09/10/15
Boa Tarde, Minha Amada
Irmã!
Estou em Mansilla de
las Mulas. Uma simpática vila, com quase dois mil habitantes. Estou num
albergue maravilhoso, inaugurado em julho! Tudo novinho, e o que é ainda mais
importante, cheio de alto astral. Chama-se Gaia. Toca uma música ambiente super
suave, às vezes só com piano e canto de passarinho, às vezes música clássica. E
tem incenso e velas. A minha cara, né?! Dormi maravilhosamente bem, no beliche
inferior, e com aquecimento ligado. No meu quarto só havia três maiorquenses
(de Palma de Maiorca), muito simpáticos por sinal. Adorei ouvi-los conversar em
“maiorquês”.
Marisa, a dona da
pousada, é um amor de criatura. Ela e o marido, Carlos, que conheci hoje, já
fizeram o Caminho várias vezes. Aliás, foi isso que me atraiu na propaganda: um
albergue de peregrinos para peregrinos. Já conversei muito com ela, e descobri
que tem uma associação chamada Hospitaleros Voluntarios. Eles formam pessoas
que querem trabalhar voluntariamente nos albergues. Já anotei essa informação
na minha caixola. Quem sabe eu faço
isso um dia? Sabe o que é, a gente tem uma sensação de que recebe tanta coisa
boa e bonita do Caminho, que dá vontade mesmo de retribuir.
Bom, hoje saí do
albergue com o dia raiando. Corri até uma das torres da muralha, para ver o sol
nascendo do alto. Muito belo. Depois, fui ao Centro de Saúde, para ver se algum
médico podia dar uma olhada na bolha do meu calcanhar, que parecia estar
infeccionada. Falei com a moça da recepção e em dois minutos desceu o médico
que estava de plantão. Era um senhor de uns cinquenta e poucos anos. Já foi me
dando uma bronca porque eu não procurei o centro assim que cheguei na cidade,
ontem à tarde. Ele disse que a bolha não está infectada, que eu não preciso de
antibiótico. Ele aplicou um antisséptico dentro da bolha, com uma agulha (doeu
um bocadinho), pôs uns esparadrapos e me recomendou expressamente que não ande
por dois dias. Me sugeriu que eu pegasse um ônibus pra León, que é uma cidade
mais interessante, e ficasse passeando por lá uns dois dias. Ao fim desse
prazo, devo procurar um posto de saúde, para que me removam a pele da bolha e façam
um curativo. Ele me disse que se eu seguir as orientações, devo chegar numa boa
a Santiago. O médico ficou, na verdade, impressionado com o bom estado do meu
pé. Ele e a enfermeira ficaram comentando como chegam peregrinos com os pés
completamente estropiados.
Como eu quero andar
cada quilômetro do Caminho, recusei a sugestão de pular essa etapa entre
Mansilla e Léon. Fiquei por Mansilla hoje. Pela manhã visitei o Museu
Etnográfico da Provincia de Léon. É um museu bem organizado, instalado num
Mosteiro de Santo Agostinho. Tal como no caso do La Peregrina, fizeram uma
restauração que preservou o que foi possível preservar (ou recuperar) da
edificação original, e combinaram com elementos contemporâneos. A coleção do
museu faz um bom retrato da vida tradicional das populações rurais leonesas.
Vários objetos bem interessantes, dão uma ideia de como costumava ser a vida no
campo. Vendo aqueles instrumentos, utilizados para diferentes ofícios
relacionados à sobrevivência (produção de uva, mel, chocolate, tecidos, móveis,
caça, pesca, pastoreio) fiquei pensando em como a vida do homem foi tão
trabalhosa. Engraçado que a gente sabe disso, mas não pensa em como já foi tão
custoso ter as necessidades mais simples satisfeitas. A quantidade de energia e
de horas de trabalho para que se pudesse ter uma peça de roupa para vestir, ou
pedaço de pão para comer...
Após a visita ao
museu, voltei ao albergue, fiz meu almoço, tomei banho e aqui estou, sentadinha
na cama, de pernas para cima, te escrevendo. E agora, deixa eu te contar como
foi o dia de ontem. Eu tinha dormido num albergue municipal, em Burgo Ranero.
Um povoado de nada. Dormi mais ou menos, porque mesmo com a coberta, senti
frio. Acho que é porque a casa não tinha forro. Vesti algumas camadas de roupa,
e ainda assim tive um pouco de frio.
Tomei café vendo o dia
raiar pela janela do refeitório. Saí do albergue com o sol se levantando. Para
ver o sol nascendo, é preciso parar e olhar para trás. Desde Ponte La Reina,
onde se juntam os Caminhos Francês e Aragonês, estamos caminhando no sentido
Leste-Oeste (antes, a gente caminha no sentido Norte-Sul), logo, o sol sempre
nasce atrás. O céu logo se pôs radiante de azul. E, no entanto, foi uma manhã
geladíssima.
A caminhada de ontem
foi o tempo todo ao lado de uma estrada vicinal. Era uma alameda bonita, bem arborizada,
com banquinhos de cimento aqui e acolá. A estradinha estava pouco movimentada,
e deu para caminhar com tranquilidade, ouvindo os pássaros, meditando e
rezando. A primeira parte do trajeto foi mais dura, 13 kms até Reliego. Acho
que já te falei que esses percursos com intervalos muito longos entre cidades são
os mais cansativos para mim, ainda que sempre haja áreas de descanso, com
mesas, bancos e alguma fonte para abastecimento d’água. Parei numa dessas áreas
de descanso, comi pão e queijo que trazia comigo, alonguei e repousei um pouco
os pés. A bolha do calcanhar me incomodou bastante ontem.
Na minúscula Reliegos,
comi umas tapas de cogumelos, (sempre como ou tomo algo nos cafés e bares onde
paro pra usar o banheiro) e fiz compras numa vendinha, já pensando no almoço,
porque eu sabia que chegaria a Mansilla na hora da siesta. Reliegos também tem bodegas
num morrinho de argila. Devo dizer que fora o bar e a vendinha, parecia um
povoado fantasma. De lá já dava para avistar a mancha urbana de Mansilla de las
Mulas ao longe. A visão do destino do dia é sempre alentadora; dá um gás pra
enfrentar a reta final. A caminhada continuou à beira da estrada. Normalmente,
os peregrinos caminham à esquerda das estradas ou rodovias. Do lado direito,
cruzando a estrada, campos vazios e ao fundo, montanhas. Gostei do fato de
voltar a ver montanhas no horizonte. Fazia dias que isso não acontecia. Me dei
conta de que é uma sensação melhor do que a do horizonte chato, com terras a
perder de vista. Não sei se é porque caminhando muito, a sensação de infinitude
do horizonte alarga as distâncias...
A entrada de Mansilla é
meio feinha, porém o trajeto é curto. Logo se chega á área central. Com a ajuda
deum policial, achei logo meu albergue, Gaia, que como eu te disse no
princípio, é muito legal. Cheguei, me registrei e quando perguntei pela minha
mochila, descobri que ainda não havia chegado. Esse foi um fato inusitado.
Sempre que eu chego em qualquer albergue, minha mochila já está me esperando.
Marisa ficou logo preocupada. Eu, juro, fiquei tranquila. Me acostumei a
confiar nesse serviço. Tinha certeza de que a mochila iria aparecer. De fato,
dez minutos após um telefonema de Marisa, a mochila chegou. Havia sido entregue
num albergue próximo. Tomei meu banho e preparei meu almoço na cozinha do
albergue. Eu tinha comprado um vidro de deliciosos pimentões assados, que comi
com pasta, e uma salada de tomate bem temperada. Normalmente, nos albergues que
têm cozinha para os peregrinos, se encontram temperos que outros peregrinos
deixaram para trás. Nica, tô comendo tanto tomate! Não sei porque, mas me deu
uma fissura por tomate. Sempre que eu tenho a possibilidade, como uma salada de
três ou quatro tomates.
Após almoçar, saí para
dar volta por Mansilla, que foi uma cidade murada. Há vários e extensos pedaços
da antiga muralha medieval. São grossas paredes feitas de seixos, colados com
algum tipo de argamassa. Também restam ruínas de algumas torres. Na mais completa
delas, há uma escada meio duvidosa, e uma passarela de madeira que cruza um
fosso, à qual faltam algumas tábuas. Subi essa torre com todo cuidado. Valeu a
pena. Do alto se vê bem toda a muralha e a cidade com suas duas torres de Igreja.
Algumas das casas são coladas à muralha. Por trás dos muros, um belo bosque, parcialmente
vestido do amarelo outonal. Segui caminhando junto à muralha, que faz quase um
semi-círculo, até chegar a uma praça tipicamente espanhola, retangular, com
suas casinhas antigas, de balcões sustentados por pilares de madeira, que
formam galerias, boas para abrigar do sol nas tardes quentes de verão. Passei
pela Igreja de San Martín, que estava fechada. É um prédio do século XIII, mas de
original parece que só resta a portada gótica. Consegui entrar na Igreja de
Santa María, que não tem nada de especial. Na verdade, as duas Igrejas têm um
exterior completamente descaracterizado, inclusive no que se refere às torres, de
traçado mais germânico que ibérico. Em Santa María há um altar barroco, porém,
estava muito escuro para vê-lo bem, e havia um forte cheiro de mofo. Me demorei
nessa Igreja o tempo suficiente para fazer umas orações.
Também visitei a Ermida de La Vírgen de Gracia, quase
colada ao albergue. A fachada lembra uma das nossas igrejinhas barrocas, tipo a
da pracinha de Boa Viagem, ainda que não tão charmosa. Dentro, ela é muito,
muito simples. Só chama a atenção a imagem da Virgem, muito bonita, com vestes
bem elaboradas, uma grande lua de prata e um belíssimo resplendor também em
prata.
Já voltei para o
albergue à noite. Fiquei conversando com os peregrinos de Maiorca, e enquanto
lanchava, bati um papo bom com Marisa. Ela me disse que essa parte que estamos
fazendo (a meseta) é a mais dura, justamente porque é tudo plano, e a paisagem
não é tão deslumbrante. É aí que os peregrinos mais têm problemas com bolhas. É
mais duro, disse ela, porque a pessoa acaba tendo que se voltar para dentro, e
encarar seus próprios fantasmas. Achei essa teoria muito interessante. Após
Astorga, há muitas subidas e descidas. Diz Marisa, que é mais bonito e melhor
para o corpo, que volta a exercitar diferentes músculos. Em todo caso, estou
pensando seriamente em comprar uma joelheira mais potente, porque há muitas
encostas íngremes pela frente, e eu não quero me arriscar a morrer na praia.
Esse foi o dia de
ontem. Amanhã, tomarei um ônibus pela manhã e passarei o dia em Léon. No fim da
tarde, volto a Mansilla. E agora vou tomar um chá com uns biscoitinhos
folhados, cobertos de açúcar de confeiteiro e amêndoas que são simplesmente
divinos! Dissolvem na boca. Comprei uma bandejinha, para poder partilhar com os
outros.
Até amanhã, Niquinha!
Beijos cheios de saudade,
Léia
ObS: Nica, já fiz de tudo e não consigo me entender com esse Picassa. Acho que o jeito vai ser eu carregar as fotos pro Facebook....
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