segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 23


04/10/15

Oi, Niquinha!
Boa noite. Estou aqui no luxo de um quarto só para mim, num Convento de Santa Clara. É que o quarto individual custava quatorze euros, contra sete no alojamento. Achei que valia a pena me dar uma noite de descanso, porque a verdade é que sempre durmo mal nos alojamentos, seja pelo barulho dos outros, ronco, ou pelo frio, ou porque estou no beliche superior. De vez em quando é bom pagar um pouco mais e recuperar o sono. O quarto é simplérrimo, porém, é só meu. Vou dormir numa cama de verdade e tenho dois cobertores! E o toque de recolher é às onze! Em todo caso, pouco importa, porque estando sozinha, posso ficar com a luz acesa o tempo que quiser. Posso colocar todos os meus aparelhos para carregar, e posso deixar todas as minhas coisas espalhadas. Um verdadeiro luxo (desvantagem: não tem internet no Convento, então, só poderei enviar essa carta amanhã).
Saí de Fromista debaixo de chuva. Aliás, choveu quase o dia todo, e ventou muito na última etapa da caminhada. Minha capa de chuva, que custou uma fortuna, não deu conta do recado. Minha mochilinha e minha roupa ficaram ligeiramente molhadas. Hoje, o Caminho foi meio sem graça. Andei a maior parte do dia ao lado de uma rodovia, o que sempre torna o trajeto barulhento e menos agradável. Só teve uma parte em que peguei um desvio que ia pelo meio do campo, junto aa um rio. Porém foi um desastre, pois a estradinha era de barro. Com a chuva, virou um lamaçal. A lama pegava nas botas e as tornava mais pesadas. Sem falar no risco de a pessoa escorregar. Mais uma vez, meus bastões foram providenciais.
Logo após Fromista, a gente passa por um pequeno povoado, Plobación de Campos, onde há uma Ermida del Socorro. Eu desviei do Caminho pra dar uma espiada na pequena construção de pedra, e tinha um senhorzinho em robe de chambre que vinha saindo da Ermida com uma chave na mão. Ele logo me fez saber que ela estava aberta. Tinha toda a cara de que ele é o responsável e tinha acabado de abri-la. Entrei, fiz algumas orações e segui meu caminho. A chuva foi ficando mais intensa, e, felizmente, achei uma área de repousa, coberta, onde me abriguei um pouco e esperei a chuva arrefecer. Foi aí que peguei o desvio que segue junto do rio, e peguei o lamaçal. O bom foi que conheci duas moças irlandesas muito simpáticas. E na entrada de um pequeno povoado chamado Villarmentero, conheci uma senhora baiana chamada Celina. Juntas, tentamos visitar a Igreja local, que estava fechada. Seguimos caminhando juntas até chegarmos em Villalcazar de Sirga.
Nessa cidadezinha há uma Igreja dos Templários, chamada Santa María La Blanca. É um belo e imponente prédio românico, com uma fachada típica, uma nave central e quatro laterais. No altar principal, um retábulo espetacular, parecido com o de Santa María del Castillo (o que foi roubado). Celina, que fez uma ampla pesquisa sobre os monumentos ao longo do Caminho de Santiago, me disse que os Templários tinham um grande conhecimento sobre pontos de energia no planeta, e que procuravam construir seus templos nesses pontos de concentração de energia. Quando estávamos finalizando a visita, percebi um movimento de locais. Imaginei que haveria missa. De fato, com cinco minutos, chegou o padre. Decidimos ficar para assistir à missa, tanto mais que era domingo. Só lamentei que o sermão tenha sido demasiado comprido. Em compensação, ficamos sabendo que na véspera houvera um casamento nessa Igreja, entre dois peregrinos que se conheceram fazendo o Caminho de Santiago, ela é francesa e ele é alemão. O padre estava todo contente com o acontecido. E isso explicava o arroz que observei nos degraus do pátio externo da Igreja.
Estávamos famintas quando a missa terminou. Já eram duas da tarde. Então, fomos comer algo no bar defronte. Quando entramos, avistamos Eduardo (o brasileiro que conheci na pousada de Fromista). Ele já tinha comido e após alguns minutos de conversa, foi visitar a Igreja. Provei uma sopa de alho que parece ser típica da Espanha, e que é, na verdade, uma sopa de pão. Nada do outro mundo. Na saída do bar, reencontramos Eduardo e seguimos caminhando juntos, nós três.
A conversa foi boa e ajudou a enfrentar a caminhada com chuva e vento muito forte. A pobre da Celina, que é pequenininha, sofreu para se manter firme. Como eu já disse, caminhamos o tempo todo junto a uma rodovia. Chegamos a Carrión ainda debaixo de chuva. Eles foram para o albergue Espírito Santo (de Irmãs) e eu, como tinha mandado minha mochila para o Convento Santa Clara, acabei ficando por lá mesmo. Tomei banho, sarjei minha segunda bolhinha do Caminho! (no calcanhar esquerdo) e me deitei um pouco, para descansar. Até porque, as Igrejas só reabririam às 17 horas. Confesso que foi difícil ter ânimo para me levantar e sair de novo, ainda mais com o frio e a chuva. Em todo caso, levantei e fui visitar a Igreja de Santa María e a de Santo Tiago Apóstol. Ambas têm belas fachadas românicas, do século XII (mais ou menos), com frisos em xadrez no mesmo estilo da Igreja de Fromista, e algumas criaturas mitológicas. Na Igreja de Santa María tem um Crucifixo em forma de Y, que é bastante raro (lembra que eu vi um em Estella?). E tem também um arco interior rendilhado, abaixo do coro, que é uma graça.
Já a Igreja de Santiago virou museu. É um ambiente curioso, pois a Igreja sofreu alguns reveses ao longo da história e está meio destruída. O museu de arte sacra fica no que um dia foi uma nave central, da qual existem restos de colunas e de arcos. É muito interessante a sensação de visitar um museu instalado nas ruínas de uma antiga Igreja. O museu em si é muito fraco. Parece mais um amontoado de objetos, das mais diversas épocas. Preciosas imagens dos séculos XIII a XVI convivem com objetos de gosto duvidoso, dos séculos XX e XXI. Dá quase um samba do crioulo doido. Ainda subi à torre do carrilhão, de onde daria para ter uma boa vista da cidade e das redondezas, se o céu não estivesse se desmanchando em água. Queria muito ter ido visitar o Mosteiro de San Zoilo, no entanto, ele fica na saída da cidade, e eu teria chegado lá um pinto molhado. Conformei-me e voltei ao Convento de Santa Clara. Comi no meu quarto mesmo e pus-me a escrever, aproveitando a privacidade e a tranquilidade de não ter hora para apagar a luz! Meu único receio, em cada albergue que chego, é das infames pulgas. Por favor, reza aí para eu não cruzar com essas criaturinhas. As picadas delas deixam bolotas horríveis.
Pois é isso, por enquanto.
Beijos cheios de amor e saudade,

Léia

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