03/10/15
Boa noite, Minha Irmã!
Durante a caminhada de
hoje, vinha pensando em como a gente pode sentir o Amor de Deus em muitas
coisas. Todas as manifestações da Beleza podem nos aproximar de Deus, podem nos
fazer sentir a mágica da Criação, perceber o milagre da Vida, podem nos comover
como expressões da sensibilidade e genialidade humanas (que, pra quem Acredita,
são dons do nosso Criador). Pessoalmente, fico comovida com diferentes formas
de expressão artística – um livro, um poema, um quadro, um retábulo, a portada
de uma Catedral, um balé, uma música --, do mesmo modo que com um pôr-de-sol na
praia (como os que vimos no Rio Grande do Norte), um amanhecer da varanda de
casa, um céu estrelado, uma rosa especialmente perfumada.... enfim, quando a gente
abre os olhos, os ouvidos, a alma para as muitas pequenas e grandes maravilhas
que estão ao nosso redor, é difícil não se encantar com elas. Porém, o que
vinha pensando é que nada me comove mais que o Amor de Deus que chega a mim por
meio de outras pessoas. Nada é mais belo e mais comovente do que a Entrega do
Outro, motivada por um Amor incondicional, generoso, despretensioso. O Amor que
se dá sem nada pedir ou esperar em troca. É quando recebo esse Amor, que me
sinto mais profundamente amada por Deus. Foi assim que me senti ontem à noite e
hoje de manhã, no Hospital San Nicolás.
Foi tudo absolutamente
lindo. A noite de ontem começou na capela, adornada apenas por um pequeno
crucifixo e um tríptico com ícones de Jesus, Maria (no meio) e San Nicolás. Nós,
peregrinos, estávamos sentamos em cadeiras que formavam um semicírculo. Andrea
(um italiano gordinho e barbudo, que lembra Pavarotti) e Ana (sua mãe) usavam
uma veste especial, marrom, com as famosas conchas (vieiras) penduradas e a
cruz de Santiago bordada em vermelho. Andrea nos deu as boas-vindas, dizendo
que eles estavam ali para nos acolher e nos servir, como se estivessem
acolhendo e servindo a Jesus. Daí, começou a cerimônia de lava-pés. Andrea perguntava
o nome de cada peregrino e lia uma oração, pedindo a Deus que abençoasse sua
caminhada até Santiago. Ana, de joelhos, com uma bacia e uma jarra d’água
lavava e enxugava um dos pés da pessoa e depois o beijava. Depois, todos se
levantaram e rezamos um Pai-Nosso, cada um na sua língua. Tudo isso à luz de
velas. Fiquei muito emocionada.
Em seguida, passamos à
comprida mesa que há na nave principal (Andrea me contou que esse Ermida foi
uma pequena Igreja, construída no século XII). Eles nos serviram um delicioso
espaguete com anchova, alcaparras e alecrim, depois uns canapés com recheios
diversos, uma salada maravilhosa com azeitonas, pimentões vermelhos e amêndoas,
e, de sobremesa, uvas, e uns bolinhos e biscoitos incríveis, feitos pelas Irmãs
Clarissas de um convento perto de Castrojeriz. Também tinha um vinho caseiro
suave e saboroso, que a princípio, por diversão, bebemos nuns vasos chamados
morrones, que têm um bico comprido, por meio do qual a pessoa despeja o vinho
na boca e deve segurá-lo cada vez mais alto, sem derramar na roupa.
Durante o jantar, conversei
muito com minha xará, Valéria. E um pouco com Andrea e Ana. Fui perguntando as
coisas e fiquei sabendo que essa Confraria foi fundada por um irmão de Ana, que
é um dos maiores estudiosos do Caminho de Santiago, em todo o mundo (se eles
não estiverem exagerando...). Há quase vinte e cinco anos, esse tio começou a
reforma do edifício dessa antiga Igreja, que estava abandonada. Entre março e
setembro, equipes de cerca de quatro pessoas, todas vindas da Itália, se
revezam a cada duas semanas, nesse trabalho voluntário de acolhida dos
peregrinos. Eles não cobram nada. Tem uma caixinha para doações, caso os
peregrinos desejem contribuir. E vê só que bênção: a noite passada foi a última
desse ano!!! A partir de hoje o Hospital
está fechado. Ah! Andrea me disse que os hospitais de peregrinos, na Idade
Média, eram locais de acolhida, independentemente do peregrino estar enfermo ou
não. Eram locais onde os peregrinos podiam dormir abrigados e onde, muitas
vezes, eram alimentados com comida fresca e quentinha. Um luxo naquele tempo.
Se estivessem doentes (o que acontecia com frequência) encontravam algum
tratamento.
Já havíamos terminado
de jantar e estávamos conversando animadamente, quando perguntei a eles sobre a
época de construção do prédio. A conversa terminou com Ana mostrando a todos um
túmulo da época dos visigodos. Arrastamos um pesado banco de madeira, onde
estavam nossas mochilas, Ana levantou uma tábua, e lá estava o túmulo, em pedra
maciça, com a forma de um homem escavada, e alguns restos de ossos. Ana nos
tranquilizou dizendo que eles tinham chamado um Padre para benzer o lugar e
encomendar as almas.
Quando saí para
escovar meus dentes na casinha de trás, olhei para o céu estrelado e vi uma
estrela cadente. Me vesti com quase toda a minha roupa, porque imaginei que a
noite seria fria, e a mantinha que eles têm lá é fininha. Os italianos apagaram
as velas, deixando uma única acesa e partiram, não sem antes cantarmos
novamente Águas de Março, à porta de Ermida
(é assim que a população da localidade chama o Hospital). Acho que todos nós fomos nos deitar com o coração cheio
de alegria e gratidão.
Eram seis e meia
quando acordei. O resto do povo ainda dormia. Peguei minha lanterninha e fui
lavar meu rosto e escovar os dentes. Quando saí da Ermida ainda estava escuro e
pude ver um céu estrelado belíssimo, mais estrelado do que à noite, quando
nuvens encobriam boa parte das estrelas. Tomamos café da manhã à luz de velas.
Abri uma exceção e tomei um legítimo café italiano, divino. Após comermos, saímos
da Ermida (o dia já estava claro) e fizemos uma oração do lado de fora. Andrea
leu uma oração de bênção aos peregrinos e rezamos um Pai-Nosso juntos. Em nome
do grupo, eu agradeci aquela acolhida maravilhosa. Depois, todos nos abraçamos,
desejando Buen Camino. Creio que
estávamos todos emocionados.
Antes de irmos embora,
resolvi dar minha medalhinha de São Miguel para Lis. Na tarde de ontem, ela
estava escrevendo em seu “diário” do Caminho e comentou comigo que as pessoas
estavam botando medo nela por ela estar caminhado sozinha, e que aquilo a
estava deixando chateada. Então, eu falei para ela que todos os dias, de manhã,
eu peço ao Arcanjo São Miguel para me proteger ao longo do Caminho. Sugeri que
ela fizesse o mesmo. Ela ficou muito contente com a ideia. Na mesma hora eu
senti que devia dar minha medalhinha pra ela. Fiz isso hoje pela manhã. E para
você ver, Minha Irmã, como a mão que dá é a mesma que recebe. Alguns minutos
depois, Gina, a mexicana, veio até mim e me deu uma medalhinha de Nossa Senhora
de Guadalupe. No meu agradecimento, eu disse que sou uma pessoa de muita Fé.
Daí, ela sentiu que devia me dar a medalhinha. Acho que é a terceira ou quarta
imagem de Nossa Senhora de Guadalupe que eu ganho na minha vida. Tenho muito
carinho por ela. Fiquei feliz e agradecida.
Como de costume, fui a
última peregrina a deixar o Hospital.
Nossos hospedeiros também estavam de partida. Arrumando as coisas no carro para
voltar à Itália. Troquei e-mails com Valéria, que insistiu para eu ir
visita-los. Já eram umas nove horas quando iniciei minha caminhada até Itero de
La Vega, onde precisava deixar minha mochila em algum albergue, para que fosse
transportada a Fromista. A manhã estava friíssima, e o calor do sol que
começava a subir, produziu uma neblina intensa. A paisagem estava simplesmente
deslumbrante. Ao cruzar a ponte, parei para admirar a névoa passeando sobre as
águas do rio, e para contemplar a silhueta do Hospital San Nicolás, com o sol por detrás. Belíssimo.
Caminhei até Itero de
La Veja rezando pro pessoal do transporte de mochilas ainda não ter passado.
Graças a Deus, deu tudo certo! Deixei a mochila num albergue à entrada do
povoado, e segui caminhando pela rua principal. Itero é um povoado de nada. Bem
dizer, só tem a rua principal e algumas paralelas. Agora, a Igreja é enorme.
Parece ser um edifício românico, que foi sofrendo intervenções ao longo do
tempo. É um prédio meio remendado. Lá no alto da torre, um enorme ninho de
cegonha. Aliás, vale dizer que quase toda torre de Igreja que eu vejo, desde Nájera,
tem pelo menos um ninho de cegonha. Eles são gigantescos. Daria facilmente uns
dez bebês (humanos) dentro. Vai ver que é daí que vem a lenda...
Caminhei ainda umas
duas horas em meio à neblina. Devia ser umas onze quando o céu finalmente
começou a limpar. E fez um dia lindo. Céu azulíssimo, com uns poucos fiapos de
nuvens, fazendo desenhos no céu. Já te disse que o contraste entre os campos
ocre e o azul intenso do céu é muito bonito. Pois caminhei numa planície toda
ocre até chegar a Boadilla del Camino. Encontrei dois casais irlandeses muito
simpáticos e conversei um pouco com eles. Adoro o sotaque irlandês. É tão
fofinho.
Boadilla é outro
povoado minúsculo, com uma enorme Igreja e seu ninho de cegonha no alto da
torre. A Igreja estava fechada. Na praça em frente, há um belo rollo gótico (sec. XIV), uma coluna
esculpida, muito bonita, que marca a independência da povoação. Do outro lado
da rua, um albergue charmosíssimo, com um jardim belamente decorado, com pedras
antigas, fontes e esculturas. Tomei um chá no restaurante do albergue. Usei o
banheiro e após descansar um pouco, retomei a caminhada. Minha bolhinha me
incomodou um pouco ao longo do dia. Parece que está querendo inflamar.
Bem na saída de
Boadilla, cruzei com um velho pastor e seu rebanho de ovelhas, acompanhados por
um cão igualmente idoso, e meio raquítico. Me deu uma peninha do cão. Ele
caminhava devagarzinho atrás das ovelhas. Observando a cena, um casal de
alemães que está fazendo o Caminho com a filhinha de dois anos de idade. Eles empurram
um carrinho de três rodas (potente), com a criança. Eu os tinha conhecido
ontem, na estrada. Fiquei impressionada com a coragem. A verdade é que a gente
encontra de tudo nesse Caminho!
O resto do percurso de
hoje foi bem agradável. Logo após Boadilla, começa o Canal de Castilla, uma obra de engenharia do século XIX, que criou
uma rede de canais para facilitar a circulação de mercadorias entre algumas
regiões da Espanha. Além de ser sempre agradável caminhar ao lado de qualquer
curso d’água, o canal é todo ladeado por altas árvores. Na entrada de Fromista,
há quatro eclusas do Canal, meio arredondadas, e uma bela ponte à frente.
Fromista não é uma
cidade muito charmosa. Porém, tem uma Igreja preciosa. A Igreja de San Martín é
uma edificação do século XI, em estilo românico puro. Tem um porte
relativamente grande, com diferentes níveis, e a torre que corresponde ao
centro da Igreja em forma octogonal (o que não seria muito comum na época da
sua construção). É um edifício muitíssimo sóbrio. Talvez por isso mesmo, os
detalhes esculpidos na pedra chamam a atenção. Tanto no exterior como no
interior, há uma espécie de friso de xadrez, esculpido em pedra. E os capitéis
todos têm alguma decoração, de plantas, cenas bíblicas e, os mais
interessantes, animais e figuras mitológicas (do imaginário pagão). No altar,
apenas três imagens, sendo uma delas um bonito crucifixo do século XIII, com um
Cristo sereno, e sem a morbidez de feridas muito elaboradas e sangrentas. Amei
essa Igreja.
Ainda visitei a Igreja
de San Pedro, em cuja fachada se podem perceber traços de reformas de distintas
épocas. Ela provoca uma curiosa sensação de bricolage.
Na nave principal e nos altares laterais, nada de muito especial. Mas em parte
de uma das naves laterais está um museu sacro, que guarda um maravilho retábulo
(flamenco-espanhol), que pertenceu à Igreja de Santa María del Castillo. Esse
retábulo foi roubado da Igreja e recuperado quase integralmente pela polícia
espanhola. Para prevenir novos insucessos, o retábulo não foi remontado em
Santa María del Castillo. Os painéis podem ser vistos nesse museu de San Pedro.
São realmente belos e têm alguns detalhes bem curiosos, como um anjo que segura
uma toalha para enxugar Jesus após seu batismo, e Jesus segurando a mão de Eva,
em sua visita ao Limbo, para resgatar os que esperavam pela sua Ressurreição. O
melhor do museu foi Dona Carmen. Uma senhorinha espanhola entusiasmadíssima com
o museu. Ela fez questão de sair comentando peça por peça, para mim e uma outra
dupla de visitantes. E falava de tudo com tanto amor e admiração, que não tem
como a pessoa não se sentir encantada com tudo aquilo. Agradeci efusivamente e
dei um forte abraço em Dona Carmen.
O albergue onde estou
(Estrella del Camino) é bem organizado, porém, falta aos donos a simpatia e o
calor humano que normalmente se encontra nos hospitaleiros. Além disso, o
quarto parece ser bem frio. E eles não têm cobertas. Já estou me preparando
para uma noite gelada. E amanhã, conforme previsões, deve chover. Reencontrei
os irlandeses, que também estão hospedados aqui, e duas americanas do Hospital
San Nicolás. E conheci mais um brasileiro, Eduardo, do Rio de Janeiro.
Por hoje é isso,
Niquinha. O horário desse albergue, ainda por cima, é estrito. Toque de
recolher às nove e meia.
Inté amanhã!
Beijos mil,
Léia
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