terça-feira, 27 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 37


23/10/15

Minha Amada Irmã!
Como é possível transformar a dor em Amor???!!!
Imagine um casarão antigo, com pelo menos 300 anos de existência. Algumas paredes de pedra, outras caiadas, enormes vigas de madeira sustentando o teto, pé direito altíssimo, enormes janelas e um charmoso abalcoado dando para uma rua estreita, cheinho de flores. Volte no tempo e pense que um próspero comerciante, Don Leo, pai de duas filhas, há muitas décadas comprou essa casa de alguma família que outrora tivera muito dinheiro. Nesse casarão, viu as filhas crescerem, e uma delas apaixonar-se por um filho de camponeses, rapaz inteligente e talentoso. Nas aulas de violão, junto à cozinha, nasceu o namoro, que terminou em casamento. Mercê e Pepe tiveram, por sua vez, três filhas: Conche, María e Ángela. As filhas cresceram, tomaram seu destino, abandonando a pequena cidade encravada nas montanhas do Bierzo, e o casarão ficou vazio e grande demais para o casal de comerciantes, que se mudaram para uma casa menor e mais moderna. As três irmãs são amigas inseparáveis. Estudam, vivem na cidade grande, namoram, curtem a vida. Conche, a primogênita, vive um romance de conto de fadas com um jovem advogado. Fazem planos de casar-se. E vai que a vida, que parecia seguir um curso tranquilo, surpreende a todos. Um câncer lhe colhe a vida na flor da idade. Após alguns anos de luta contra a doença, a Jovem com semblante de Anjo e olhar doce, parte para uma outra jornada. A família fica desnorteada. A dor é profunda e quase devastadora. É custoso para cada qual retornar aos afazeres cotidianos, retomar os fios partidos das próprias vidas. Até que Pepe e Mercê têm uma ideia. Que tal reformar o casarão abandonado e convertê-lo num albergue para os peregrinos de Santiago? A velha casa, que parecia morta, ressurge, cheia de encanto e de luz. As filhas voltam de Madri. Retornam ao Lar, para recriá-lo. O Albergue na casa do velho Don Leo se torna muito mais que um lugar de hospedagem, é refúgio. É casa de acolhida e amparo. Muito mais que o conforto das instalações de um hotel, no casarão premiado pela reforma primorosa, o peregrino encontra ali o que há de mais precioso pelo Caminho: o milagre do Amor. O fogo da lareirinha da sala de estar, permanentemente aceso, é a metáfora perfeita do Carinho, da Atenção Amorosa e vigilante que Mercê, Pepe, María e Ângela dispensam aos peregrinos que têm a sorte de ali pernoitarem. Conche também está presente. É inspiração permanente para essa família que soube se reinventar por meio da Entrega, da Doação, do Amor.
Imagine, Minha Irmã, como me senti feliz e amparada nesses dois dias e meio em que estive nessa linda Casa. Fui tratada com o desvelo e o carinho com que papai, mamãe, você e Quel me teriam tratado. Me punham sentada em frente à lareira, mantinham o fogo aceso, me traziam balde com água quente para pôr os pés, me traziam gelo, me serviam café e chá (sem me cobrar nada por isso, apesar de eles terem um bar para esses serviços). Ángela fez um jantar para mim. Assou batatas, chouriços e castanhas na lareira. Pôs a mesa e comemos, eu, ela e María, na quinta-feira à noite. Além disso, depois que Miguel foi embora, me deixaram sozinha no quarto, por duas noites. Foi como se eu tivesse pagado por um quarto privado. Estive inteiramente à vontade. E Pepe ligou o aquecedor do quarto para ter certeza de que eu dormiria no quentinho. Enfim, foi um mimo de Deus, como gosta de dizer Tia Regina. E dos mais caprichados!
Na quarta à noite (21/10), conheci um jovem mexicano extremamente doce e alegre. Ele trabalha num escritório de empresa, mas é um pintor bastante talentoso. E você sabe como eu sou chata pra pintura contemporânea. Ficamos conversando até tarde, eu, ele, Miguel, María e Mercê. Estávamos tentando convencê-lo a investir no que realmente o apaixona, que é a pintura. Mário me fez pensar muito em quantas pessoas estão presas a uma zona de conforto, enquanto deixam o tempo da vida passar e levar embora a oportunidade de fazerem aquilo que realmente as realiza e enche seus corações de Alegria.
Repousei durante toda a manhã da quinta, na saleta com a lareira, sendo tratada como um princesa. Fiquei conversando com uma australiana que ficou 13 dias parada, em Logroño, por causa de uma tendinite braba. Deixe-me logo dizer que ao contrário de mim, que estou cuidando do pé desde os primeiros sintomas de tendinite, ela foi esticando a corda e minimizando os sintomas, até que não pôde mais caminhar. Ao menos ela parecia bem consciente e conformada. Entendeu que estava pagando o preço do orgulho e da arrogância, porque se recusou a refazer seus planos, a diminuir o ritmo da marcha, a reconhecer os próprios limites. Até que não teve mais opção. Agora, ela está retomando a caminhada aos poucos.
Miguel me convidou para almoçar. Acho que foi para retribuir o almoço que eu tinha feito na véspera, quando chegamos a Vilafranca. Fomos a um restaurante na Plaza Mayor, chamado Casino. Comida muito gostosa. Comi uns ovos mexidos com chouriço e maçã que estavam uma delícia, e uma carninha guisada de tempero bem caseiro. Após o almoço, ele foi ao Albergue buscar sua mochila para pegar o ônibus de volta para León. Miguel também está com uma tendinite, e como tinha pouco tempo para fazer o Caminho, decidiu voltar para casa. Ele estava fazendo a etapa entre León e Santiago. Eu descobri, aqui, que muita gente faz o Caminho por etapas, normalmente pela questão do tempo. Miguel estava triste de abandonar essa etapa do Caminho. Diz ele que existe a depressão pós-Caminho, que é para eu me preparar. Acabei pegando o ônibus com ele, porque queria voltar a Fuentes Nuevas, antes de Ponferrada, para procurar pela rua que tem o nome do pai de Carlos, marido da minha amiga Chrissy. Eu tinha passado por Fuentes Nuevas na caminhada até Pieros, só que não lembrava que era ali o povoado dos antepassados de Carlos. Como queria muito tirar uma foto diante da placa da rua, e ainda estava ali pertinho, resolvi dar um pulo lá. Me despedi de Miguel, desci do ônibus e me dirigi a um bar em frente à parada. A moça não conhecia a rua, mas foi gentilíssima e procurou no google maps pra mim. Facilmente cheguei à ruazinha, que é justo por trás da velha Igrejinha da cidade.
Tirei minhas fotos, fiz o caminho de volta para a rua principal, peguei meu ônibus de volta e quando desci em Villafranca del Bierzo e estava andando de volta para o albergue, uma peregrina que estava chegando à cidade me parou para pedir informações. Era uma brasileira, Susi. Estávamos caminhando para nossos albergues, quando passamos pela Colegiata. A porta estava aberta e decidimos entrar. Essa Igreja é um enorme edifício de pedra, de arcos arredondados no interior e imensas colunas de sustentação. Não tinha nenhuma placa explicativa, mas tive a impressão de uma mistura de estilos, porque ela tem alguns poucos arcos ogivais e nervuras tipicamente góticas no teto (que é trabalhado com seixos!), mas o restante do edifício parece românico. Não é uma Igreja especialmente bonita. É mais impressionante pelo tamanho. O altar principal certamente é de data bem mais recente, em mármore colorido. Não me agradou muito. No entanto, há alguns altares laterais de um barroco tardio. Um deles tem uma representação no centro que só tinha visto uma vez na vida (aqui no Caminho), com Deus Pai segurando Jesus na Cruz. Essa é uma imagem que me comove.   
Bom, após a visita à Colegiata, me despedi de Susi e voltei ao Albergue Leo. Lá estava uma massagista que também faz Reiki. Fazia dias que eu estava com a ideia de que devia fazer uma sessão de Reike. O problema é que já era tarde e ela ainda tinha duas pessoas para atender. Ela mora a 40 kms e se dispôs a vir no dia seguinte só para me atender. Detalhe, ela não cobra a sessão de Reike. Se a pessoa quiser, faz uma doação. Fiquei muito sensibilizada com o gesto de Mabel, que é o nome dela. Quando Mabel terminou suas massagens, Ângela preparou o jantar a que já me referi. Fui dormir feliz.
Nessa sexta-feira acordei tardíssimo. Já eram quase oito e meia quando me levantei! E passei o dia quase todo de pernas pro ar. Pus muito gelo. Fiz meditação. Almocei no albergue mesmo. Tinha sobrado um pouco da pasta que fiz a quarta e uns tomates. Preparei uma salada deliciosa, com castanhas da véspera, kiwi e aspargos. Enquanto comia, na salinha da lareira, bati um bom papo com Pepe! Ele é mais reservado que as mulheres da casa, mas conversamos animadamente. Pepe me contou muitas coisas sobre a região do Bierzo, falou sobre os tempos da Guerra Civil, da chegada da luz elétrica e da água encanada aos povoados do Norte da Espanha. Foi uma conversa muito instrutiva. No final da tarde, Mabel apareceu e fiz minha sessão de Reike. Foi a primeira vez em que fiz Reike e me impressionou muito como a gente consegue sentir a energia se movimentando no organismo, e os pontos de tensão. Adorei. E acho que me fez muito bem. Quando estava terminando a massagem, Susi, a brasileira da véspera, chegou para uma visita de surpresa. Foi ótimo, porque ela fez uma massagem com Mabel e me senti mais confortável, porque pelo menos fez a viagem de Mabel ”render” algo mais. Enquanto Susi fazia sua massagem, fui tomar meu banho.
Então, saímos, eu e Susi, para encontrar um casal amigo dela, um iraniano e uma austríaca, que trabalharam muitos anos para o FMI. Só que quando passamos pela Colegiata, ia começar uma missa. Eu e Susi resolvemos assistir à missa. Foi muito especial, porque a missa foi celebrada no secular coro esculpido em madeira (imagino que deve ser do século XVII, em estilo hispano-flamenco). A missa estava cheia com a população local, por conta do falecimento de uma senhorinha. Sentamos na parte superior do coro. E eu aproveitei para usar a misericórdia do meu banco, para poupar o calcanhar enquanto estava de pé. Após a missa, fomos jantar com Christina e Aziz no Casino (que eu recomendei). Na verdade, eles jantaram e eu só acompanhei no vinho, porque ainda tinha o resto da minha deliciosa salada me esperando no albergue. A conversa foi muito interessante. Conversamos sobre política internacional, e sobre o Brasil. Me dei conta de que ainda preciso aprimorar a arte do silêncio. Quando o assunto é Brasil, ainda tenho dificuldade de calar e ouvir.
E assim terminaram meus deliciosos dias em Villafranca del Bierzo, que me acolheu com uma magia que nunca esquecerei.
Saudades, Niquinha! Fica com Deus.
Beijos mil,

Léia

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