domingo, 18 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 34


17/10/15

Niquinha, Querida,
Acordei cedinho como costuma acontecer nesses albergues grandes, com muita gente e hora marcada pra evacuar o lugar! No café da manhã, conheci mais duas brasileiras, mãe e filha. São do Sul e já fizeram o Caminho várias vezes. Estavam falando sobre um encontro de brasileiros que aconteceria ontem mesmo, no final do dia, em Astorga. Eles deveriam se encontrar e caminhar juntos até uma cidadezinha próxima, onde mataram a moça americana, para fazer uma homenagem a ela. Me convidaram para ficar e participar do encontro. Mas já parei demais nos últimos dias e acho que devo guardar os dias extra para alguma necessidade ou por alguma razão muito especial. Meu limite para chegar a Santiago é dia 6, porque Dani chega a Madri dia 7 de novembro e devo encontrá-la por lá. Vamos viajar pela Andaluzia, que eu sonho em conhecer. Estou muito feliz com a vinda dela.
Em todo caso, meu coração não me pediu pra ficar em Astorga. Renata e o marido (o casal mineiro) também chegaram ao refeitório para tomar café, e ficamos conversando animadamente na cozinha do albergue, até a hora do toque de partir. Eu comi pouca coisa na cozinha do albergue porque estava de olho num chocolate quente de uma pastelería próxima. Pelo que percebi, Astorga tem uma tradição de chocolate. Até comprei uma barra de uma chocolatería local (chocolate negro com casca de laranja caramelizada), muito gostosa. Tomei meu chocolate quente e peguei a estrada.
Comecei a andar numa manhã fria e nublada. Aos poucos o céu foi abrindo e à tarde chegou a fazer um pouco de calor. Caminhei a maior parte do tempo por uma picada paralela a uma estrada vicinal, com pouco movimento de carros. Apesar de termos começado a subir, a paisagem não teve maiores atrativos até passarmos pelos dois primeiros povoados (Murias de Rechivaldo e Santa Catalina de Somoza). Ladeando a picada, apenas arbustos e vegetação rasteira. Ao longe, de vez em quando, se avistavam os picos da cadeia montanhosa que comecei a atravessar. Nos vilarejos, a feição das casinhas mudou. São quase todas de uma pedra pesada e angulosa. Telhados também de pedra.
No vilarejo de El Ganso parei num mercadinho super simpático. Mercadinho e pousada que pertencem a um casal. Quando entrei na pousada (procurando o mercado) tocava uma versão linda da Ave Maria de Gounot, e um incenso queimava sobre a mesa. No mercadinho tocava uma versão instrumental de uma música que eu adoro (Então minha alma canta a ti Senhor, quão grande és Tu, quão grande és Tu...). O mercadinho era super organizado e a dona uma gracinha. Se eu não tivesse mandado minha mochila pradiante, acho que teria me abancado por ali. Comprei uma paella pronta, que a senhora esquentou pra mim no micro-ondas, comprei tomate, fiz uma saladinha no prato que ela me emprestou e comi na varanda da pousada. Como estava andando muito lentamente, sabia que chegaria ao meu destino mais tarde que o habitual, e estava com fome.
O último trecho da caminhada foi bem bonito. A linha das montanhas foi ficando mais próxima, e passei a caminhar primeiro à beira de um bosque de pinheiros, e depois, em meio a um bosque com árvores coloridas de amarelo e laranja. Do lado direito, uma extensa cerca de arame estava repleta de cruzes de madeira -- deixadas pelos peregrinos--, de todos os tamanhos e jeitos, várias delas enroladas em fitas coloridas. A estradinha pelo meio do bosque era uma suave subida. A essa altura o tempo estava bem nublado e a luz do sol furava as nuvens, aqui e ali, iluminando as montanhas. Pouco depois do fim do bosque com as cruzes cheguei, finalmente, ao meu destino, Rabanal del Camino.
A verdade é que caminhei muito lentamente por causa da tendinite (a boa notícia é que a bolha do calcanhar está praticamente curada). Meu ritmo caiu consideravelmente. Levei o dia inteiro para fazer 21 kms. E cheguei bem cansada. Ainda bem que o albergue era bem na entrada. Dona Ângela, a proprietária, é uma gracinha de pessoa! Um doce de senhorinha. Me recebeu super bem e me instalou no mesmo quarto do casal mineiro! Uma das melhores coisas dos albergues privados é que eles são bem mais pessoas e aconchegantes. Instalei-me, tomei meu banho e andei poucos metros até um mercadinho, só pra comprar comida. No caminho, entrei na Ermida de São José, que tem um belo retábulo barroco no altar, e fiz uma oração. Mas não tinha condições de andar mais nada. Voltei pro albergue e fiz meu lanche no refeitório, que tinha uma deliciosa lareira. O albergue estava com o aquecimento ligado! Uma felicidade pra mim. Após comer, me instalei com o computador numa das mesas e estava refazendo minha programação de chegada a Santiago (pensando em trechos um pouco mais curtos, pra ver se eu mantenho a tendinite sob controle), quando chegou Moïse, um rapaz da Costa do Marfim, que é professor universitário na França. Ele mora em Toulouse. Ficamos um tempão conversando. Depois dele chegou Henrique, o paranaense, que mora há muitos anos em Rondônia. Também passei horas conversando com Henrique. Ambos estão fazendo o Caminho pela necessidade de repensarem a própria vida. No fundo, desejam fazer o processo de reset do próprio modo de vida, dos hábitos, das prioridades. Tivemos boas conversas e eu partilhei com eles minhas descobertas no meu processo de reset.
Disse aos dois aquilo que já escrevi para você: que o coração sabe todas as respostas; ele sempre sabe o que devemos fazer para vivermos em paz e sermos felizes; o problema é que a mente vem e traz os medos, os traumas, as convenções sociais, e aí o que era para ser simples fica complicado. Moïse está caminhando 45 kms por dia! Ou seja, ele está reproduzindo no Caminho o comportamento condicionado que faz com que sua rotina seja incessante, corrida, estressante, e sempre muito planejada. Estava tentando mostrar a ele que o exercício de abrir mão do controle é extremamente salutar. Ele me dizia que é muito difícil abrir mão do controle, do planejamento, das metas. Eu sei que é, mas, se a gente não tentar fazer diferente, é impossível quebrar o círculo vicioso (da própria mente). A questão é que o planejamento e a rotina nos dão uma falsa sensação de segurança, da qual é difícil desapegar. Moïse riu muito comigo e me prometeu que iria tentar. Acho que consegui lançar uma semente o espírito dele. Tomara que frutifique. Troquei contatos com ele e com Henrique. Moïse me convidou para ir a Toulouse e à Costa do Marfim.
Bom, o dia foi comprido e cansativo. Mas é assim mesmo. Tento viver um dia de cada vez. O Caminho está realmente desafiando minha paciência, ou, melhor dizendo, me obrigando a exercitá-la. Paciência e entrega. Pois, como diz Mincho, a gente só pode ter certeza do presente. O resto, é como Deus quiser. Mais um dia vencido. Agora, só peço que amanhã eu consiga chegar ao meu destino.
Beijo no coração,

Léia 

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