segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 35


19/10/15

Boa noite, Minha Irmã!
Caminhando nas nuvens. Foi assim o dia de ontem. Uma neblina densa cobriu as montanhas por onde caminhei, praticamente o dia todo. Chovia fino e pouco, logo, uma chuva que não incomodou quase nada. A verdade é que essa neblina espessa deu um ar meio mágico à paisagem. Foi um belo dia de caminhada, entre Rabanal e Acebo.
Dormi super bem, com dois cobertores e a casa aquecida. Quase que me faltava coragem para levantar quando o despertador tocou, às sete horas da manhã. Uma pena que eu tenho de preparar a mochila para ser despachada, porque se não fosse isso, dificilmente teria saído da cama antes das nove. Bom, me organizei, tomei café ainda conversei um pouco com o casal mineiro, fiz uma massagem nos pés, numa cadeira de massagens (dois euros) e me despedi da gracinha de Dona Ângela. Caminhei pela rua principal da pequena cidade, ainda fui verificar se a Igreja estava aberta (negativo) e parei num bar quase na saída de Rabanal, para usar o sinal de internet e poder dar notícias para mamãe.
Já peguei a estrada com muita neblina. Só dava para enxergar alguns metros à frente. Segui por uma estradinha de terra cercada de mato. Muitas samambaias e uns arbustos verdes que parecem um tipo de pinheiro em miniatura. As samambaias estavam lindas, amarelas e alaranjadas. Se destacavam muito sobre o fundo branco da névoa. Em alguns pontos, a vegetação se projetava sobre o caminho, deixando a passagem bem estreita. Passei por bosques de pinheiros enredados na névoa branca. Fazia frio, mas estava encantada com o efeito da névoa, e curtindo o perfume gostoso da terra molhada. A caminhada do dia foi quase toda de subida do Monte Irago. Em alguns trechos, dava para ver, por entre a névoa, a silhueta das outras montanhas em volta.
Passei por um vilarejo chamado Foncebadón. Parei no restaurante La Taberna de Gaia, muito recomendado por Marisa e Carlos (do Gaia). A Taberna é um restaurante com ambientação medieval, muito interessante. Ainda era cedo (umas doze e meia) e quase desanimei quando vi a plaquinha que anunciava almoço a parti das 13:30h. Resolvi bater na porta que estava fechada porque vi luzes acesas pela cortina das janelas. O dono, um senhor de barba bem cheia, veio abrir e me convidou para entrar. Estavam começando o expediente. Ainda não estavam prontos para servir refeições, mas podiam me servir uma sopa. Adorei a ideia, porque o dia estava bastante frio. Tomei um delicioso creme de abóbora e um chá digestivo, com um pedacinho de uma deliciosa torta de chocolate com biscoito Maria.
Alimentada e aquecida, retomei a estrada. Dois quilômetros depois, cheguei ao ponto mais alto do Monte Irago, onde fica a Cruz de Ferro. Trata-se de uma coluna bem alta, com uma cruz de ferro na ponta. A coluna de madeira se assenta sobre um monte de pedras. Acho que milhares de pedrinhas, fitas, fotografias, conchas e outros objetos deixados pelos peregrinos se amontoam em torno da coluna, ou ficam amarrados nela. Originalmente, os peregrinos colocavam ali sua pedrinha para que fossem protegidos de todos os perigos até chegaram a Santiago. Atualmente, a crença é de que ao depositar uma pedra aos pés da cruz, o peregrino está deixando ali todos os pesos que carrega na alma. Depositei uma vieira pequenininha, que vinha trazendo amarrada à minha mochilinha, em agradecimento pela graça que sei que alcançarei. Ao lado da Cruz há uma Ermida, mas estava fechada. 
Continuei caminhando em meio à névoa, enxergando cada vez menos o caminho à minha frente. Ouvi sinos de vacas, ou outro animal, que eu não conseguia ver. Até que cheguei a Manjarin, povoado de um só habitante. Para ser sincera, nem devia constar no mapa como se fosse um povoado. Tudo que existe em Manjarin é um refúgio, uma velha e meio destruída casa de pedra, onde vive um sujeito que pertence a uma “Ordem” contemporânea de Templários (pelo que eu pude perceber, não há nenhuma conexão histórica direta com a Ordem dos Templários, a não ser a vontade de resgatar essa tradição). O refúgio é um grande bricolage de objetos, bandeiras, santinhos, imagens, referências aos Templários. Sobre uma mesa, duas garrafas térmicas, com café e água quente (supostamente). O peregrino pode se servir e deixar um donativo. Meio receosa, porque as garrafas pareciam tão velhas como os castelos templários, me servi de um pouco de café, pra não fazer desfeita ao rapaz que me recebeu.
Na saída desse refúgio, encontrei com um senhor que vinha chegando para recolher sua mochila. Pensava que ali era um albergue. Eu não disse nada, mas fiquei pensando que ele teria uma surpresa pouco agradável. Aquele refúgio não tinha a menor condição de hospedar um peregrino. As condições do lugar eram bem precárias.
Continuei minha caminhada por entre a névoa, os arbustos, as samambaias, os pinheiros verdinhos e algumas árvores coloridas de amarelo. Em alguns trechos eu via a silhueta das montanhas bem à minha frente, com a névoa cobrindo-as parcialmente. A sensação era de que eu estava andando em direção ao céu. Tão bonito. Como te disse, estava tão encantada com o cenário, que nem liguei muito pro frio ou pra chuvinha fina. Essa chuvinha fina não me incomoda. O único problema é que a capa impermeável esquenta por dentro e acaba que o calor condensa o ar dentro da capa. Então a roupa termina ficando um pouco molhada, não pela chuva, mas pelo abafado. Já escolada, ponho meu computador e papéis dentro de um saco plástico, dentro da mochila, que fica molhada por fora.
Após uma curva da estrada, avistei, um pouco abaixo, encravado nas montanhas, o povoado de Acebo, onde deveria passar a noite. Nessa altura, o senhor da mochila me alcançou. Quando viu as condições do refúgio templário, resolveu seguir até Acebo. Ele é canadense e falava pelos cotovelos. Foi conversando (bem dizer um monólogo, porque eu basicamente só concordava com o que ele dizia) até chegarmos ao albergue. Tivemos uma descida bem acentuada pela frente, numa estradinha de terra e pedras soltas. Caminhei com cuidado e lentamente.
Acebo é um povoado de nada, com suas casinhas de pedra. No final, após as últimas casas, tem um hotel La Casa del Peregrino, que é também albergue. É um lugar organizadíssimo, novo, limpo, super estruturado. São instalações de um bom hotel, na realidade. Um verdadeiro luxo considerando-se os albergues do Caminho. Dormi no quarto com o canadense, uma coreana e uma jovem alemã. Dormi muitíssimo bem, com dois cobertores, numa cama bem confortável. De novo, nem queria acordar. Esse hotel, assim como o albergue de Dona Ângela, tem um horário bem flexível, coisa que eu adoro, por não me obrigar a acordar às seis da matina e estar na rua às oito.
Tomei um lauto café da manhã. Foram os quatro euros mais bem pagos de todo o Caminho. Durante o café fiquei conversando com um rapaz alemão que fez um pouco como eu. Largou o emprego, vendeu o carro e os móveis e vai passar dois anos viajando pelo mundo. Ele começou fazendo o Caminho de Santiago e depois quer ir para a Patagônia. História semelhante à de muitos peregrinos que eu tenho encontrado: excesso de trabalho, muita correria e necessidade de resetar a própria vida, de modo a se reencontrar e encontrar um estilo de vida que traga maior satisfação e alegria. Só que no caso dele percebi nas entrelinhas que o gatilho foi o rompimento de uma relação amorosa.
Fui a última peregrina a deixar La Casa del Peregrino. Havia chovido muito durante a noite e estava tudo molhado. Quando comecei a andar, caía uma chuva um pouco mais forte que a de ontem, mas ainda assim era uma chuva suave. A neblina continuava cobrindo as montanhas. Só que foi descida praticamente o dia todo! E descida em meio a pedras lisas e pontiagudas. Andei com o máximo cuidado, e bem lentamente, porque nem queria cair, nem forçar meus joelhos. Cosme e Damião foram imprescindíveis hoje! Não sei o que seria de mim sem eles.
Poucos quilômetros depois de Acebo cheguei a uma gracinha de vilarejo, chamado Riego de Ambrós. Algumas casinhas de pedra, outras de alvenaria com lindas varandas de madeira, que me lembraram as casas mais antigas de Nova Orleans, justamente de influência espanhola. Aliás, pensando bem, elas lembram a varanda do Mourisco de Olinda. Na saída de Riego de Ambrós devo ter me distraído, e pela primeira vez desde que comecei o Caminho perdi a orientação das flechinhas amarelas. Em lugar de retomar a estradinha de terra e pedra que deveria seguir pelo meio do mato, segui andando junto de uma estrada de asfalto. Quando comecei a sentir falta das flechas já estava a uma certa distância do vilarejo. Ainda pensei em voltar, porém, a essa altura a chuva começou a engrossar e como a estrada descia, estava certa de que a direção estava correta. Resolvi seguir pelo acostamento. A estrada tinha pouco movimento e era até bonita, toda ladeada por castanheiras. As castanheiras (da castanha portuguesa, creio eu), são árvores frondosas e estão dando fruto agora. A castanha nasce dentro de uma casca que parece um ouriço. A casca se abre e as castanhas caem pelo chão. O acostamento estava cheio de ouriços e castanhas. Um desperdício. Em certa altura vi um senhorzinho com um balde, catando as castanhas da beira da estrada.
Não andei muito pela beira da estrada, porque em certo ponto o Caminho cruzava a estrada de asfalto e pude, então, retomar as minhas flechinhas. A essa altura, é estranho caminhar sem a companhia delas. Voltei a andar pela estradinha estreita e pedregosa, em meio ao mato. A caminhada é mais difícil, porém, muito mais agradável. A descida até a cidadezinha de Molinaseca foi a parte mais delicada da caminhada de hoje. O terreno era muito íngreme e muito pedregoso! Fui realmente devagar. Todos os peregrinos passavam por mim, e eu, no meu passinho de formiga. Devagar e sempre, pois quero chegar a Santiago e quero chegar bem.
Molinaseca também é um amor de vilarejo. Maiorzinha e mais viva do que Riego de Ambrós, tem uma bela ponte de pedra, cruzando o rio que banha a cidade. Mais casinhas avarandadas, super charmosas. Entrei numa bodeguinha para descansar um pouco, verificar o mapa e usar o banheiro. Conheci três rapazes espanhóis que tinham passado por mim na descida até Molinaseca. Uma simpatia. A dona da bodega era extremamente amável e se percebia sua grande simpatia pelos peregrinos. Saí de Molinaseca debaixo de forte chuva. Minhas meias, que até então estavam aguentando firmes, começaram a ficar molhadas. O Caminho seguiu junto à rodovia, mas a dada altura desviava para a esquerda para chegar a Ponferrada pelo Oeste. No entanto, meu albergue ficava no lado Leste de Ponferrada. Como chovia muito e eu estava ficando com os pés encharcados, decidi seguir acompanhando o asfalto. A distância era praticamente a mesma, só que eu chegaria à cidade mais perto do meu destino final. E assim fui. Bem sem gracinha esse trecho entre Molinaseca e Ponferrada por essa estrada vicinal, mas, paciência. Só casas e asfalto. Molinaseca me pareceu ser quase um subúrbio de Ponferrada, que é uma cidade bem grande, com quase setenta mil habitantes.
Cheguei a Ponferrada mais aborrecida com a chuva, o frio e os pés encharcados do que propriamente cansada. Estou enfaixando meu pé direito bem direitinho e por cima da faixa coloco uma tornozeleira. Hoje ele aguentou bem o tranco. Ainda está dolorido, mas o inchaço é leve e está sob controle. Não vem aumentando. A bolha do calcanhar secou inteiramente. Na realidade, uns quatro dias atrás vi que tinha formado uma bolha dentro da bolha. Aí resolvi tirar a pele. Cortei com o alicate e protegi bem antes de caminhar, nos últimos dias. Hoje ela amanheceu bem sequinha.
Bom, ainda não vi nada de Ponferrada. Tem um Castelo dos Templários, que eu quero muito visitar, mas chovia tanto quando eu cheguei, que eu só quis saber de tomar banho e ficar no quentinho e no seco. Não tive mais coragem de pôr o pé na rua. Custei a achar meu albergue dessa vez. Pedi orientação num posto de gasolina e me mandaram pra outro albergue. Rodei um pouco, mas afinal encontrei o rumo. É um albergue muito bonzinho, familiar. Chama-se Alea. Conheci um brasileiro aqui, Rafael, do Espírito Santo. Creio que vá dormir bem. Só tem mais duas pessoas no meu quarto, e estou na cama debaixo. Tem várias cobertas aqui.
Nica, acredita que eu já andei 573 kms???!!! Só me faltam 207 kms para chegar a Santiago! Um dia desses papai me perguntou pela quilometragem, e eu tinha feito pouco mais de duzentos. Deus me permita chegar ao final direitinho! Amanhã pretendo ir até Pieros. A cidade não tem nada, mas Mincho me recomendou um albergue bem legal, com massagem, meditação. Se for mesmo legal, vou ficar dois dias, para dar um descanso ao pé. É isso, Minha Irmã. Vou comer uma coisinha leve agora e verei se me deito mais cedo hoje.
Muuuuuitas saudades!
Beijos no coração,

Léia 

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