sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 9


18/09/15

Boa noite, Niquinha!

Hoje tive um dia mais leve.
Acordei cedinho, como sempre, com o barulho dos peregrinos se organizando. Ainda com o céu escuro, desci para tomar café da manhã e quando voltei ao quarto e olhei pela janela, vi um belíssimo amanhecer. As primeiras luzes do sol se projetavam por trás da torre da Igreja. O céu estava limpíssimo, sem uma nuvem. O prenúncio de um dia de sol, após tanta chuva, me deixou bem contente. Passei, então, ao meu ritual matinal: verificar os pés, colocar band-aids e esparadrapos nas áreas que começam a apresentar sintomas de irritação, pôr o creme para evitar bolhas, aproveitando para massagear os pés, colocar o creme anti-inflamatório no pé dolorido e nas costas, protetor solar e fazer alongamento.
Antes de deixar o albergue (Maravilhoso! Todo novinho e super limpo), liguei para pousadas da cidade onde eu queria ficar amanhã. Tudo lotado. Tem festa de patrono. Terei de fazer um percurso mais curto amanhã. Apenas 12 kms, em vez dos 20 kms que eu pretendia fazer. E para seguir adiante seriam mais 13 kms. Aí 33 kms já é demais para mim. Me convenci de que 20 kms é um montante razoável por dia. Consigo fazer sem ficar esgotada. Quando estava saindo do albergue, o casal de funcionários, uns senhorzinhos super simpáticos, me deram maçã e bolinhos de bacia para a jornada. Fui a penúltima hóspede a partir.
O Caminho entre Monjardín e Sansol é bastante plano. As subidas são poucas e leves. Basicamente cruzamos parreirais e olivais, entremeados de campos que estão prontos para a semeadura, ou com uma vegetaçãozinha rala, de plantinhas que estão começando a brotar. Essa estrada pelo meio das plantações é feita de areia e pequenas pedrinhas. Resulta que a caminhada foi bem mais confortável que nos dias anteriores. Como boa parte dos campos estavam vazios, tive uma certa impressão de aridez, quebrada vez por outra pelos parreirais. Mas ao longe, ao fundo do vale pelo qual caminhávamos, se destacavam as silhuetas de uma cadeia montanhosa não muito alta. Mais perto do destino final, as colinas foram ficando mais próximas. E passamos junto a um pequeno bosque.
Hoje foi o dia das borboletas. Havia de várias cores: brancas, amarelinhas, rajadas de laranja e preto ou de amarelo e preto. Muito lindas. O céu estava esplendoroso de azul. E as borboletas deviam estar alegres com esse calor gostoso após tantos dias nublados. De manhã cedinho estava bem friozinho. Saí de Monjardín toda agasalhada. Ao longo do dia foi esquentando e no princípio da tarde fez bastante calor. Adorei esse calorzinho. Só não sei se é muito bom para os pés. Suspeito que o suor contribui para irritar a pele e redundar nas temíveis bolhas, que são o maior pesadelo dos peregrinos. Dizem que o segredo é cuidar da pele aos primeiríssimos sinais. Não se deve esperar nem chegar até o próximo destino. Foi o que fiz hoje. Comecei a sentir a pele na lateral do meu dedão ardendo. Parei no meio do caminho, descalcei a bota, vi que estava vermelho, pus uma compressa apropriada e um esparadrapo em volta. Fiz o resto do trajeto numa boa. Aliás, quero lhe dizer que meu pé está bem melhor. Ainda me incomodou um pouco hoje, mas sinto que está desinchando. A coluna também continua reclamando, porém, um pouco menos. Por incrível que pareça, o que mais me incomodou hoje foi a picada da vespa. Mesmo com a cortisona, a batata da perna continua vermelha, uma área relativamente extensa está meio durinha, e a danada coçou bastante enquanto eu caminhava. Agora suavizou um pouco. Fiquei tão preocupada com a medicação para pés e dores musculares que esqueci de trazer um anti-alérgico. Mas espero que amanhã esteja melhor.
Bom, estava eu caminhando, quando, numa curva da estrada, no meio do nada, vejo um trailer com mesas e cadeiras em volta. Uma lanchonete para os peregrinos. Boa sacada dos donos, porque o primeiro trecho da caminhada de hoje é de 12 kms entre duas vilazinhas, sem absolutamente nada no meio. Alguns peregrinos estavam sentados comendo. Eu, como tinha minha maçã e meu bolinho, segui caminhando. A essa altura estava querendo mais é um banheiro.
Vencidos os primeiros 12 kms cheguei a Los Arcos. Logo à entrada vi um casal de senhores colhendo azeitonas num olival. Essa entrada não é muito charmosa, mas poucos metros adiante a gente chega na área antiga da cidade, com suas casas de muros de pedra e brasões esculpidos sobre largas e velhas portas de madeira e ferro. Virando uma esquina, a praça central. Uma enorme Igreja domina o cenário, com sua torre e belas arcadas. Em frente a ela, mesinhas com guarda-sóis, onde vários peregrinos almoçavam. Visitei a Igreja de Santa María de Los Arcos, mas confesso que não gostei muito. A edificação original há de ser românica, mas a decoração interior é certamente de séculos posteriores. Um exagero como acho que nunca vi. Altares barrocos extremamente carregados, ocupando paredes inteiras. E como se não fosse suficiente, pinturas rebuscadas cobrindo cada centímetro dos tetos e das paredes cheias. Acho que as paredes são forradas de madeira pintada (fazendo as vezes de um papel de parede). Muuuuita informação. Gostei do claustro e de um tríptico bem bonitinho, que está escondido num canto e tem no centro duas imagens representando o encontro de Maria com Santa Isabel.
Parei para comer uma tortilla num café dessa praça. E lá encontrei um conterrâneo. Marcos é motorista do TER de Recife e está fazendo o Caminho de bicicleta. Vendeu o carro para fazer essa viagem. Achei um barato. Ele está feliz da vida, mas sentindo falta de conversar com alguém, porque ele não fala nada além de português. Batemos um bom papo e depois cada um seguiu seu destino. Ele queria pegar um outro caminho para Viana, mais movimentado.
A segunda etapa desse dia foi mais custosa só porque eu já estava um pouco cansada. A paisagem não mudou muito. Apenas fomos nos aproximando mais das colinas. Caminhei quase o dia todo sozinha, ainda que, como eu já te disse, eu sempre tenha o cuidado de ter peregrinos atrás ou à frente. Confesso que gosto de caminhar  sozinha de vez em quando, porque posso me concentrar nas minhas orações e meditações. Nos quilômetros finais encontrei Sonia e Kelly. Ela é alemã e fala português, porque o irmão é casado com uma brasileira. Ele é americano. Os dois são muito divertidos. Kelly colheu amêndoas para mim (vi uma amendoeira pela primeira vez na vida) e um cacho de uva que pendia de uma parreira perdida no meio do mato da beira da estrada. Conversando, chegamos a Sansol. Um povoadozinho de nada, com as mesmas características que já te descrevi tantas vezes. Minha intenção original era seguir adiante, até Torres del Río, que fica um quilômetro adiante. Só que vi a placa de um albergue que me pareceu bem interessante porque tem uma piscina para os pés! Como ficava no caminho, fui verificar e amei o albergue! Como tinha lugar, eu e Sonia ficamos. O Albergue Sansol está instalado numa casa de pedra que deve ter um século e meio. As madeiras do teto e das janelas são um charme todo especial ao lugar. E atrás tem um pátio com um jardim, mesinhas e a tal piscina. Além de tudo, tem música ambiente de excelente bom gosto. Deixei minhas coisas no quarto e enquanto esperava diminuir a fila do banho, fui desfrutar da piscininha, que tem uma fonte de pedra. A água é geladíssima, mas acho que é disso mesmo que os pés precisam. Fiquei uns bons vinte minutos com os pés dentro d’água. Depois, fui secá-los ao sol gostoso do final da tarde. Subi, tomei banho e tirei um cochilo. Descobri que um cochilo desses de tarde, após chegar de uma caminhada, é revigorante!
Bom, como você pode ver, hoje foi um dia mais leve mesmo. E amanhã será mais leve ainda. Vou, inclusive, tentar sair um pouco mais tarde, porque só preciso caminhar 12 kms. Curiosamente, consegui me conectar à internet pelo celular, mas não consigo conectar o computador. Provavelmente só poderei enviar essa carta amanhã. Também não estou conseguindo falar com Norma e Tom. Queria ao menos saber onde eles estão, se estão bem. Na caminhada de hoje, vinha pensando em como e quando reencontrá-los, mas em certo momento me veio o sentimento de que talvez eu precise desapegar... Me lembrei de uma imagem que Glácia gosta muito de usar: a das mãos abertas. Na vida, a gente precisa manter as mãos bem abertas, porque só com as mãos abertas a gente recebe; só que a mão que recebe é a mesma que dá; e se a gente fecha as mãos para reter o que recebeu, perde a oportunidade de receber novas dádivas. Resolvi parar de me preocupar com esse reencontro, por mais que a companhia deles me seja reconfortante. Nossa convivência foi curta, porém intensa. Houve uma troca genuína e profunda de afeto, que me encheu de alegria e da qual sempre me recordarei como uma das belas dádivas desse Caminho. O futuro não me pertence. Está nas Mãos do meu Criador.
Uma última nota antes de encerrar essa carta. Esqueci de te dizer que ontem encontrei uma senhorinha de 80 anos, fazendo o caminho. Ela é sul-africana, e magrinha de dar aflição. Mas tava lá, toda serelepe, com um charmoso chapéu vermelho. Eu perguntei porque ela está fazendo o Caminho (tento perguntar a todos que encontro). E ela me respondeu: Minha filha, eu tenho 80 anos, tenho saúde e disposição pra enfrentar esse Caminho; você quer mais razão que isso?! A pessoa responde o quê depois disso?.... Pois é... Só devo acrescentar que ela vai fazer só um pedaço do Caminho. Como, aliás, muitos peregrinos que tenho encontrado.
Agora vou me recolher. Ver se leio um pouco.
TE AMO!!!
Que você sinta a presença amorosa de Deus em sua vida, a todos os instantes!
Beijo no seu coração,

Léia

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