quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 18


29/09/15

Boa noite, Nica!
Burgos é mesmo uma cidade encantadora! Amei. Tem tanta coisa interessante para ver, museus, Igrejas, parques, além de restaurantes e pastelerias bastante convidativos. As pastelerias e panaderias são uma tentação. E estão por toda parte, exalando aquele cheirinho bom de pão e outras guloseimas recém assados. Burgos é famosa pela morcella, que é o nosso chouriço (com sangue de porco). Realmente muito gostosa. Eu ficaria fácil uns cinco dias aqui. Acabei ficando três noites porque consegui marcar um dentista numa clínica bem legal. A dentista que me atendeu é cubana, Dra. Orquidea, e mora há dezesseis anos na Espanha. Uma simpatia. E o melhor é que acho que resolvi meu problema. Ela trocou toda a obturação do meu último molar inferior, que estava infiltrada. Vamos rezar pra que não dê nenhum problema.
Bom, ontem de manhã eu acordei junto com todos os peregrinos, porque tinha dormido no albergue municipal. Na realidade, dormi mal e já estava até acordada quando começou o movimento. Às seis e meia acenderam as luzes do dormitório, que devia ter pelo menos umas quarenta pessoas. Os albergues ao longo do Caminho geralmente têm horário pra dormir (dez da noite) e horário pra pessoa deixar o albergue (oito da manhã). Os albergues privados podem ser mais flexíveis com esses horários, mas os municipais são muito estritos.  Até que me organizei rápido, desci para o refeitório e organizei um café da manhã pro nosso grupo de quatro (eu, Cármine, Ella e e Kathie): frutas, iogurte, chá, pão e queijo, que Ella tinha comprado. Ainda estávamos comendo, umas dez pras oito, quando apagaram as luzes do refeitório, pra gente se apurar.
Durante o café rolou um estresse entre Cármine e Ella. Cármine é uma boa pessoa, mas me parece um pouco confuso. Alguém o feriu profundamente e ele parece bem suscetível. Além disso, ele me parece dessas pessoas que acham que têm de sofrer, e estão diante da vida como se pagando uma eterna penitência. Uma pena. Ele não consegue enxergar a beleza e o valor que tem dentro de si. Mas acho que a discussão entre ele e Ella (até parece trocadilho) teve uma sutileza. Ella tem 46 anos e assume uma postura de mãezona de todo mundo. Suspeito que Cármine se encheu um pouco desses cuidados maternais e estourou no café da manhã. O resultado é que saímos do albergue e nos sentamos a umas mesinhas do café em frente, eu, Ella e Kathie numa mesa, Cármine e Danielle, um italiano amigo deles, em outra. Aos poucos Cármine foi acalmando, porém, Ella estava sentida. Depois disso, passaram o dia separados. Pior que eu não tive coragem de dizer a Ella minha impressão sobre esse estranhamento. Senti que Ella estava triste com a perspectiva de perder o companheiro de caminhada.
Fiquei com um certo remorso de não ter tentado alertá-la, mas ao mesmo tempo não tenho intimidade de nenhuma com Ella para abordar algo tão delicado. Em todo caso, fiz uma auto-reflexão. Preciso estar muito atenta, porque eu também tenho essa tendência a ser muito mãezona. Por maior que seja sua boa vontade, esse tipo de postura pode acabar sendo incômodo para os outros. Ou, o que é pior, sem o devido equilíbrio, quando você toma conta de tudo, acaba sem deixar espaço e oportunidade para que o outro resolva suas próprias questões, desenvolva suas iniciativas, aprenda e cresça com os pequenos desafios cotidianos. Lembrei-me também de Norma e Tom. Eles são um casal fofíssimo. Estão juntos há quase quarenta anos e ainda se chamam de “Baby”. São super atenciosos um com o outro, porém, senti, em várias ocasiões, que Norma tem uma tendência a controlar as coisas. E faz isso com toda delicadeza. Do mesmo jeito que eu costumo fazer, no estilo que eu mesma apelidei de “doce tirana”. Lição para mim mesma: preciso encontrar o ponto de equilíbrio entre a mulher que quer tomar conta de tudo e de todos (mesmo que com doçura) e a mulher submissa e sem iniciativa.
Afe! Deixemos de filosofia e voltemos a Burgos. Após tomar um leite quentinho com mel, deixei meus companheiros e fui ao hotelzinho que Norma e Tom recomendaram, para ver se tinham lugar. Tudo certo no Hostal Monges Magnos. Deixei minha mochila no quarto (o dono se encantou comigo e eu nem precisei esperar o horário do check in) e fui reencontrar Ella para visitarmos a Catedral. A Catedral de Burgos é, na verdade, um museu, que se visita com um áudio-guia bastante razoável. A edificação principal e as capelas mais antigas datam do século XII, assim como algumas belas imagens e trípticos (há uma pequena e belíssima coleção de trípticos flamencos que se visita em um dos ambientes dos claustros). Os altares barrocos são um pouco posteriores, do mesmo modo que a decoração interna, em pedra, de tetos e paredes de alguns ambientes. E há, ainda, algumas capelas em estilo rococó, demasiado floreado para o meu gosto. Bem no centro da Catedral, logo abaixo da cúpula está a decoração de teto e parede mais impressionante de todas. É uma coisa impressionante o rendilhado esculpido na pedra, beleza difícil de descrever. Só mesmo vendo.
Os claustros superiores também são belos, especialmente as galerias com as paredes decoradas com suaves pinturas medievais. Muitas são decorações para tumbas de nobres e de bispos, que se encontram por toda a Catedral. Nos claustros inferiores há propriamente um museu de arte sacra, com belos objetos litúrgicos de diferentes séculos, e pinturas dos séculos XII a XV. Eu adoro essas pinturas da Idade Média, por causa dos traços longilíneos das figuras, e pelo senso de proporção absolutamente diverso da realidade. Outra coisa que me fascina nessas Igrejas medievais que tenho visto é a presença de alegorias e figuras míticas, como grifos, seres alados, gárgolas e até unicórnios e sereias. E tem algumas representações sagradas que se tornaram raras posteriormente, inclusive por proibição do Vaticano, como as Virgens de Leite, com o Menino Jesus mamando.
Após a visita à Catedral, me despedi de Ella e fui compras algumas coisas de que estou precisando. Agora que me conscientizei de que não devo carregar minha mochila, pude me dar ao luxo de comprar hidratante! Minha pele estava pedindo misericórdia de tão seca. E comprei algumas peças de roupa mais quentes, porque começo a sentir um frio razoável pelas manhãs e à noite. Não demorei muito nas compras, deixei-as no hotel e fui visitar a Igreja de São Lemes, que fica pertinho do Monges Magnos. Nada muito diferente das Igrejas góticas com altares barrocos que tenho visto ao longo do Caminho. De lá, saí andando pela ampla avenida que contorna o centro histórico. A certa altura, a calçada do lado direito se transforma num Passeio público, bastante largo, composto de várias alamedas, algumas ladeadas por árvores (plátanos, me pareceram). A alameda central tem fontes e está emoldurada por arbustos esculpidos (desconheço o termo apropriado...). Há banquinhos de madeira em toda a extensão do passeio, e pelas tardes, senhorzinhos ficam sentados, apanhando a fresca, vendo o movimento ou conversando entre eles.
Ao final desse Passeio se chega ao Arco de Santa María, que no século XIV foi importante porta de entrada das muralhas que cercavam a cidade. O Arco tem ume bela decoração em pedra, adicionada no século XVI. Abundam turistas fazendo fotos. À sua frente e ao longo da ponte que lhe faz face, esculturas contemporâneas, de Henry Moore. O contraste entre essas diferentes formas de expressão artística é bem interessante. A ponte que cruza o rio nessa altura está estruturada em arcos de pedra e é bem charmosa. Por trás do Arco de Santa María está a Plaza Mayor, com seus edifícios coloridos e galerias de lojas em toda a extensão do amplo quadrilátero. Perto da Plaza, localiza-se uma linda e sólida casa de pedra, a Casa de Los Condestables, onde os Reis de Castilla receberam Cristóvão Colombo quando de volta de sua segunda viagem ao Novo Mundo.
Após dar essa volta pelo centro histórico, fui conhecer as ruínas do Castelo de Burgos, erguido ainda no século IX. Lamentavelmente, uma restauração desajeitada, com fins nitidamente turísticos, descaracterizou essas ruínas. Ainda assim, vale a visita, pois em alguns pontos as pedras originais estão intocadas, e se pode fazer uma visita guiada às galerias subterrâneas, abertas nos séculos XIV e XV para defender o castelo, e o poço do século XII, com 61 metros de profundidade. Para minha sorte, cheguei quase na hora de uma dessas visitas e pude descer às galerias e ver o poço (descemos a uns 10 metros de profundidade apenas). Emocionante caminhar por essas estruturas carregadas de tanta história.
Do Castelo caminhei até os remanescentes de uma das antigas muralhas de Burgos. Também se notam os traços de uma restauração recente, que, infelizmente, tira um pouco do sabor de ver e poder tocar uma construção com tantos séculos. O Arco de San Estêvão, ao final dessa muralha tem traços mouriscos porém, foi igualmente restaurado.
Ontem ainda visitei a Igreja de São Nicolau. Essa é imperdível. O prédio é gótico, com as ogivas típicas e o teto em arcos, om decoração leve, em forma de flor. Tem também uma espécie de patamar retangular, acima, logo que se entra na Igreja, o que faz com que o teto nessa parte seja rebaixado. Observei essa variação arquitetônica em algumas Igrejas góticas daqui. Acho que é um espaço destinado ao coro. Impressionante mesmo e belíssimo é o retábulo do altar, todo esculpido em pedra clara (a cor é meio pérola), com detalhes pintados em dourado. No centro, uma grande Imagem de São Nicolau, acima Nossa Senhora ladeada por duas figuras masculinas, uma das quais me parece ser Jesus, com o Espírito Santo sobre a cabeça dela. E lá no alto Deus pai, sentado em seu trono, com o mundo nas mãos. Tocava uma suave música religiosa quando entrei a Igreja. Ajoelhei-me para rezar e, por alguma razão, fiquei profundamente comovida. Permaneci um longo tempo sentada, rezando.
Voltei para o hotel cedo, porque estava muito cansada. O Monges Magnos é um hotel simples, porém todo renovado, e de muito bom gosto. Dormi como um anjo, por quase onze horas. Sem precisar de protetores auriculares! Foi um sono reparador e muito necessitado. E o prazer de tomar banho e me enxugar com uma toalha de verdade?! Passar hidratante depois do banho?! Verdadeiros luxos pra mim, desde que comecei o Caminho. Graças a Deus que pude me propiciar esse pequeno luxo. E como te disse, acabei ficando uma noite mais porque consegui marcar esse dentista pra hoje.
Além de dormir muito, de ir ao dentista e de andar mais um pouco por essas lindas ruas com seus sobrados de varandas de vidro, charmosíssimos, e de comprar mais algumas coisas de que estava sentindo falta, para enfrentar o frio, visitei o Museu do Livro Fradique D Basilea. A coisa mais preciosa. Embora a maior parte dos itens da coleção do museu seja de fac-símiles, as reproduções são, quase sempre, perfeitas. Tem-se toda a história do livro, desde os primeiros registros da escrita humana em pedra, até o livro digital. O museu é muito bem organizado e novinho, e o que mais me impressionou é que se trata de uma iniciativa particular. Uma editora de livros raros resolveu implantar esse museu por puro amor aos livros. Juro que fiquei emocionada com o esforço que se vê ter sido despendido para localizar e reproduzir todas as obras ali expostas. E eu estava no final da visita, justamente refletindo sobre isso, quando chegou um dos diretores da editora e começou a conversar comigo. Para resumir, me levou ao seu escritório e me mostrou alguns exemplares de obras raras que eles editam. Nica, é uma coisa impressionante. São livros medievais, que eles recriam com uma fidedignidade incrível. As edições são em pergaminho e cada folha tem textura, coloração e peso particulares, praticamente idênticos aos originais. Os detalhes dourados das iluminuras são retocados a mão! A encadernação é igualmente fiel ao original. Vi uma edição do Livro de Horas de Luis de Laval (um clássico dos Livros de Horas) que é uma obra de arte. As edições têm oitocentos e poucos exemplares numerados e priu. Ganhei uma amostra de duas folhas de uma das edições fac-similares deles. E recomendei muito que eles entrassem em contato com a Livraria Cultura, pois eles não têm distribuidor no Brasil.
Minha visita ao museu já aconteceu no final do dia, porque como eu já lhe disse, quase tudo fecha para a siesta, entre duas e cinco da tarde. Para encerrar meu dia comi uns saborosos sanduíches de morcilla com pimentões vermelhos e vim pro hotel para descansar e organizar minhas coisas, pois amanhã recomeça minha caminhada. Já estou a 488 kms de Santiago. Nada mal. Daqui a pouco chego à metade do Caminho.
Fica com Deus, Minha Irmã!
Beijos saudosos,

Léia

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