01/10/15
Hoje foi um dia
especialíssimo. Acordei cedinho, como de costume nos albergues, tomei meu café,
me organizei e, antes de sair, fiquei batendo um bom papo com o casal dono do
albergue. Muito gente boa. Até me convidaram para visitá-los em Burgos, onde
eles moram entre novembro e março. O sol já ia alto no céu quando passei em
frente à pracinha da Igreja da pequena Hornillos. Reza a lenda que Hornillos
foi palco de um milagre, quando da invasão da cidade por Napoleão. Os soldados
franceses se aproveitaram do fato de que os aldeãos estavam todos na missa, e
roubaram todos os galos e galinhas dos quintais da cidade. Para que o povo não
descobrisse que eram eles os autores dos crimes, mataram todas as aves e as
colocaram dentro de seus tambores de guerra. Quando as pessoas saíram da missa
e se deram conta do desaparecimento das aves, correram para a praça e logo
pediram satisfação aos invasores, que juraram inocência. Até que algum aldeão
invou a ajuda dos Céus (não me lembro se de algum santo específico), e um dos
galos teria voltado à vida e começado a cacarejar, de dentro de um dos
tambores. Por isso, na praça da Igreja há uma escultura com um galo no alto.
Caminhei a maior parte
do dia no plano, passando entre campos desnudos ou cobertos por um ralo capim
seco (pode ser que seja trigo, já ceifado ou brotando....). Fez um sol dia
esplendoroso, com céu azul e limpo. Porém, um ventinho fresco (e não frio
demais) tornou a caminhada muito agradável. Agora, no verão deve ser
impraticável caminhar tão grandes distâncias sem uma sombrinha no meio do caminho.
Pouco antes da
primeira parada do percurso de hoje, um senhor francês se aproximou de mim e
começamos a conversar. Paramos em Hontanas, tomamos um suco de laranja
fresquinho (delicioso!) e seguimos caminhando e conversando até chegarmos a
Castrojeriz. Patrick tem uns sessenta anos, é casado e tem dois filhos. O mais
novo é o filho exemplar, em tudo parecido com o pai. O mais velho parece ser o
oposto de Patrick, que vive angustiado com as escolhas do primogênito. Falei
para ele da imagem das macieiras que não podem dar peras, e de como é bem mais
fácil amar o que nos é semelhante. Desafiador mesmo é respeitar e amar,
incondicionalmente, a diferença. Patrick gostou da imagem. Espero que possa
ajudá-lo a repensar sua relação com o filho. Sempre que compartilho essa imagem
com outras pessoas, aproveito para lembrar a mim mesma que preciso aceitar e
amar as pessoas exatamente como elas são. Nada garante que as minhas escolhas
sejam as corretas. Sobretudo, nada garante que as minhas escolhas sejam aquelas
que vão fazer os outros felizes. O amor incondicional deveria ser um exercício
mais fácil, rs, rs, rs.
Também conversamos
muito sobre Deus. Patrick é agnóstico. Ao mesmo tempo, parece ser um homem
sensível e generoso. Ele está fazendo o Caminho porque deseja se tornar uma
pessoa melhor, e porque sua mãe, que era muito religiosa, e desejava fazer o
Caminho, morreu no ano passado. Eu tive a impressão de que Patrick está bem
mais perto de Deus do que ele imagina. Disse isso a ele e ele concordou comigo.
Foi uma bela troca a
de ontem. Ele compartilhou comigo uma experiência que achei lindíssima. Ele me
disse que sua mãe foi diagnosticada com Leucemia. O médico lhe deu três meses
de sobrevida. Ela viveu quatro. E, me disse Patrick, foram os quatro meses mais
felizes que ele, seus irmãos e sua mãe tiveram juntos. Após me contar isso, ele
acrescentou: Eu tenho vergonha de dizer isso às pessoas, parece
insensibilidade. Eu respondi: De jeito nenhum! Esse testemunho é lindo e você
devia dá-lo a todo mundo! Você, seus irmãos e sua mãe (nunca contaram a ela do
diagnóstico, mas ela, obviamente, estava ciente de que iria partir),
compreenderam o essencial: que a vida são os momentos que a gente compartilha e
as memórias doces e alegres que a gente pode levar pra sempre. Eu realmente
acredito nisso e fiquei emocionada quando ele me contou sua história. A vida
deve ser sempre celebrada. Ao invés de ficarmos lamentando a perda ou a partida
dos que amamos, devemos desfrutar cada momento juntos e nos sentirmos gratos
pela bênção de ter essas pessoas nas nossas vidas. Fácil falar e difícil dizer?
Por isso mesmo achei lindo o testemunho dele. Foi algo que ele e sua família
conseguira, vivenciar naturalmente. E olhe que Patrick já tinha me falado muito
da mãe, que foi maravilhosa e criou cinco filhos praticamente sozinha, porque
ficou viúva cedo.
Nessa conversa boa,
chegamos às ruínas do Convento de San Antón. A estrada passa por baixo de um
enorme arco de Igreja, cujas paredes já não existem mais. Daí em diante,
caminhamos por uma estrada ladeada de árvores, e, de repente, chegamos à
charmosa Castrojeriz. É uma cidade de uns 600 habitantes, que se estende ao
comprido, ao pé de um morro (no alto do qual há as ruínas de um antigo
castelo). Adorei Castrojeriz. Logo ao princípio, tem uma grande Igreja, que foi
transformada num museu sacro. E mais à frente, seguindo pela rua que contorna o
morro, o centro da cidade. Paramos numa casinha pouco após a Igreja, para pedir
informações sobre o hotel de Patrick. A casa era de uma simplicidade extrema.
Pouquíssimos móveis na sala. Um senhor trabalhava em meio a seus papéis, numa
velha mesa de madeira. Nos deu a informação pedida, com uma boa vontade cheia
de calor e de alegria, e nos disse: Não tenho muita coisa, mas posso oferecer
um copo de vinho. Não é uma gracinha?! Coisa de gente de Interior, que sempre
está disposta a compartilhar do pouco que tem. Patrick ficou impressionado.
Já eram umas duas da
tarde e fomos procurar um lugar para almoçar. Encontramos uma gracinha de
restaurante, com mesinhas postas em meio a um jardim florido. Tomei um gazpacho
divino. E comi um franguinho no alho com gostinho de comida caseira. Após o
almoço, me despedi do meu companheiro de caminhada. Patrick foi pro hotel dele
e eu me dirigi ao meu albergue, o Ultreia.
O Ultreia é um
albergue muito especial. Tem um amplo quintal, em dois patamares. No mais alto
há uma piscininha para os pés. Após o banho, fiquei uma meia hora com os pés na
água gelada. É muito relaxante. Ah! Fiz minha primeira bolha! Num dedo do pé
esquerdo. Depois da piscina de água fria, furei a bolha com uma agulha
esterilizada e passei um fio. É uma recomendação para os peregrinos. A gente
deixa o fio pra “sarjar”, feito se fosse um dreno. Coloquei quadriderme para
não inflamar e fui ao mercadinho local comprar umas frutas pra noite.
Na volta do mercado,
entrei numa casa que tinha uma placa dizendo: Hospital de Almas. Qual é a
probabilidade de a gente achar uma exposição de fotografias, e uma casa que é
toda ela uma galeria de arte, num povoado de seiscentos habitantes, bem no meio
da Espanha? Pois essa casa é isso. E ainda mais. É um lugar todo ele pensando
para o convite ao silêncio e à meditação. Uma coisa especialíssima e
emocionante. Tocava uma música bem suave quando eu entrei. Por toda a casa há
ramos de alecrim e de lavanda pendurados nas paredes, que deixam um leve
perfume no ar. Junto às fotos, mensagens, cada uma mais tocante que a outra.
Fiquei muito emocionada. Tanto mais porque é, literalmente, a cada onde mora o
sujeito que montou tudo isso. E não se paga nada. Imagina quanto amor pelo
semelhante para você simplesmente abrir
toda a sua casa para que as pessoas possam disfrutar de calma, de silêncio, de
boa energia, de paz?!!! Creio que foi esse gesto de desprendimento e
generosidade o que mais me comoveu. A casa inteira pode ser percorrida. À
entrada, um cartaz pede que não se tire fotos. E é quase impossível descrever a
quantidade de detalhes preciosos que há nessa casa, incluindo o quintal, que
termina ao pé do morro, e tem umas caverninhas também elas decoradas com amor.
Sentei numa das salas, meditei um pouco, agradeci muito, e me emocionei ainda
mais, com tanto Amor que Deus nos dá por meio dos outros, daqueles que se
deixam ser instrumento...
Fui a última a sair do
Hospital de Almas. O seu dono já estava à mesa jantando. Quando foi abrir a
porta pra mim, agradeci muito. Ele me olhou nos olhos e me deu um abraço bem
apertado. Ainda emocionada, saí andando de volta ao albergue. Muitos peregrinos
já estavam sentados à mesa de jantar. Eu fui comer meu iogurte porque havia
amoçado bem e tarde. Estou tentando comer pouco à noite e me alimentar bem
durante o dia. O único lado ruim é que as refeições coletivas são sempre os
jantares.
Depois do jantar, Don
José, o dono do albergue nos deu uma explicação sobre a enorme prensa de uva
que ele tem no refeitório. E na sequência, nos levou ao subsolo, onde há uma cave, ou bodega, como se diz em espanhol. Essa bodega produzia vinha no século XVII, juntamente com a prensa que
está na sala de jantar. Mas a galeria onde a bodega está instalada faz parte de
uma estrutura de 2 kms de galerias, construídas sob a cidade, entre os séculos
IX a XIII, e que era parte do sistema de defesa do castelo! Não é o máximo?!
Seu José descobriu tudo isso quando fez a reforma da casa para transformá-la em
albergue. E algumas das pedras utilizadas na estrutura da bodega (que tem arcos
góticos, em forma de ogiva) ainda são do século I, da época da ocupação romana!
Fiquei encantada! Já pensou a sorte que eu tive de ir parar nesse albergue?!
Agradeci demais por esse mimo, como diz Tia Regina! O tour terminou com uma degustação de vinho.
Como você vê,
Niquinha, hoje foi um dia pra ficar na memória e no coração.
E agora é hora de me
recolher.
Saudades mil! Beijos,
Léia
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