto do meu destino. De fato, poucos metros depois, cheguei a um portão, e vi na minha frente os fundos de um enorme Mosteiro. Era Roncesvalle. Agradeci muuuuuito a Deus por ter conseguido cumprir essa primeira etapa! Os blogs dizem que esse é o trajeto mais difícil, porque você está cruzando os Pirineus. E, de fato, era meu maior temor. Mas tudo correu bem. Descobri que não há motivo para temores. Nem frio a pessoa sente, de fato, porque o esforço físico aquece seu corpo.
De todo modo, cheguei exausta. A Oficina del Peregrino é no Mosteiro, que é também o principal albergue da cidade. Roncesvalle é uma vilazinha minúscula. Não tem quase nada além do Mosteiro;  duas pequenas pousadas, que estão sempre cheias, e nem sequer um mercadinho. Só consegui comprar um queijo de ovelha delicioso. Fora isso, no Mosteiro tem umas máquinas que vendem comida. Comprei uma sopa de verduras, que pude aquecer no micro-ondas, e pão. Mas sabe que essa refeição simples -- pão, um bom queijo e uma sopa quente, era exatamente o que eu estava sonhando em comer, quando caminhava na floresta! Me senti de novo profundamente agradecida.
O Mosteiro estava cheio, pois eu estava entre os últimos peregrinos que chegaram ontem, e fui dormir numa espécie de acampamento que fica bem pertinho e também pertence ao Mosteiro. São umas cabaninhas pré-fabricadas. Tudo muito simples, banheiro idem. Consegui tomar um banho levemente morno, pus meu saco de dormir sobre a cama, para dormir mais quentinha, me deitei um pouco e dormi. Na minha cabana tinha um jovem casal carioca. Muito simpáticos, mas não conservamos muito, porque eu estava morta.
Hoje acordei cedo de novo, porque o pessoal do Mosteiro acorda todo mundo cedo. Eu até queria ficar mais um dia aqui, para descansar um pouco melhor do dia de ontem, mas pelas regras do albergue, cada peregrino só pode dormir uma noite. Então, estou aqui, do lado de fora do Mosteiro, sentada a umas mesinhas, esperando que ele reabra, para eu poder tomar um chá quente e recomeçar minha caminhada.
O dia de ontem não foi fácil. Foram 24 kms de subida, na maior parte, com uma mochila pesada nas costas. Meu aprendizado: quando a gente tem de enfrentar uma grande caminhada, é essencial se concentrar apenas no próximo passo. Se você pensa nos 24 kms que tem pela frente, cada metro se torna penoso. Mas, se você se concentra apenas no momento presente, e procura olhar para os lados, se deliciar com a paisagem, sentir a sua própria respiração naquele exato momento, os metros e quilômetros vão se passando, e quando você se dá conta, escuta o sino da igreja anunciando que você chegou ao fim. Acho que isso vale pra todo desafio que a gente tem de enfrentar na vida.
É isso, Niquinha. São dez horas da manhã. Faz um certo friozinho. Talvez chova de novo hoje. Vou tomar um chá, rezar um pouquinho na bela Igreja de Santiago, e retomar o Caminho.
Saudades, Minha Irmã. Fique com Deus (pois Ele está sempre com você!)
Beijo no seu coração,

Léia

Nenhum comentário:

Postar um comentário