sábado, 3 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 19


30/09/15

Boa noite, Nica!
Saí de Burgos com vontade de ficar! Aliás, certamente terei de voltar por lá. Descobri, hoje de manhã, que apaguei minhas fotos do interior da Catedral. Ainda pensei em voltar à Catedral, antes de deixar Burgos, para tirar novas fotos. Só que eu tinha esquecido a bateria da câmera no carregador, que estava dentro da mochila, que despachei logo cedo. Nem fotos da Catedral, nem fotos da saída de Burgos, que é linda. Ou seja, precisarei visitar essa cidade novamente. Quando passei pela catedral pela última vez, contemplei suas elaboradíssimas torres e fiquei pensando na grandeza do engenho humano...
Eram quase onze da manhã quando tomei o rumo da saída da cidade, após comer uns bolinhos recém-saídos do forno, em uma das maravilhosas pastelerías de Burgos. Os sinos de alguma Igreja badalavam e era como se estivessem junto de mim, de tão alto que me chegava o som. Segui pela rua da Igreja de San Nicolás, que passa por um pequeno parque e atravessa o Arco de San Martín. Pouco antes, um monumento homenageia um lendário herói da região, chamado Cid El Campeador. Foi um bravo cavaleiro, que lutou pelos reis de Castela, e acabou levando a vida como uma espécie de foragido, com um exército próprio. Ele se converteu em uma lenda e é o protagonista do mais famoso romance espanhol medieval. O monumento à saída do centro histórico lembra um dos lugares onde ele morou.
Junto ao arco, de traçado moçárabe, há mais remanescentes da antiga muralha de Burgos. Um trecho, inclusive, mais interessante e aparentemente menos modificado que os que vi dois dias atrás. Após uma pequena área com prédios mais contemporâneos (e não muito charmosos), cheguei há um belo parque, cheio de árvores, vestidas de verde e amarelo. Mais adiante, após cruzar uma ampla avenida, o Caminho segue por um outro parque, todo murado. Chama-se parque da Universidade e é, certamente, o jardim de alguma antiga propriedade, pois os muros têm alguns séculos de existência. O parque é lindíssimo. Amplas alamedas ladeadas de árvores se estendem por mais de um quilômetro. São castanheiras, e estão dando frutos. Havia muitas castanhas caídas no chão e outras caindo enquanto eu passava. Faltava só o tacho para assá-las, rs, rs, rs.
Ao final do parque, quando acaba o muro, está a Universidade de Burgos. Num velho e belo edifício de pedra branca, que foi um dos mais importantes hospitais de peregrinos da época medieval, estão instaladas a Reitoria e a Faculdade de Direito. No meio do pátio, restos de colunas e de um arco denunciam que houve ali, em algum tempo, paredes e salas desse hospital. Esse antigo hospital fica à esquerda da saída do parque, fora do roteiro do Caminho, que segue pela direita. Mas é claro que quando botei os olhos na portada em pedra esculpida e li “Universidade de Burgos”, fui logo conferir. Belo demais.
Mais à frente, outros prédios mais modernos pertencentes à Universidade. Aí o cenário urbano começou a ficar menos interessante. Ainda assim, posso dizer que Burgos me pareceu charmosa tanto na entrada como na saída, mesmo sendo uma grande cidade. Ao contrário de Pamplona, quando me senti meio insegura às vezes, o Caminho na saída de Burgos está muito bem sinalizado. De repente, após o cruzamento de uma grande avenida, a gente sai da cidade e começa a andar por uma estradinha vicinal, ladeando uns terrenos cobertos de capim. Mais à frente, campos verdinhos com alguma plantações de legumes, e árvores aqui e acolá à beira da estrada. Como saí bem mais tarde hoje, encontrei poucos peregrinos caminhando. À minha frente e atrás de mim, havia umas senhorinhas solitárias. Caminhei um bom pedaço nessa estradinha aprazível, até chegar num trevo de rodovia, onde há um parque com bancos. Sentei um pouco para descansar. Foi quando chegou Eleonor, uma  das senhorinhas que caminhava atrás de mim. É americana, de Rhode Island. Conversamos um pouco enquanto ela comia um sanduíche, e retomei minha caminhada.
Após esse trevo, e deparei com uma grande obra rodoviária, que gerou um desvio no Caminho. A sinalização estava meio confusa e tive algum medo de me equivocar. Atravessei um viaduto e quando cheguei do outro lado, reencontrei as flechinhas amarelas. O desvio era bastante extenso, o que significou um certo tempo de caminhada em meio a canteiros de obras, até que finalmente cruzei uma pontezinha e voltei a caminhar entre árvores. Segui caminhando por entre campos desnudos até que cheguei à pequena Tardajos. Nada de muito especial no vilarejo. Pra variar, a Igreja estava fechada.
Dois quilômetros depois, encontrei a pequeníssima Rabé de las Calzadas. Menor e bem mais charmosa que sua vizinha. Me encantei com os brasões esculpidos nas paredes de antigas casas de pedra. Como precisava de um banheiro, parei num bar chamado Peña de la Calzada. O dono, José María, é uma figura! Me fez um delicioso sanduíche de queijo e me deu de presente umas ameixas pequenininhas, verdes por fora e amarelinhas por dentro. Eu sempre via essas ameixas no supermercado, mas como são meio caras, nunca me animei a comprar. Pois ganhei de presente, e estavam bem docinhas. Seu José María tem uma camisa do Grêmio pendurada na parede, e um quadro com mensagens de peregrinos de todas as partes do mundo. Tem um cantinho do Brasil, onde deixei minha mensagem para ele. Ah! E ele ainda me deu uma medalhinha de Nossa Senhora das Graças. Um fofo!
Caminhei até a Igreja na esperança de que estivesse aberta. Não estava. Em frente à Igreja há uma gracinha de largo, com casinhas de pedra clara. Numa delas está um albergue. Sentado à porta, conheci um brasileiro, Elton, que está fazendo o Caminho a pé. Por incrível que pareça é o primeiro peregrino brasileiro “caminhante” que eu conheço. Tinha conhecido Marcos, que estava de bicicleta. E tinha visto outros brasileiros de bicicleta. Batemos um bom papo. Elton está com uma tendinite no pé direito. Está bem inflamado. Ele está medicado e caminhou menos hoje, para dar um descanso ao pé. É de uma cidadezinha do Interior de São Paulo, cujo nome já não me lembro. Muito simpático. Batemos um bom papo e eu o aconselhei a pegar leve nos próximos dias, pra poder concluir o Caminho.
Alguns metros após deixar a pequena e graciosa Rabé para trás, encontrei uma gracinha de casal espanhol, que deve estar na faixa dos sessenta, Gabriel e Ana. Fomos conversando até Hornillos del Caminho. A conversa me fez a caminhada mais leve. Apesar do sol forte, caminhei o dia todo com um vento agradável, que refrescava sem fazer frio. O céu estava lindo, bem azul, e cheio de flocos de algodão. Fiz 19 kms em cinco horas, contando com as paradas. É verdade que a caminhada foi quase toda no plano. Só no final subimos uma pequena encosta. Quando chegamos em cima, avistamos Hornillos del Camino lá embaixo no vale. Linda vista. E o melhor é que estava claro que a cidadezinha se encontrava a pouca distância, o que é muito alentador quando a gente está caminhando há cinco horas.
Me despedi de Gabriel e Ana na entrada da cidade e me dirigi ao albergue. É um lugar simples, uma casa de família. Mas o casal é muito simpático. Estou num quarto com dez pessoas. Veremos como será a dormida. Após comer, dei uma volta pelo vilarejo e consegui visitar a Igreja, uma construção românica, sem muitos adornos, porém com uma bela “flor” no teto, bem no centro da nave principal. Fora isso, não há nada em Hornillos. Apenas uma rua principal, com casinhas ocres de ar centenário.
Hoje tirei poucas fotos com meu celular, que é lentíssimo, porque tem apenas uma vaga lembrança, em lugar da memória. Terei de guardar no coração as lembranças da caminhada de hoje. O que não é mau. A gente se acostuma tanto a depender de equipamentos eletrônicos, que acaba ficando com o cérebro preguiçoso.
É isso, Niquinha. Vou cuidar de me deitar, porque todo mundo já se recolheu. Estou contente com minhas roupas térmicas. Vou dormir mais quentinha. Também comprei umas luvas de esporte, pois estou com as mãos cheias de calos, por causa dos bastões.
Fica com Deus, Minha Irmã.
Beijos mil,

Léia

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