sábado, 3 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 20


01/10/15

Hoje foi um dia especialíssimo. Acordei cedinho, como de costume nos albergues, tomei meu café, me organizei e, antes de sair, fiquei batendo um bom papo com o casal dono do albergue. Muito gente boa. Até me convidaram para visitá-los em Burgos, onde eles moram entre novembro e março. O sol já ia alto no céu quando passei em frente à pracinha da Igreja da pequena Hornillos. Reza a lenda que Hornillos foi palco de um milagre, quando da invasão da cidade por Napoleão. Os soldados franceses se aproveitaram do fato de que os aldeãos estavam todos na missa, e roubaram todos os galos e galinhas dos quintais da cidade. Para que o povo não descobrisse que eram eles os autores dos crimes, mataram todas as aves e as colocaram dentro de seus tambores de guerra. Quando as pessoas saíram da missa e se deram conta do desaparecimento das aves, correram para a praça e logo pediram satisfação aos invasores, que juraram inocência. Até que algum aldeão invou a ajuda dos Céus (não me lembro se de algum santo específico), e um dos galos teria voltado à vida e começado a cacarejar, de dentro de um dos tambores. Por isso, na praça da Igreja há uma escultura com um galo no alto.
Caminhei a maior parte do dia no plano, passando entre campos desnudos ou cobertos por um ralo capim seco (pode ser que seja trigo, já ceifado ou brotando....). Fez um sol dia esplendoroso, com céu azul e limpo. Porém, um ventinho fresco (e não frio demais) tornou a caminhada muito agradável. Agora, no verão deve ser impraticável caminhar tão grandes distâncias sem uma sombrinha no meio do caminho.
Pouco antes da primeira parada do percurso de hoje, um senhor francês se aproximou de mim e começamos a conversar. Paramos em Hontanas, tomamos um suco de laranja fresquinho (delicioso!) e seguimos caminhando e conversando até chegarmos a Castrojeriz. Patrick tem uns sessenta anos, é casado e tem dois filhos. O mais novo é o filho exemplar, em tudo parecido com o pai. O mais velho parece ser o oposto de Patrick, que vive angustiado com as escolhas do primogênito. Falei para ele da imagem das macieiras que não podem dar peras, e de como é bem mais fácil amar o que nos é semelhante. Desafiador mesmo é respeitar e amar, incondicionalmente, a diferença. Patrick gostou da imagem. Espero que possa ajudá-lo a repensar sua relação com o filho. Sempre que compartilho essa imagem com outras pessoas, aproveito para lembrar a mim mesma que preciso aceitar e amar as pessoas exatamente como elas são. Nada garante que as minhas escolhas sejam as corretas. Sobretudo, nada garante que as minhas escolhas sejam aquelas que vão fazer os outros felizes. O amor incondicional deveria ser um exercício mais fácil, rs, rs, rs.
Também conversamos muito sobre Deus. Patrick é agnóstico. Ao mesmo tempo, parece ser um homem sensível e generoso. Ele está fazendo o Caminho porque deseja se tornar uma pessoa melhor, e porque sua mãe, que era muito religiosa, e desejava fazer o Caminho, morreu no ano passado. Eu tive a impressão de que Patrick está bem mais perto de Deus do que ele imagina. Disse isso a ele e ele concordou comigo.
Foi uma bela troca a de ontem. Ele compartilhou comigo uma experiência que achei lindíssima. Ele me disse que sua mãe foi diagnosticada com Leucemia. O médico lhe deu três meses de sobrevida. Ela viveu quatro. E, me disse Patrick, foram os quatro meses mais felizes que ele, seus irmãos e sua mãe tiveram juntos. Após me contar isso, ele acrescentou: Eu tenho vergonha de dizer isso às pessoas, parece insensibilidade. Eu respondi: De jeito nenhum! Esse testemunho é lindo e você devia dá-lo a todo mundo! Você, seus irmãos e sua mãe (nunca contaram a ela do diagnóstico, mas ela, obviamente, estava ciente de que iria partir), compreenderam o essencial: que a vida são os momentos que a gente compartilha e as memórias doces e alegres que a gente pode levar pra sempre. Eu realmente acredito nisso e fiquei emocionada quando ele me contou sua história. A vida deve ser sempre celebrada. Ao invés de ficarmos lamentando a perda ou a partida dos que amamos, devemos desfrutar cada momento juntos e nos sentirmos gratos pela bênção de ter essas pessoas nas nossas vidas. Fácil falar e difícil dizer? Por isso mesmo achei lindo o testemunho dele. Foi algo que ele e sua família conseguira, vivenciar naturalmente. E olhe que Patrick já tinha me falado muito da mãe, que foi maravilhosa e criou cinco filhos praticamente sozinha, porque ficou viúva cedo.
Nessa conversa boa, chegamos às ruínas do Convento de San Antón. A estrada passa por baixo de um enorme arco de Igreja, cujas paredes já não existem mais. Daí em diante, caminhamos por uma estrada ladeada de árvores, e, de repente, chegamos à charmosa Castrojeriz. É uma cidade de uns 600 habitantes, que se estende ao comprido, ao pé de um morro (no alto do qual há as ruínas de um antigo castelo). Adorei Castrojeriz. Logo ao princípio, tem uma grande Igreja, que foi transformada num museu sacro. E mais à frente, seguindo pela rua que contorna o morro, o centro da cidade. Paramos numa casinha pouco após a Igreja, para pedir informações sobre o hotel de Patrick. A casa era de uma simplicidade extrema. Pouquíssimos móveis na sala. Um senhor trabalhava em meio a seus papéis, numa velha mesa de madeira. Nos deu a informação pedida, com uma boa vontade cheia de calor e de alegria, e nos disse: Não tenho muita coisa, mas posso oferecer um copo de vinho. Não é uma gracinha?! Coisa de gente de Interior, que sempre está disposta a compartilhar do pouco que tem. Patrick ficou impressionado.
Já eram umas duas da tarde e fomos procurar um lugar para almoçar. Encontramos uma gracinha de restaurante, com mesinhas postas em meio a um jardim florido. Tomei um gazpacho divino. E comi um franguinho no alho com gostinho de comida caseira. Após o almoço, me despedi do meu companheiro de caminhada. Patrick foi pro hotel dele e eu me dirigi ao meu albergue, o Ultreia.
O Ultreia é um albergue muito especial. Tem um amplo quintal, em dois patamares. No mais alto há uma piscininha para os pés. Após o banho, fiquei uma meia hora com os pés na água gelada. É muito relaxante. Ah! Fiz minha primeira bolha! Num dedo do pé esquerdo. Depois da piscina de água fria, furei a bolha com uma agulha esterilizada e passei um fio. É uma recomendação para os peregrinos. A gente deixa o fio pra “sarjar”, feito se fosse um dreno. Coloquei quadriderme para não inflamar e fui ao mercadinho local comprar umas frutas pra noite.
Na volta do mercado, entrei numa casa que tinha uma placa dizendo: Hospital de Almas. Qual é a probabilidade de a gente achar uma exposição de fotografias, e uma casa que é toda ela uma galeria de arte, num povoado de seiscentos habitantes, bem no meio da Espanha? Pois essa casa é isso. E ainda mais. É um lugar todo ele pensando para o convite ao silêncio e à meditação. Uma coisa especialíssima e emocionante. Tocava uma música bem suave quando eu entrei. Por toda a casa há ramos de alecrim e de lavanda pendurados nas paredes, que deixam um leve perfume no ar. Junto às fotos, mensagens, cada uma mais tocante que a outra. Fiquei muito emocionada. Tanto mais porque é, literalmente, a cada onde mora o sujeito que montou tudo isso. E não se paga nada. Imagina quanto amor pelo semelhante para você  simplesmente abrir toda a sua casa para que as pessoas possam disfrutar de calma, de silêncio, de boa energia, de paz?!!! Creio que foi esse gesto de desprendimento e generosidade o que mais me comoveu. A casa inteira pode ser percorrida. À entrada, um cartaz pede que não se tire fotos. E é quase impossível descrever a quantidade de detalhes preciosos que há nessa casa, incluindo o quintal, que termina ao pé do morro, e tem umas caverninhas também elas decoradas com amor. Sentei numa das salas, meditei um pouco, agradeci muito, e me emocionei ainda mais, com tanto Amor que Deus nos dá por meio dos outros, daqueles que se deixam ser instrumento...
Fui a última a sair do Hospital de Almas. O seu dono já estava à mesa jantando. Quando foi abrir a porta pra mim, agradeci muito. Ele me olhou nos olhos e me deu um abraço bem apertado. Ainda emocionada, saí andando de volta ao albergue. Muitos peregrinos já estavam sentados à mesa de jantar. Eu fui comer meu iogurte porque havia amoçado bem e tarde. Estou tentando comer pouco à noite e me alimentar bem durante o dia. O único lado ruim é que as refeições coletivas são sempre os jantares.
Depois do jantar, Don José, o dono do albergue nos deu uma explicação sobre a enorme prensa de uva que ele tem no refeitório. E na sequência, nos levou ao subsolo, onde há uma cave, ou bodega, como se diz em espanhol. Essa bodega produzia vinha no século XVII, juntamente com a prensa que está na sala de jantar. Mas a galeria onde a bodega está instalada faz parte de uma estrutura de 2 kms de galerias, construídas sob a cidade, entre os séculos IX a XIII, e que era parte do sistema de defesa do castelo! Não é o máximo?! Seu José descobriu tudo isso quando fez a reforma da casa para transformá-la em albergue. E algumas das pedras utilizadas na estrutura da bodega (que tem arcos góticos, em forma de ogiva) ainda são do século I, da época da ocupação romana! Fiquei encantada! Já pensou a sorte que eu tive de ir parar nesse albergue?! Agradeci demais por esse mimo, como diz Tia Regina! O tour terminou com uma degustação de vinho.
Como você vê, Niquinha, hoje foi um dia pra ficar na memória e no coração.
E agora é hora de me recolher.
Saudades mil! Beijos,

Léia 

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