23/10/15
Minha Amada Irmã!
Como é possível
transformar a dor em Amor???!!!
Imagine um casarão
antigo, com pelo menos 300 anos de existência. Algumas paredes de pedra, outras
caiadas, enormes vigas de madeira sustentando o teto, pé direito altíssimo,
enormes janelas e um charmoso abalcoado dando para uma rua estreita, cheinho de
flores. Volte no tempo e pense que um próspero comerciante, Don Leo, pai de
duas filhas, há muitas décadas comprou essa casa de alguma família que outrora
tivera muito dinheiro. Nesse casarão, viu as filhas crescerem, e uma delas
apaixonar-se por um filho de camponeses, rapaz inteligente e talentoso. Nas
aulas de violão, junto à cozinha, nasceu o namoro, que terminou em casamento. Mercê
e Pepe tiveram, por sua vez, três filhas: Conche, María e Ángela. As filhas
cresceram, tomaram seu destino, abandonando a pequena cidade encravada nas
montanhas do Bierzo, e o casarão ficou vazio e grande demais para o casal de
comerciantes, que se mudaram para uma casa menor e mais moderna. As três irmãs
são amigas inseparáveis. Estudam, vivem na cidade grande, namoram, curtem a
vida. Conche, a primogênita, vive um romance de conto de fadas com um jovem
advogado. Fazem planos de casar-se. E vai que a vida, que parecia seguir um
curso tranquilo, surpreende a todos. Um câncer lhe colhe a vida na flor da
idade. Após alguns anos de luta contra a doença, a Jovem com semblante de Anjo
e olhar doce, parte para uma outra jornada. A família fica desnorteada. A dor é
profunda e quase devastadora. É custoso para cada qual retornar aos afazeres
cotidianos, retomar os fios partidos das próprias vidas. Até que Pepe e Mercê
têm uma ideia. Que tal reformar o casarão abandonado e convertê-lo num albergue
para os peregrinos de Santiago? A velha casa, que parecia morta, ressurge,
cheia de encanto e de luz. As filhas voltam de Madri. Retornam ao Lar, para
recriá-lo. O Albergue na casa do velho Don Leo se torna muito mais que um lugar
de hospedagem, é refúgio. É casa de acolhida e amparo. Muito mais que o
conforto das instalações de um hotel, no casarão premiado pela reforma
primorosa, o peregrino encontra ali o que há de mais precioso pelo Caminho: o milagre
do Amor. O fogo da lareirinha da sala de estar, permanentemente aceso, é a
metáfora perfeita do Carinho, da Atenção Amorosa e vigilante que Mercê, Pepe,
María e Ângela dispensam aos peregrinos que têm a sorte de ali pernoitarem.
Conche também está presente. É inspiração permanente para essa família que
soube se reinventar por meio da Entrega, da Doação, do Amor.
Imagine, Minha Irmã,
como me senti feliz e amparada nesses dois dias e meio em que estive nessa
linda Casa. Fui tratada com o desvelo e o carinho com que papai, mamãe, você e
Quel me teriam tratado. Me punham sentada em frente à lareira, mantinham o fogo
aceso, me traziam balde com água quente para pôr os pés, me traziam gelo, me serviam
café e chá (sem me cobrar nada por isso, apesar de eles terem um bar para esses
serviços). Ángela fez um jantar para mim. Assou batatas, chouriços e castanhas
na lareira. Pôs a mesa e comemos, eu, ela e María, na quinta-feira à noite.
Além disso, depois que Miguel foi embora, me deixaram sozinha no quarto, por
duas noites. Foi como se eu tivesse pagado por um quarto privado. Estive
inteiramente à vontade. E Pepe ligou o aquecedor do quarto para ter certeza de
que eu dormiria no quentinho. Enfim, foi um mimo de Deus, como gosta de dizer
Tia Regina. E dos mais caprichados!
Na quarta à noite
(21/10), conheci um jovem mexicano extremamente doce e alegre. Ele trabalha num
escritório de empresa, mas é um pintor bastante talentoso. E você sabe como eu
sou chata pra pintura contemporânea. Ficamos conversando até tarde, eu, ele,
Miguel, María e Mercê. Estávamos tentando convencê-lo a investir no que
realmente o apaixona, que é a pintura. Mário me fez pensar muito em quantas
pessoas estão presas a uma zona de conforto, enquanto deixam o tempo da vida
passar e levar embora a oportunidade de fazerem aquilo que realmente as realiza
e enche seus corações de Alegria.
Repousei durante toda
a manhã da quinta, na saleta com a lareira, sendo tratada como um princesa.
Fiquei conversando com uma australiana que ficou 13 dias parada, em Logroño,
por causa de uma tendinite braba. Deixe-me logo dizer que ao contrário de mim,
que estou cuidando do pé desde os primeiros sintomas de tendinite, ela foi
esticando a corda e minimizando os sintomas, até que não pôde mais caminhar. Ao
menos ela parecia bem consciente e conformada. Entendeu que estava pagando o
preço do orgulho e da arrogância, porque se recusou a refazer seus planos, a
diminuir o ritmo da marcha, a reconhecer os próprios limites. Até que não teve
mais opção. Agora, ela está retomando a caminhada aos poucos.
Miguel me convidou
para almoçar. Acho que foi para retribuir o almoço que eu tinha feito na
véspera, quando chegamos a Vilafranca. Fomos a um restaurante na Plaza Mayor, chamado
Casino. Comida muito gostosa. Comi uns ovos mexidos com chouriço e maçã que
estavam uma delícia, e uma carninha guisada de tempero bem caseiro. Após o
almoço, ele foi ao Albergue buscar sua mochila para pegar o ônibus de volta
para León. Miguel também está com uma tendinite, e como tinha pouco tempo para
fazer o Caminho, decidiu voltar para casa. Ele estava fazendo a etapa entre
León e Santiago. Eu descobri, aqui, que muita gente faz o Caminho por etapas,
normalmente pela questão do tempo. Miguel estava triste de abandonar essa etapa
do Caminho. Diz ele que existe a depressão pós-Caminho, que é para eu me preparar.
Acabei pegando o ônibus com ele, porque queria voltar a Fuentes Nuevas, antes
de Ponferrada, para procurar pela rua que tem o nome do pai de Carlos, marido
da minha amiga Chrissy. Eu tinha passado por Fuentes Nuevas na caminhada até
Pieros, só que não lembrava que era ali o povoado dos antepassados de Carlos.
Como queria muito tirar uma foto diante da placa da rua, e ainda estava ali pertinho,
resolvi dar um pulo lá. Me despedi de Miguel, desci do ônibus e me dirigi a um
bar em frente à parada. A moça não conhecia a rua, mas foi gentilíssima e
procurou no google maps pra mim.
Facilmente cheguei à ruazinha, que é justo por trás da velha Igrejinha da
cidade.
Tirei minhas fotos,
fiz o caminho de volta para a rua principal, peguei meu ônibus de volta e
quando desci em Villafranca del Bierzo e estava andando de volta para o albergue,
uma peregrina que estava chegando à cidade me parou para pedir informações. Era
uma brasileira, Susi. Estávamos caminhando para nossos albergues, quando
passamos pela Colegiata. A porta estava aberta e decidimos entrar. Essa Igreja
é um enorme edifício de pedra, de arcos arredondados no interior e imensas
colunas de sustentação. Não tinha nenhuma placa explicativa, mas tive a
impressão de uma mistura de estilos, porque ela tem alguns poucos arcos ogivais
e nervuras tipicamente góticas no teto (que é trabalhado com seixos!), mas o
restante do edifício parece românico. Não é uma Igreja especialmente bonita. É
mais impressionante pelo tamanho. O altar principal certamente é de data bem
mais recente, em mármore colorido. Não me agradou muito. No entanto, há alguns
altares laterais de um barroco tardio. Um deles tem uma representação no centro
que só tinha visto uma vez na vida (aqui no Caminho), com Deus Pai segurando
Jesus na Cruz. Essa é uma imagem que me comove.
Bom, após a visita à
Colegiata, me despedi de Susi e voltei ao Albergue Leo. Lá estava uma massagista
que também faz Reiki. Fazia dias que eu estava com a ideia de que devia fazer
uma sessão de Reike. O problema é que já era tarde e ela ainda tinha duas
pessoas para atender. Ela mora a 40 kms e se dispôs a vir no dia seguinte só
para me atender. Detalhe, ela não cobra a sessão de Reike. Se a pessoa quiser,
faz uma doação. Fiquei muito sensibilizada com o gesto de Mabel, que é o nome
dela. Quando Mabel terminou suas massagens, Ângela preparou o jantar a que já
me referi. Fui dormir feliz.
Nessa sexta-feira acordei
tardíssimo. Já eram quase oito e meia quando me levantei! E passei o dia quase
todo de pernas pro ar. Pus muito gelo. Fiz meditação. Almocei no albergue mesmo.
Tinha sobrado um pouco da pasta que fiz a quarta e uns tomates. Preparei uma salada
deliciosa, com castanhas da véspera, kiwi e aspargos. Enquanto comia, na
salinha da lareira, bati um bom papo com Pepe! Ele é mais reservado que as mulheres
da casa, mas conversamos animadamente. Pepe me contou muitas coisas sobre a região
do Bierzo, falou sobre os tempos da Guerra Civil, da chegada da luz elétrica e
da água encanada aos povoados do Norte da Espanha. Foi uma conversa muito
instrutiva. No final da tarde, Mabel apareceu e fiz minha sessão de Reike. Foi
a primeira vez em que fiz Reike e me impressionou muito como a gente consegue
sentir a energia se movimentando no organismo, e os pontos de tensão. Adorei. E
acho que me fez muito bem. Quando estava terminando a massagem, Susi, a
brasileira da véspera, chegou para uma visita de surpresa. Foi ótimo, porque
ela fez uma massagem com Mabel e me senti mais confortável, porque pelo menos
fez a viagem de Mabel ”render” algo mais. Enquanto Susi fazia sua massagem, fui
tomar meu banho.
Então, saímos, eu e
Susi, para encontrar um casal amigo dela, um iraniano e uma austríaca, que
trabalharam muitos anos para o FMI. Só que quando passamos pela Colegiata, ia
começar uma missa. Eu e Susi resolvemos assistir à missa. Foi muito especial,
porque a missa foi celebrada no secular coro esculpido em madeira (imagino que
deve ser do século XVII, em estilo hispano-flamenco). A missa estava cheia com
a população local, por conta do falecimento de uma senhorinha. Sentamos na
parte superior do coro. E eu aproveitei para usar a misericórdia do meu banco,
para poupar o calcanhar enquanto estava de pé. Após a missa, fomos jantar com
Christina e Aziz no Casino (que eu recomendei). Na verdade, eles jantaram e eu
só acompanhei no vinho, porque ainda tinha o resto da minha deliciosa salada me
esperando no albergue. A conversa foi muito interessante. Conversamos sobre política
internacional, e sobre o Brasil. Me dei conta de que ainda preciso aprimorar a
arte do silêncio. Quando o assunto é Brasil, ainda tenho dificuldade de calar e
ouvir.
E assim terminaram
meus deliciosos dias em Villafranca del Bierzo, que me acolheu com uma magia
que nunca esquecerei.
Saudades, Niquinha! Fica
com Deus.
Beijos mil,
Léia
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