17/10/15
Niquinha, Querida,
Acordei cedinho como
costuma acontecer nesses albergues grandes, com muita gente e hora marcada pra
evacuar o lugar! No café da manhã, conheci mais duas brasileiras, mãe e filha.
São do Sul e já fizeram o Caminho várias vezes. Estavam falando sobre um
encontro de brasileiros que aconteceria ontem mesmo, no final do dia, em
Astorga. Eles deveriam se encontrar e caminhar juntos até uma cidadezinha
próxima, onde mataram a moça americana, para fazer uma homenagem a ela. Me
convidaram para ficar e participar do encontro. Mas já parei demais nos últimos
dias e acho que devo guardar os dias extra para alguma necessidade ou por
alguma razão muito especial. Meu limite para chegar a Santiago é dia 6, porque
Dani chega a Madri dia 7 de novembro e devo encontrá-la por lá. Vamos viajar
pela Andaluzia, que eu sonho em conhecer. Estou muito feliz com a vinda dela.
Em todo caso, meu
coração não me pediu pra ficar em Astorga. Renata e o marido (o casal mineiro)
também chegaram ao refeitório para tomar café, e ficamos conversando animadamente
na cozinha do albergue, até a hora do toque de partir. Eu comi pouca coisa na cozinha
do albergue porque estava de olho num chocolate quente de uma pastelería próxima. Pelo que percebi,
Astorga tem uma tradição de chocolate. Até comprei uma barra de uma chocolatería local (chocolate negro com
casca de laranja caramelizada), muito gostosa. Tomei meu chocolate quente e
peguei a estrada.
Comecei a andar numa
manhã fria e nublada. Aos poucos o céu foi abrindo e à tarde chegou a fazer um
pouco de calor. Caminhei a maior parte do tempo por uma picada paralela a uma
estrada vicinal, com pouco movimento de carros. Apesar de termos começado a
subir, a paisagem não teve maiores atrativos até passarmos pelos dois primeiros
povoados (Murias de Rechivaldo e Santa Catalina de Somoza). Ladeando a picada,
apenas arbustos e vegetação rasteira. Ao longe, de vez em quando, se avistavam
os picos da cadeia montanhosa que comecei a atravessar. Nos vilarejos, a feição
das casinhas mudou. São quase todas de uma pedra pesada e angulosa. Telhados
também de pedra.
No vilarejo de El
Ganso parei num mercadinho super simpático. Mercadinho e pousada que pertencem
a um casal. Quando entrei na pousada (procurando o mercado) tocava uma versão
linda da Ave Maria de Gounot, e um incenso queimava sobre a mesa. No mercadinho
tocava uma versão instrumental de uma música que eu adoro (Então minha alma canta a ti Senhor, quão grande és Tu, quão grande és
Tu...). O mercadinho era super organizado e a dona uma gracinha. Se eu não
tivesse mandado minha mochila pradiante, acho que teria me abancado por ali.
Comprei uma paella pronta, que a
senhora esquentou pra mim no micro-ondas, comprei tomate, fiz uma saladinha no
prato que ela me emprestou e comi na varanda da pousada. Como estava andando
muito lentamente, sabia que chegaria ao meu destino mais tarde que o habitual,
e estava com fome.
O último trecho da
caminhada foi bem bonito. A linha das montanhas foi ficando mais próxima, e
passei a caminhar primeiro à beira de um bosque de pinheiros, e depois, em meio
a um bosque com árvores coloridas de amarelo e laranja. Do lado direito, uma
extensa cerca de arame estava repleta de cruzes de madeira -- deixadas pelos
peregrinos--, de todos os tamanhos e jeitos, várias delas enroladas em fitas
coloridas. A estradinha pelo meio do bosque era uma suave subida. A essa altura
o tempo estava bem nublado e a luz do sol furava as nuvens, aqui e ali, iluminando
as montanhas. Pouco depois do fim do bosque com as cruzes cheguei, finalmente,
ao meu destino, Rabanal del Camino.
A verdade é que caminhei
muito lentamente por causa da tendinite (a boa notícia é que a bolha do
calcanhar está praticamente curada). Meu ritmo caiu consideravelmente. Levei o
dia inteiro para fazer 21 kms. E cheguei bem cansada. Ainda bem que o albergue
era bem na entrada. Dona Ângela, a proprietária, é uma gracinha de pessoa! Um
doce de senhorinha. Me recebeu super bem e me instalou no mesmo quarto do casal
mineiro! Uma das melhores coisas dos albergues privados é que eles são bem mais
pessoas e aconchegantes. Instalei-me, tomei meu banho e andei poucos metros até
um mercadinho, só pra comprar comida. No caminho, entrei na Ermida de São José,
que tem um belo retábulo barroco no altar, e fiz uma oração. Mas não tinha
condições de andar mais nada. Voltei pro albergue e fiz meu lanche no
refeitório, que tinha uma deliciosa lareira. O albergue estava com o
aquecimento ligado! Uma felicidade pra mim. Após comer, me instalei com o
computador numa das mesas e estava refazendo minha programação de chegada a
Santiago (pensando em trechos um pouco mais curtos, pra ver se eu mantenho a
tendinite sob controle), quando chegou Moïse, um rapaz da Costa do Marfim, que
é professor universitário na França. Ele mora em Toulouse. Ficamos um tempão
conversando. Depois dele chegou Henrique, o paranaense, que mora há muitos anos
em Rondônia. Também passei horas conversando com Henrique. Ambos estão fazendo
o Caminho pela necessidade de repensarem a própria vida. No fundo, desejam
fazer o processo de reset do próprio
modo de vida, dos hábitos, das prioridades. Tivemos boas conversas e eu
partilhei com eles minhas descobertas no meu processo de reset.
Disse aos dois aquilo
que já escrevi para você: que o coração sabe todas as respostas; ele sempre
sabe o que devemos fazer para vivermos em paz e sermos felizes; o problema é
que a mente vem e traz os medos, os traumas, as convenções sociais, e aí o que
era para ser simples fica complicado. Moïse está caminhando 45 kms por dia! Ou
seja, ele está reproduzindo no Caminho o comportamento condicionado que faz com
que sua rotina seja incessante, corrida, estressante, e sempre muito planejada.
Estava tentando mostrar a ele que o exercício de abrir mão do controle é extremamente salutar. Ele me
dizia que é muito difícil abrir mão do controle, do planejamento, das metas. Eu
sei que é, mas, se a gente não tentar fazer diferente, é impossível quebrar o
círculo vicioso (da própria mente). A questão é que o planejamento e a rotina
nos dão uma falsa sensação de segurança, da qual é difícil desapegar. Moïse riu
muito comigo e me prometeu que iria tentar. Acho que consegui lançar uma
semente o espírito dele. Tomara que frutifique. Troquei contatos com ele e com
Henrique. Moïse me convidou para ir a Toulouse e à Costa do Marfim.
Bom, o dia foi
comprido e cansativo. Mas é assim mesmo. Tento viver um dia de cada vez. O
Caminho está realmente desafiando minha paciência, ou, melhor dizendo, me obrigando
a exercitá-la. Paciência e entrega. Pois, como diz Mincho, a gente só pode ter
certeza do presente. O resto, é como Deus quiser. Mais um dia vencido. Agora,
só peço que amanhã eu consiga chegar ao meu destino.
Beijo no coração,
Léia
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