Bom dia, Niquinha!
Estou em Roncesvalle!
Primeiro dia de caminhada concluído!
Foram 24 kms
percorridos ontem! Cheguei tão cansada que não tive nenhuma condição de
escrever. Só consegui comer, tomar banho e meditar. Mas acaba que nem dormi
bem. A cama era muito estreita, e eu estava no beliche superior. Fiquei sem
muito espaço para me mexer, e com receio de cair, acho eu.
Mas deixa eu te contar
sobre o dia de ontem. Dormimos num albergue bem razoável em Saint Jean Pied de Port
(tirando a água do banho, que era apenas morninha). Acordamos cedo, às 6 da
manhã, que é a hora em que todo mundo acorda. Ainda estava escuro. Descemos
para tomar um café básico, pão, geleia, suco e café, mas só aquela baguete
francesa deliciosa já vale o melhor café da manhã possível. Achei legal porque
o refeitório da pousada tinha daquelas mesas compridas, em que senta todo mundo
junto. Young estava com pressa, e como ainda estava escuro, e todos os
peregrinos estavam pegando a estrada, acabou que nem demos uma volta pela
muralha.
De Saint Jean Pied de
Port a Roncesvalle há dois caminhos possíveis. Chovia levemente quando estávamos
de partida, e em caso de chuva, se recomenda tomar a rota de Valcarlos, porque
a outra, a de Napoleón, vai pela parte mais elevada e montanhosa dos Pirineus.
Parei logo na lojinha em frente ao albergue e comprei uma boa capa de chuva. Me
impressionou como a lojinha é bem equipada, e com preços muito razoáveis. Eu
poderia ter deixado para comprar tudo lá: saco de dormir, bastões, bolsa de água.
Inclusive, os sacos de dormir são bem mais adequados, leves e pequenos. Meu
saco de dormir é enorme e corresponde à quase metade do peso que carrego. Todos
me dizem que tenho uma mochila muito pesada. E é verdade. Recomenda-se levar o
equivalente a 10% do peso do corpo. Devo estar levando uns 12 kgs. Acho que
devo dizer que, por sorte, estou
pesando quase oitenta! Pois é, engordei horrores nesses últimos meses. Minha esperança
é perder, ao longo do Caminho, os quinze quilos que ganhei. Neste momento,
porém, os quilos a mais vão me ajudar a carregar com o peso da minha mochila.
Deus não é mesmo perfeito?
Eram oito horas da
manhã quando começamos a caminhar, com o dia efetivamente raiando. Fomos
seguindo o fluxo dos peregrinos e quando vimos, estávamos, na realidade,
seguindo a rota de Napoleão. Graças a Deus, porque ela é muito mais bonita! A
essa altura tinha parado de chover e fazia um dia bonito. O primeiro quilômetro
foi de tirar o fôlego. Subida íngreme, com a mochila nas costas.... a sorte é
que os bastões ajudam bastante! Fui andando devagarzinho. Parando para
respirar, e respeitando meu ritmo. Logo, logo começamos a vislumbrar paisagens
absolutamente maravilhosas! E a caminhada se tornou mais leve, porque você ia
parando para contemplar as montanhas e vales. A coisa mais linda, aquelas
montanhas verdinhas, casinhas brancas aqui e acolá, e pastos cheios de ovelhas.
Havia uma forte neblina entre e sobre as colinas, o que deixava a paisagem
quase mágica. Em alguns pontos, para usar uma expressão de Ascenso Ferreira,
parecia que as montanhas estavam cachimbando, como se uma fumaça saísse de
dentro da terra. Lindo de morrer!
Após oito quilômetros
de caminhada chegamos a um lugar chamado Orisson, onde há uma pousada bem
concorrida. Tem gente que fica nessa pousada (Refuge d’Orisson) e dorme lá,
para continuar a caminhada no dia seguinte. Só que é concorridíssima. Tem de
reservar com antecedência. É possível comer, usar os banheiros e abastecer-se de
água nessa pousada. Praticamente todos os peregrinos param por lá, para
descansar um pouco e fazer um lanche. Ali, reencontrei Young, que estava
andando bem mais rápido que eu. Quando se chega a Orisson, um terço do trajeto
do dia está cumprido. Eu até tinha pensado em perguntar sobre uma eventual
desistência, se eu chegasse muito cansada ali, mas estava me sentindo bem
disposta, e tive a certeza de que poderia chegar a Roncesvalle. Sentei, comi um
saquinho de frutas secas e segui em frente. Os próximos oito quilômetros foram
os mais difíceis. Além da subida contínua, começou a chover forte. E chuva de
vento. A capa protegeu o corpo e a mochila, mas os pés ficaram encharcados. Não
adianta de nada a bota ser à prova d’água, porque a água entra pelas meias.
Fiquei preocupada porque todos os sites
falam sobre a importância de se manter os pés secos. O maior problema de quem
faz o Caminho são justamente os pés. Enfim, não havia nada a fazer. Estávamos
todos de pés encharcados. Com a chuva, a neblina foi nos encobrindo. Passamos a
caminhar na névoa, o que não deixou de ser especial e belo.
A essa altura, eu
estava sentindo o peso da mochila nas costas. Felizmente, antes que começasse a
chover, eu tinha parado e colocado um creme para dores, que esquenta. Na
verdade, o creme cria uma distração para o cérebro, acho eu. A sensação de
calor acaba escondendo a dor muscular. Até então, estávamos caminhando numa
estrada asfaltada, por onde passam carros, vez por outra. Eu soube que quando
começou a chover forte, alguns peregrinos pegaram táxis para ir até
Roncesvalle.
Perto do final do
segundo terço do trajeto, acaba o asfalto e começamos a caminhar por uma
trilha, nas montanhas. Nada de muito difícil. É cansativo porque ainda é
subida, mas relativamente suave. E com os bastões, não há motivo de
preocupação, mesmo com chuva. Já perto da Espanha tem uma cabaninha de pedra,
que funciona como um refúgio. A pessoa pode parar, fazer um lanche, ou
simplesmente descansar, abrigada da chuva. Já tinha parado de chover, e algumas
pessoas aproveitaram para trocar as meias. Eu decidi continuar com as meias
molhadas mesmo, porque queria ter um par seco quando chegasse em Roncesvalle, e
só trouxe dois pares.
Subitamente, após uma
colina, começamos a descer. Isso já é do lado espanhol. E a paisagem vai
mudando. Passamos a caminhar no meio de uma floresta. Com a neblina, que nos
acompanhou praticamente até Roncesvalle, a floresta parecia mágica. Me senti
num filme de Hobin Hood. Belíssimo! (Estou doida pra postar umas fotos, mas
acabei de me dar conta de que não trouxe o cabo de transferência da máquina;
terei de comprar um em algum lugar).
Todo o Caminho é muito
bem sinalizado. Ao longo da estrada, nas montanhas, de tempos em tempos tem uma
plaquinha de indicação, com a conchinha de Santiago estilizada. Já na floresta,
flechas em amarelo fluorescente estão pintadas nas árvores. Não tem como a
pessoa se perder. Creio que mais de uma centena de pessoas estavam caminhando
ontem. A maioria em grupos, ou pares, e vários sozinhos, como eu. E a gente vai
fazendo amizade, conversando. Caminha um pedaço com uma pessoa, outro pedaço
com outra. Encontrei gente do Canadá, da França, da Bélgica, da Alemanha, dos
Estados Unidos, da Irlanda, várias moças coreanas... Sempre que alguém passa
por você, lhe cumprimenta e deseja “Buen Camino”. É um ambiente muito legal,
com uma energia boa circulando. E a paisagem simplesmente obriga você a parar
de vez em quando, para contemplar a beleza e sentir a presença de Deus. De
brasileiros, encontrei dois rapazes de São Paulo, que estavam fazendo o Caminho
de bicicleta.
Interessante que mesmo
quando você caminha sozinha, você sabe que não está só. Tem sempre gente alguns
metros à sua frente, e alguns metros atrás de você. Gostei muito disso, porque
às vezes é muito bom estar caminhando “sozinha”, porque você pode rezar, se
concentrar nos seus pensamentos, meditar. Ao mesmo tempo, você não precisa ter
medo de estar só, no meio do nada, porque tem gente muito perto de você.
Na floresta, o chão
estava meio escorregadio. E como é descida, requer atenção e cuidado. Força
muito os joelhos, obviamente. Acho que os bastões são essenciais para fazer o
Caminho! Agradeci muito a Deus por eu ter comprado tanto meus bastões como a
capa de chuva (excelente). Olha que mesmo com os bastões, eu estava andando
distraída num certo momento e acabei escorregando e caindo de traseiro no chão.
Nada demais. Não me machuquei, só fiquei toda suja de lama.
Os últimos cinco
quilômetros foram os mais difíceis, porque eu já estava cansada, com fome (comi
meus dois saquinhos de frutas secas), com vontade de ir ao banheiro, com as
costas doendo, e começando a sentir cansaço nos pés. E depois de Orisson, não
tem absolutamente nada no Caminho, a não ser o abrigo de pedra, que é só a
casinha mesmo, pra proteger da chuva, e sentar um pouco. O lado bom é que uma
coisa acabava distraindo da outra; sobretudo, a fome me ajudou a me distrair do
peso nas costas. Algumas vezes eu me peguei pedindo a Deus para chegar logo.
Mas de modo geral, acho que me saí bem. Tentei me concentrar no presente. Como
eu disse a uma moça coreana, a gente tem de pensar só no próximo passo. Eu
tinha lido um livrinho sobre meditação andando, que Glácia me emprestou, e usei
algumas técnicas. Uma delas é combinar a respiração com os pensamentos: AQUI (inspiração),
AGORA (expiração). Juro que ajuda bastante.
Seguia meu caminho
pela floresta, atenta às setas amarelas, quando de repente escutei um badalar de
sinos, e, na sequência, latidos de cachorro. Eram claros sinais de que estava
perto do meu destino. De fato, poucos metros depois, cheguei a um portão, e vi
na minha frente os fundos de um enorme Mosteiro. Era Roncesvalle. Agradeci
muuuuuito a Deus por ter conseguido cumprir essa primeira etapa! Os blogs dizem
que esse é o trajeto mais difícil, porque você está cruzando os Pirineus. E, de
fato, era meu maior temor. Mas tudo correu bem. Descobri que não há motivo para
temores. Nem frio a pessoa sente, de fato, porque o esforço físico aquece seu
corpo.
De todo modo, cheguei
exausta. A Oficina del Peregrino é no
Mosteiro, que é também o principal albergue da cidade. Roncesvalle é uma
vilazinha minúscula. Não tem quase nada além do Mosteiro; duas pequenas pousadas, que estão sempre
cheias, e nem sequer um mercadinho. Só consegui comprar um queijo de ovelha
delicioso. Fora isso, no Mosteiro tem umas máquinas que vendem comida. Comprei
uma sopa de verduras, que pude aquecer no micro-ondas, e pão. Mas sabe que essa
refeição simples -- pão, um bom queijo e uma sopa quente, era exatamente o que
eu estava sonhando em comer, quando caminhava na floresta! Me senti de novo
profundamente agradecida.
O Mosteiro estava
cheio, pois eu estava entre os últimos peregrinos que chegaram ontem, e fui
dormir numa espécie de acampamento que fica bem pertinho e também pertence ao
Mosteiro. São umas cabaninhas pré-fabricadas. Tudo muito simples, banheiro idem.
Consegui tomar um banho levemente morno, pus meu saco de dormir sobre a cama,
para dormir mais quentinha, me deitei um pouco e dormi. Na minha cabana tinha
um jovem casal carioca. Muito simpáticos, mas não conservamos muito, porque eu
estava morta.
Hoje acordei cedo de
novo, porque o pessoal do Mosteiro acorda todo mundo cedo. Eu até queria ficar
mais um dia aqui, para descansar um pouco melhor do dia de ontem, mas pelas
regras do albergue, cada peregrino só pode dormir uma noite. Então, estou aqui,
do lado de fora do Mosteiro, sentada a umas mesinhas, esperando que ele reabra,
para eu poder tomar um chá quente e recomeçar minha caminhada.
O dia de ontem não foi fácil. Foram 24 kms de
subida, na maior parte, com uma mochila pesada nas costas. Meu aprendizado: quando
a gente tem de enfrentar uma grande caminhada, é essencial se concentrar apenas
no próximo passo. Se você pensa nos 24 kms que tem pela frente, cada metro se
torna penoso. Mas, se você se concentra apenas no momento presente, e procura
olhar para os lados, se deliciar com a paisagem, sentir a sua própria respiração
naquele exato momento, os metros e quilômetros vão se passando, e quando você
se dá conta, escuta o sino da igreja anunciando que você chegou ao fim. Acho
que isso vale pra todo desafio que a gente tem de enfrentar na vida.
É isso, Niquinha. São
dez horas da manhã. Faz um certo friozinho. Talvez chova de novo hoje. Vou
tomar um chá, rezar um pouquinho na bela Igreja de Santiago, e retomar o
Caminho.
Saudades, Minha Irmã.
Fique com Deus (pois Ele está sempre com você!)
Beijo no seu coração,
Léia
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