Bom dia, Nica!
Ontem cheguei exausta.
Ainda tentei escrever alguma coisa, mas o cansaço falou mais forte. Pelo menos
dormi super bem. Estamos numa pousada cheia de astral. Chama-se Estrela Guia e, para minha grata
surpresa, é de uma gaúcha. Natália se apaixonou por um espanhol, se apaixonou
pelo Caminho e abriu essa pousada. Pelas paredes tem várias mensagens escritas
a mão, com desenhos coloridos. Algumas têm a forma de um coração. Uma gracinha.
E ela é um amor de pessoa. Fez a gente se sentir em casa. Além disso, dormimos
só eu, Norma e Tom num quarto. Camas novas, tudo limpinho. Foi um bom descanso
depois de um dia puxado.
Puente la Reina, a cidade onde estamos, é uma
jóia medieval. Ruas estreitas, com casas altas, paredes de pedra, tudo meio
ocre. Duas igrejas com altas torres. Uma delas, a Igreja do Crucifixo, tem uma
imagem raríssima: um crucifixo em forma de Y. O Cristo é longilíneo e tem
braços bem compridos. E, claro, há toda aquela impressão de sofrimento tão de
gosto da Idade Média. Mas ao mesmo tempo, a face dele tem uma certa serenidade.
Segundo nos explicou um rapaz à entrada da cidade, esse Cristo crucificado pertenceu
aos Cavaleiros Templários, e é do início do século XII, como a Igreja também. No
altar principal, uma imagem de Nossa Senhora sentada num trono, com o Menino
Jesus no colo. Numa das mãos ela segura uma bola. Essa é uma representação
super comum de Nossa Senhora aqui em Navarra. Quase todas as Igrejas medievais
que tenho visitado têm esse tipo de imagem. Em Pamplona, no museu diocesano
contíguo à Catedral, há uma exposição com várias dessas imagens, entre os
séculos XII e XIV. Gosto muito das imagens dessa época, porque elas têm uma
desproporção interessante. Geralmente, troncos e cabeça são maiores do que as
pernas, e as feições são mais longilíneas. É uma representação muito
particular. Tem uma certa
Bom, ontem, a
caminhada entre Pamplona e Puente La Reina é bem pesada. Até aqui, só perdeu
para o primeiro dia. Fizemos 24 km em dez horas e meia. Esse trecho do Caminho
tem uma subida considerável, que não chega a tirar o fôlego, mas dá uma boa canseira.
Em Pamplona, apesar do
albergue ser muito legal, todo novinho e bem organizado, cada cama com sua
cortininha, com se fosse um pequeno quarto, não dormi tão bem. E, como sempre, acordamos
por volta das sete horas, quando o barulho dos demais peregrinos se organizando
para sair torna impossível a gente continuar dormindo. Também como de costume,
eu, Tom e Norma fomos praticamente os últimos a sair do albergue. Tomamos um
café da manhã simples, mas gostoso, no próprio albergue, nos despedimos de
Natália, a simpática e falante dona, e começamos a caminhada do dia. Cruzamos a
parte antiga de Pamplona – ao som dos sinos da Igreja de São Lourenço --,
saindo por uma porta do lado oposto ao que entramos. Essa saída é bem bonita,
porque passa pelo meio de um belo e amplo parque, onde se situa a Ciudadela, que é uma grande fortaleza,
construída no século XVI e em excelente estado de conservação. Terminado o
parque, seguimos caminhando por uma área bem mais moderna (e sem graça) de
Pamplona, até chegarmos à Universidade de Navarra. O campus é um charme, com um
belo gramado, árvores, riacho, pontezinha. Realmente agradável. Faz um forte
contraste com o cenário que vem depois, quando a gente começa a sair de
Pamplona. Fábricas, condomínios de prédios tipo caixote, sem charme nenhum. E a
gente segue caminhando junto a uma autoestrada. Logo chegamos a uma cidadezinha
chama Cizur Menor, onde há uma igrejinha medieval, que, todavia, estava
fechada.
O caminho até Puente
la Reina é quase todo de uma boa subida. Logo após Cizur Menor, começamos a
caminhar por áreas de cultivo. Só que os campos, em sua maioria, estavam
vazios. Colheita terminada. Só havia terra e pedras. A paisagem, portanto, me
deu uma sensação de aridez. Lá no fundo, montanhas. Creio eu que sejam os
Pirineus, que estamos deixando para trás. De vez em quando, cruzamos alguns
trechos com arbustos de um lado, ou do outro. Muitas amoras silvestres, que
vale a pena experimentar. São um pouco mais azedinhas que as amoras que a gente
compra no supermercado, e menores, mas gostosas. Passamos por um imenso campo
de girassóis, que estavam completamente murchos e com que queimados do sol.
Fiquei só imaginando como deve ser lindo quando os girassóis estão em plena
floração!
No povoado de
Zariquiegui, Padre Thomas, que estava caminhando conosco (de batina e tudo!),
celebrou uma missa na Igrejinha de Santo André! Foi uma linda surpresa. Um presente
dos céus. A Igrejinha é medieval, século XII, se não me engano, e tem um altar
entalhado em madeira, simples, mas que vai até o teto, como todos que tenho
visto. Geralmente, esses altares têm vários nichos de imagens, organizados em
colunas, cujo número varia conforme o tamanho da parede. No nicho central fica
a imagem de quem dá nome à Igreja. E no topo de tudo (às vezes tão alto que a
gente mal consegue ver), um nicho com uma cena da crucifixão. Esse, de Santo
André, é pequeno, como eu disse, com poucas imagens. E justamente de uma simplicidade
encantadora. Agora, imagine que nesse ambiente medieval, o Padre estava celebrando
a missa com seu smartphone, onde ele podia consultar a liturgia e fazer as
leituras do dia. Após a missa, aproveitamos para almoçar no bar que há do outro
lado da rua. Almoçamos com Padre Thomas, que é de Atlanta, e um senhor cubano
chamado Francisco. Ele saiu de Cuba criança e nunca mais voltou. É um dos
exilados da Revolução. Obviamente, ele odeia os Castro e se ressente
profundamente de não ter mais retornado à sua terra natal. Pude sentir que ele
carrega uma tristeza e um tumulto dentro da alma. Ele caminhava junto com Padre
Thomas.
Bom, após essa pausa
veio a parte ais difícil do dia: a subida do Alto del Perdón. Pelo nome você
tem uma ideia da empreitada. Reza a tradição que os peregrinos que conseguiam
chegar até esse Alto, estavam perdoados de seus pecados. E se morressem antes
de chegar a Santiago, os pecados subsequentes também estariam previamente
perdoados. Descobri ontem que na Idade Média, apenas 1 de cada 3 peregrinos
conseguiam chegar vivos a Santiago! O caminho até o Alto del Perdón continua
pelo meio das plantações, até chegar a um parque eólico, situado nessas
colinas. Chegamos ao Alto debaixo de chuva e com um vento fortíssimo. Lá em
cima, uma escultura de ferro representa os peregrinos das várias épocas. A
descida do Alto é um pouco capiciosa, porque a estradinha é toda de pedrinhas
redondas, soltas, e areia. Em Pamplona eu comprei uma joelheira e ela me ajudou
muito! Eu vinha sentindo meu joelho esquerdo, um pouco, e ontem não senti
absolutamente nada nessa descida.
Após passarmos por
mais três povoados com suas casinhas de paredes brancas ou em pedra (cor de
ocre), e suas Igrejinhas medievais, chegamos finalmente a Puente La Reina, que
eu já te descrevi acima. Ah! No povoado de Obanos, a Igreja de São João Batista
vale a pena ser visitada. Tem uma imagem lindíssima de Nossa Senhora (aquela
sentadinha no trono com o mundo nas mãos e o Menino Jesus no colo), com um
enquadramento em prata, incrustado de pedras preciosas.
Uma coisa boa do
Caminho é que, tirando o primeiro dia, quando a gente cruza os Pirineus e não
tem sinal de civilização por 16 kms, nos demais trechos que fizemos, sempre tem
esses povoados no meio da jornada, com pelo menos um café e um albergue ou
pousada familiar. Então, dá pra você descansar, beber ou comer alguma coisa,
usar o banheiro. Ontem mesmo, à tarde, paramos dois povoados antes de chegarmos
a Puente la Reina, para tomar um chá e descansar, porque já estávamos exaustos.
Nessa altura ainda faltavam 4,5 kms para chegarmos, e eu confesso que estava
exausta.
Hoje serão mais 24 Kms
até Estella. Porém, parece que é tudo plano. Hoje acordei com a planta do pé
direito bem dolorida, e minha coluna (na região dorsal) também está reclamando.
Veremos o que acontece. Se eu não conseguir chegar até Estella, fico num dos
povoados do meio do caminho. É uma grande vantagem não ter data pra terminar,
porque a pessoa pode ir respeitando o ritmo do organismo. E, o que talvez seja
ainda mais importante, desfrutando do Caminho. Descobri que é muito importante
parar de vez em quando e olhar para trás. Às vezes, as vistas mãos belas estão
atrás de você. Ter tempo também para entrar nas igrejas, sentar à beira do
caminho e rezar um pouco, ou se permitir escutar o barulho de um riacho, o
canto de algum pássaro. Apesar das dores e do cansaço, estou muito agradecida a
Deus por estar aqui, vivendo essa experiência, e com o tempo necessário desfrutá-la
plenamente.
Aqui, na pousada Estrella Guía tem uma mensagem na parede
que eu adoro: A gratidão é a porta da abundância! Sabe, Minha Irmã, que essa
foi um dos mais importantes aprendizados que vivenciei nos últimos meses?! Eu sempre,
obviamente, rezei, agradecendo a Deus pelas muitas graças que Ele me concede.
Mas, viver o estado de gratidão é
algo distinto. É como deixar-se impregnar de um sentimento profundo de alegria
por tudo aquilo que você vive, inclusive na dor e na dificuldade. Descobri que
assim como a Fé, o sentimento profundo de gratidão precisa ser exercitado. Mas
lhe garanto que ele é libertador, porque ele precisa de uma coisa anterior: a
ENTREGA. É só quando a gente e entrega inteira e verdadeiramente que a gente
consegue se sentir grato, e feliz, com aquilo que temos a cada momento.
Bom, preciso ir agora,
encarar a longa caminhada de hoje. Reze por mim. Estou rezando por vocês. Se eu
não chegar muito cansada, darei notícias ainda hoje. Se não, até amanhã!
Fica com Deus,
Niquinha, porque Ele está sempre com você!
Te amo, Minha Irmã.
Beijos no seu coração,
Léia
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