segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 22


03/10/15

Boa noite, Minha Irmã!
Durante a caminhada de hoje, vinha pensando em como a gente pode sentir o Amor de Deus em muitas coisas. Todas as manifestações da Beleza podem nos aproximar de Deus, podem nos fazer sentir a mágica da Criação, perceber o milagre da Vida, podem nos comover como expressões da sensibilidade e genialidade humanas (que, pra quem Acredita, são dons do nosso Criador). Pessoalmente, fico comovida com diferentes formas de expressão artística – um livro, um poema, um quadro, um retábulo, a portada de uma Catedral, um balé, uma música --, do mesmo modo que com um pôr-de-sol na praia (como os que vimos no Rio Grande do Norte), um amanhecer da varanda de casa, um céu estrelado, uma rosa especialmente perfumada.... enfim, quando a gente abre os olhos, os ouvidos, a alma para as muitas pequenas e grandes maravilhas que estão ao nosso redor, é difícil não se encantar com elas. Porém, o que vinha pensando é que nada me comove mais que o Amor de Deus que chega a mim por meio de outras pessoas. Nada é mais belo e mais comovente do que a Entrega do Outro, motivada por um Amor incondicional, generoso, despretensioso. O Amor que se dá sem nada pedir ou esperar em troca. É quando recebo esse Amor, que me sinto mais profundamente amada por Deus. Foi assim que me senti ontem à noite e hoje de manhã, no Hospital San Nicolás.  
Foi tudo absolutamente lindo. A noite de ontem começou na capela, adornada apenas por um pequeno crucifixo e um tríptico com ícones de Jesus, Maria (no meio) e San Nicolás. Nós, peregrinos, estávamos sentamos em cadeiras que formavam um semicírculo. Andrea (um italiano gordinho e barbudo, que lembra Pavarotti) e Ana (sua mãe) usavam uma veste especial, marrom, com as famosas conchas (vieiras) penduradas e a cruz de Santiago bordada em vermelho. Andrea nos deu as boas-vindas, dizendo que eles estavam ali para nos acolher e nos servir, como se estivessem acolhendo e servindo a Jesus. Daí, começou a cerimônia de lava-pés. Andrea perguntava o nome de cada peregrino e lia uma oração, pedindo a Deus que abençoasse sua caminhada até Santiago. Ana, de joelhos, com uma bacia e uma jarra d’água lavava e enxugava um dos pés da pessoa e depois o beijava. Depois, todos se levantaram e rezamos um Pai-Nosso, cada um na sua língua. Tudo isso à luz de velas. Fiquei muito emocionada.
Em seguida, passamos à comprida mesa que há na nave principal (Andrea me contou que esse Ermida foi uma pequena Igreja, construída no século XII). Eles nos serviram um delicioso espaguete com anchova, alcaparras e alecrim, depois uns canapés com recheios diversos, uma salada maravilhosa com azeitonas, pimentões vermelhos e amêndoas, e, de sobremesa, uvas, e uns bolinhos e biscoitos incríveis, feitos pelas Irmãs Clarissas de um convento perto de Castrojeriz. Também tinha um vinho caseiro suave e saboroso, que a princípio, por diversão, bebemos nuns vasos chamados morrones, que têm um bico comprido, por meio do qual a pessoa despeja o vinho na boca e deve segurá-lo cada vez mais alto, sem derramar na roupa.
Durante o jantar, conversei muito com minha xará, Valéria. E um pouco com Andrea e Ana. Fui perguntando as coisas e fiquei sabendo que essa Confraria foi fundada por um irmão de Ana, que é um dos maiores estudiosos do Caminho de Santiago, em todo o mundo (se eles não estiverem exagerando...). Há quase vinte e cinco anos, esse tio começou a reforma do edifício dessa antiga Igreja, que estava abandonada. Entre março e setembro, equipes de cerca de quatro pessoas, todas vindas da Itália, se revezam a cada duas semanas, nesse trabalho voluntário de acolhida dos peregrinos. Eles não cobram nada. Tem uma caixinha para doações, caso os peregrinos desejem contribuir. E vê só que bênção: a noite passada foi a última desse ano!!! A partir de hoje o Hospital está fechado. Ah! Andrea me disse que os hospitais de peregrinos, na Idade Média, eram locais de acolhida, independentemente do peregrino estar enfermo ou não. Eram locais onde os peregrinos podiam dormir abrigados e onde, muitas vezes, eram alimentados com comida fresca e quentinha. Um luxo naquele tempo. Se estivessem doentes (o que acontecia com frequência) encontravam algum tratamento.
Já havíamos terminado de jantar e estávamos conversando animadamente, quando perguntei a eles sobre a época de construção do prédio. A conversa terminou com Ana mostrando a todos um túmulo da época dos visigodos. Arrastamos um pesado banco de madeira, onde estavam nossas mochilas, Ana levantou uma tábua, e lá estava o túmulo, em pedra maciça, com a forma de um homem escavada, e alguns restos de ossos. Ana nos tranquilizou dizendo que eles tinham chamado um Padre para benzer o lugar e encomendar as almas.
Quando saí para escovar meus dentes na casinha de trás, olhei para o céu estrelado e vi uma estrela cadente. Me vesti com quase toda a minha roupa, porque imaginei que a noite seria fria, e a mantinha que eles têm lá é fininha. Os italianos apagaram as velas, deixando uma única acesa e partiram, não sem antes cantarmos novamente Águas de Março, à porta de Ermida (é assim que a população da localidade chama o Hospital). Acho que todos nós fomos nos deitar com o coração cheio de alegria e gratidão.
Eram seis e meia quando acordei. O resto do povo ainda dormia. Peguei minha lanterninha e fui lavar meu rosto e escovar os dentes. Quando saí da Ermida ainda estava escuro e pude ver um céu estrelado belíssimo, mais estrelado do que à noite, quando nuvens encobriam boa parte das estrelas. Tomamos café da manhã à luz de velas. Abri uma exceção e tomei um legítimo café italiano, divino. Após comermos, saímos da Ermida (o dia já estava claro) e fizemos uma oração do lado de fora. Andrea leu uma oração de bênção aos peregrinos e rezamos um Pai-Nosso juntos. Em nome do grupo, eu agradeci aquela acolhida maravilhosa. Depois, todos nos abraçamos, desejando Buen Camino. Creio que estávamos todos emocionados.
Antes de irmos embora, resolvi dar minha medalhinha de São Miguel para Lis. Na tarde de ontem, ela estava escrevendo em seu “diário” do Caminho e comentou comigo que as pessoas estavam botando medo nela por ela estar caminhado sozinha, e que aquilo a estava deixando chateada. Então, eu falei para ela que todos os dias, de manhã, eu peço ao Arcanjo São Miguel para me proteger ao longo do Caminho. Sugeri que ela fizesse o mesmo. Ela ficou muito contente com a ideia. Na mesma hora eu senti que devia dar minha medalhinha pra ela. Fiz isso hoje pela manhã. E para você ver, Minha Irmã, como a mão que dá é a mesma que recebe. Alguns minutos depois, Gina, a mexicana, veio até mim e me deu uma medalhinha de Nossa Senhora de Guadalupe. No meu agradecimento, eu disse que sou uma pessoa de muita Fé. Daí, ela sentiu que devia me dar a medalhinha. Acho que é a terceira ou quarta imagem de Nossa Senhora de Guadalupe que eu ganho na minha vida. Tenho muito carinho por ela. Fiquei feliz e agradecida.
Como de costume, fui a última peregrina a deixar o Hospital. Nossos hospedeiros também estavam de partida. Arrumando as coisas no carro para voltar à Itália. Troquei e-mails com Valéria, que insistiu para eu ir visita-los. Já eram umas nove horas quando iniciei minha caminhada até Itero de La Vega, onde precisava deixar minha mochila em algum albergue, para que fosse transportada a Fromista. A manhã estava friíssima, e o calor do sol que começava a subir, produziu uma neblina intensa. A paisagem estava simplesmente deslumbrante. Ao cruzar a ponte, parei para admirar a névoa passeando sobre as águas do rio, e para contemplar a silhueta do Hospital San Nicolás, com o sol por detrás. Belíssimo.
Caminhei até Itero de La Veja rezando pro pessoal do transporte de mochilas ainda não ter passado. Graças a Deus, deu tudo certo! Deixei a mochila num albergue à entrada do povoado, e segui caminhando pela rua principal. Itero é um povoado de nada. Bem dizer, só tem a rua principal e algumas paralelas. Agora, a Igreja é enorme. Parece ser um edifício românico, que foi sofrendo intervenções ao longo do tempo. É um prédio meio remendado. Lá no alto da torre, um enorme ninho de cegonha. Aliás, vale dizer que quase toda torre de Igreja que eu vejo, desde Nájera, tem pelo menos um ninho de cegonha. Eles são gigantescos. Daria facilmente uns dez bebês (humanos) dentro. Vai ver que é daí que vem a lenda...
Caminhei ainda umas duas horas em meio à neblina. Devia ser umas onze quando o céu finalmente começou a limpar. E fez um dia lindo. Céu azulíssimo, com uns poucos fiapos de nuvens, fazendo desenhos no céu. Já te disse que o contraste entre os campos ocre e o azul intenso do céu é muito bonito. Pois caminhei numa planície toda ocre até chegar a Boadilla del Camino. Encontrei dois casais irlandeses muito simpáticos e conversei um pouco com eles. Adoro o sotaque irlandês. É tão fofinho.
Boadilla é outro povoado minúsculo, com uma enorme Igreja e seu ninho de cegonha no alto da torre. A Igreja estava fechada. Na praça em frente, há um belo rollo gótico (sec. XIV), uma coluna esculpida, muito bonita, que marca a independência da povoação. Do outro lado da rua, um albergue charmosíssimo, com um jardim belamente decorado, com pedras antigas, fontes e esculturas. Tomei um chá no restaurante do albergue. Usei o banheiro e após descansar um pouco, retomei a caminhada. Minha bolhinha me incomodou um pouco ao longo do dia. Parece que está querendo inflamar.
Bem na saída de Boadilla, cruzei com um velho pastor e seu rebanho de ovelhas, acompanhados por um cão igualmente idoso, e meio raquítico. Me deu uma peninha do cão. Ele caminhava devagarzinho atrás das ovelhas. Observando a cena, um casal de alemães que está fazendo o Caminho com a filhinha de dois anos de idade. Eles empurram um carrinho de três rodas (potente), com a criança. Eu os tinha conhecido ontem, na estrada. Fiquei impressionada com a coragem. A verdade é que a gente encontra de tudo nesse Caminho!
O resto do percurso de hoje foi bem agradável. Logo após Boadilla, começa o Canal de Castilla, uma obra de engenharia do século XIX, que criou uma rede de canais para facilitar a circulação de mercadorias entre algumas regiões da Espanha. Além de ser sempre agradável caminhar ao lado de qualquer curso d’água, o canal é todo ladeado por altas árvores. Na entrada de Fromista, há quatro eclusas do Canal, meio arredondadas, e uma bela ponte à frente.
Fromista não é uma cidade muito charmosa. Porém, tem uma Igreja preciosa. A Igreja de San Martín é uma edificação do século XI, em estilo românico puro. Tem um porte relativamente grande, com diferentes níveis, e a torre que corresponde ao centro da Igreja em forma octogonal (o que não seria muito comum na época da sua construção). É um edifício muitíssimo sóbrio. Talvez por isso mesmo, os detalhes esculpidos na pedra chamam a atenção. Tanto no exterior como no interior, há uma espécie de friso de xadrez, esculpido em pedra. E os capitéis todos têm alguma decoração, de plantas, cenas bíblicas e, os mais interessantes, animais e figuras mitológicas (do imaginário pagão). No altar, apenas três imagens, sendo uma delas um bonito crucifixo do século XIII, com um Cristo sereno, e sem a morbidez de feridas muito elaboradas e sangrentas. Amei essa Igreja.
Ainda visitei a Igreja de San Pedro, em cuja fachada se podem perceber traços de reformas de distintas épocas. Ela provoca uma curiosa sensação de bricolage. Na nave principal e nos altares laterais, nada de muito especial. Mas em parte de uma das naves laterais está um museu sacro, que guarda um maravilho retábulo (flamenco-espanhol), que pertenceu à Igreja de Santa María del Castillo. Esse retábulo foi roubado da Igreja e recuperado quase integralmente pela polícia espanhola. Para prevenir novos insucessos, o retábulo não foi remontado em Santa María del Castillo. Os painéis podem ser vistos nesse museu de San Pedro. São realmente belos e têm alguns detalhes bem curiosos, como um anjo que segura uma toalha para enxugar Jesus após seu batismo, e Jesus segurando a mão de Eva, em sua visita ao Limbo, para resgatar os que esperavam pela sua Ressurreição. O melhor do museu foi Dona Carmen. Uma senhorinha espanhola entusiasmadíssima com o museu. Ela fez questão de sair comentando peça por peça, para mim e uma outra dupla de visitantes. E falava de tudo com tanto amor e admiração, que não tem como a pessoa não se sentir encantada com tudo aquilo. Agradeci efusivamente e dei um forte abraço em Dona Carmen.
O albergue onde estou (Estrella del Camino) é bem organizado, porém, falta aos donos a simpatia e o calor humano que normalmente se encontra nos hospitaleiros. Além disso, o quarto parece ser bem frio. E eles não têm cobertas. Já estou me preparando para uma noite gelada. E amanhã, conforme previsões, deve chover. Reencontrei os irlandeses, que também estão hospedados aqui, e duas americanas do Hospital San Nicolás. E conheci mais um brasileiro, Eduardo, do Rio de Janeiro.
Por hoje é isso, Niquinha. O horário desse albergue, ainda por cima, é estrito. Toque de recolher às nove e meia.
Inté amanhã!
Beijos mil,

Léia 

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