quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 6


16/09/15

Bom dia, Nica!

Ontem cheguei exausta. Ainda tentei escrever alguma coisa, mas o cansaço falou mais forte. Pelo menos dormi super bem. Estamos numa pousada cheia de astral. Chama-se Estrela Guia e, para minha grata surpresa, é de uma gaúcha. Natália se apaixonou por um espanhol, se apaixonou pelo Caminho e abriu essa pousada. Pelas paredes tem várias mensagens escritas a mão, com desenhos coloridos. Algumas têm a forma de um coração. Uma gracinha. E ela é um amor de pessoa. Fez a gente se sentir em casa. Além disso, dormimos só eu, Norma e Tom num quarto. Camas novas, tudo limpinho. Foi um bom descanso depois de um dia puxado.
 Puente la Reina, a cidade onde estamos, é uma jóia medieval. Ruas estreitas, com casas altas, paredes de pedra, tudo meio ocre. Duas igrejas com altas torres. Uma delas, a Igreja do Crucifixo, tem uma imagem raríssima: um crucifixo em forma de Y. O Cristo é longilíneo e tem braços bem compridos. E, claro, há toda aquela impressão de sofrimento tão de gosto da Idade Média. Mas ao mesmo tempo, a face dele tem uma certa serenidade. Segundo nos explicou um rapaz à entrada da cidade, esse Cristo crucificado pertenceu aos Cavaleiros Templários, e é do início do século XII, como a Igreja também. No altar principal, uma imagem de Nossa Senhora sentada num trono, com o Menino Jesus no colo. Numa das mãos ela segura uma bola. Essa é uma representação super comum de Nossa Senhora aqui em Navarra. Quase todas as Igrejas medievais que tenho visitado têm esse tipo de imagem. Em Pamplona, no museu diocesano contíguo à Catedral, há uma exposição com várias dessas imagens, entre os séculos XII e XIV. Gosto muito das imagens dessa época, porque elas têm uma desproporção interessante. Geralmente, troncos e cabeça são maiores do que as pernas, e as feições são mais longilíneas. É uma representação muito particular. Tem uma certa
Bom, ontem, a caminhada entre Pamplona e Puente La Reina é bem pesada. Até aqui, só perdeu para o primeiro dia. Fizemos 24 km em dez horas e meia. Esse trecho do Caminho tem uma subida considerável, que não chega a tirar o fôlego, mas dá uma boa canseira.
Em Pamplona, apesar do albergue ser muito legal, todo novinho e bem organizado, cada cama com sua cortininha, com se fosse um pequeno quarto, não dormi tão bem. E, como sempre, acordamos por volta das sete horas, quando o barulho dos demais peregrinos se organizando para sair torna impossível a gente continuar dormindo. Também como de costume, eu, Tom e Norma fomos praticamente os últimos a sair do albergue. Tomamos um café da manhã simples, mas gostoso, no próprio albergue, nos despedimos de Natália, a simpática e falante dona, e começamos a caminhada do dia. Cruzamos a parte antiga de Pamplona – ao som dos sinos da Igreja de São Lourenço --, saindo por uma porta do lado oposto ao que entramos. Essa saída é bem bonita, porque passa pelo meio de um belo e amplo parque, onde se situa a Ciudadela, que é uma grande fortaleza, construída no século XVI e em excelente estado de conservação. Terminado o parque, seguimos caminhando por uma área bem mais moderna (e sem graça) de Pamplona, até chegarmos à Universidade de Navarra. O campus é um charme, com um belo gramado, árvores, riacho, pontezinha. Realmente agradável. Faz um forte contraste com o cenário que vem depois, quando a gente começa a sair de Pamplona. Fábricas, condomínios de prédios tipo caixote, sem charme nenhum. E a gente segue caminhando junto a uma autoestrada. Logo chegamos a uma cidadezinha chama Cizur Menor, onde há uma igrejinha medieval, que, todavia, estava fechada.
O caminho até Puente la Reina é quase todo de uma boa subida. Logo após Cizur Menor, começamos a caminhar por áreas de cultivo. Só que os campos, em sua maioria, estavam vazios. Colheita terminada. Só havia terra e pedras. A paisagem, portanto, me deu uma sensação de aridez. Lá no fundo, montanhas. Creio eu que sejam os Pirineus, que estamos deixando para trás. De vez em quando, cruzamos alguns trechos com arbustos de um lado, ou do outro. Muitas amoras silvestres, que vale a pena experimentar. São um pouco mais azedinhas que as amoras que a gente compra no supermercado, e menores, mas gostosas. Passamos por um imenso campo de girassóis, que estavam completamente murchos e com que queimados do sol. Fiquei só imaginando como deve ser lindo quando os girassóis estão em plena floração!
No povoado de Zariquiegui, Padre Thomas, que estava caminhando conosco (de batina e tudo!), celebrou uma missa na Igrejinha de Santo André! Foi uma linda surpresa. Um presente dos céus. A Igrejinha é medieval, século XII, se não me engano, e tem um altar entalhado em madeira, simples, mas que vai até o teto, como todos que tenho visto. Geralmente, esses altares têm vários nichos de imagens, organizados em colunas, cujo número varia conforme o tamanho da parede. No nicho central fica a imagem de quem dá nome à Igreja. E no topo de tudo (às vezes tão alto que a gente mal consegue ver), um nicho com uma cena da crucifixão. Esse, de Santo André, é pequeno, como eu disse, com poucas imagens. E justamente de uma simplicidade encantadora. Agora, imagine que nesse ambiente medieval, o Padre estava celebrando a missa com seu smartphone, onde ele podia consultar a liturgia e fazer as leituras do dia. Após a missa, aproveitamos para almoçar no bar que há do outro lado da rua. Almoçamos com Padre Thomas, que é de Atlanta, e um senhor cubano chamado Francisco. Ele saiu de Cuba criança e nunca mais voltou. É um dos exilados da Revolução. Obviamente, ele odeia os Castro e se ressente profundamente de não ter mais retornado à sua terra natal. Pude sentir que ele carrega uma tristeza e um tumulto dentro da alma. Ele caminhava junto com Padre Thomas.
Bom, após essa pausa veio a parte ais difícil do dia: a subida do Alto del Perdón. Pelo nome você tem uma ideia da empreitada. Reza a tradição que os peregrinos que conseguiam chegar até esse Alto, estavam perdoados de seus pecados. E se morressem antes de chegar a Santiago, os pecados subsequentes também estariam previamente perdoados. Descobri ontem que na Idade Média, apenas 1 de cada 3 peregrinos conseguiam chegar vivos a Santiago! O caminho até o Alto del Perdón continua pelo meio das plantações, até chegar a um parque eólico, situado nessas colinas. Chegamos ao Alto debaixo de chuva e com um vento fortíssimo. Lá em cima, uma escultura de ferro representa os peregrinos das várias épocas. A descida do Alto é um pouco capiciosa, porque a estradinha é toda de pedrinhas redondas, soltas, e areia. Em Pamplona eu comprei uma joelheira e ela me ajudou muito! Eu vinha sentindo meu joelho esquerdo, um pouco, e ontem não senti absolutamente nada nessa descida.
Após passarmos por mais três povoados com suas casinhas de paredes brancas ou em pedra (cor de ocre), e suas Igrejinhas medievais, chegamos finalmente a Puente La Reina, que eu já te descrevi acima. Ah! No povoado de Obanos, a Igreja de São João Batista vale a pena ser visitada. Tem uma imagem lindíssima de Nossa Senhora (aquela sentadinha no trono com o mundo nas mãos e o Menino Jesus no colo), com um enquadramento em prata, incrustado de pedras preciosas.
Uma coisa boa do Caminho é que, tirando o primeiro dia, quando a gente cruza os Pirineus e não tem sinal de civilização por 16 kms, nos demais trechos que fizemos, sempre tem esses povoados no meio da jornada, com pelo menos um café e um albergue ou pousada familiar. Então, dá pra você descansar, beber ou comer alguma coisa, usar o banheiro. Ontem mesmo, à tarde, paramos dois povoados antes de chegarmos a Puente la Reina, para tomar um chá e descansar, porque já estávamos exaustos. Nessa altura ainda faltavam 4,5 kms para chegarmos, e eu confesso que estava exausta.
Hoje serão mais 24 Kms até Estella. Porém, parece que é tudo plano. Hoje acordei com a planta do pé direito bem dolorida, e minha coluna (na região dorsal) também está reclamando. Veremos o que acontece. Se eu não conseguir chegar até Estella, fico num dos povoados do meio do caminho. É uma grande vantagem não ter data pra terminar, porque a pessoa pode ir respeitando o ritmo do organismo. E, o que talvez seja ainda mais importante, desfrutando do Caminho. Descobri que é muito importante parar de vez em quando e olhar para trás. Às vezes, as vistas mãos belas estão atrás de você. Ter tempo também para entrar nas igrejas, sentar à beira do caminho e rezar um pouco, ou se permitir escutar o barulho de um riacho, o canto de algum pássaro. Apesar das dores e do cansaço, estou muito agradecida a Deus por estar aqui, vivendo essa experiência, e com o tempo necessário desfrutá-la plenamente.
Aqui, na pousada Estrella Guía tem uma mensagem na parede que eu adoro: A gratidão é a porta da abundância! Sabe, Minha Irmã, que essa foi um dos mais importantes aprendizados que vivenciei nos últimos meses?! Eu sempre, obviamente, rezei, agradecendo a Deus pelas muitas graças que Ele me concede. Mas, viver o estado de gratidão é algo distinto. É como deixar-se impregnar de um sentimento profundo de alegria por tudo aquilo que você vive, inclusive na dor e na dificuldade. Descobri que assim como a Fé, o sentimento profundo de gratidão precisa ser exercitado. Mas lhe garanto que ele é libertador, porque ele precisa de uma coisa anterior: a ENTREGA. É só quando a gente e entrega inteira e verdadeiramente que a gente consegue se sentir grato, e feliz, com aquilo que temos a cada momento.
Bom, preciso ir agora, encarar a longa caminhada de hoje. Reze por mim. Estou rezando por vocês. Se eu não chegar muito cansada, darei notícias ainda hoje. Se não, até amanhã!
Fica com Deus, Niquinha, porque Ele está sempre com você!
Te amo, Minha Irmã.
Beijos no seu coração,

Léia

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