sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 27


09/10/15

Boa Tarde, Minha Amada Irmã!
Estou em Mansilla de las Mulas. Uma simpática vila, com quase dois mil habitantes. Estou num albergue maravilhoso, inaugurado em julho! Tudo novinho, e o que é ainda mais importante, cheio de alto astral. Chama-se Gaia. Toca uma música ambiente super suave, às vezes só com piano e canto de passarinho, às vezes música clássica. E tem incenso e velas. A minha cara, né?! Dormi maravilhosamente bem, no beliche inferior, e com aquecimento ligado. No meu quarto só havia três maiorquenses (de Palma de Maiorca), muito simpáticos por sinal. Adorei ouvi-los conversar em “maiorquês”.
Marisa, a dona da pousada, é um amor de criatura. Ela e o marido, Carlos, que conheci hoje, já fizeram o Caminho várias vezes. Aliás, foi isso que me atraiu na propaganda: um albergue de peregrinos para peregrinos. Já conversei muito com ela, e descobri que tem uma associação chamada Hospitaleros Voluntarios. Eles formam pessoas que querem trabalhar voluntariamente nos albergues. Já anotei essa informação na minha caixola. Quem sabe eu faço isso um dia? Sabe o que é, a gente tem uma sensação de que recebe tanta coisa boa e bonita do Caminho, que dá vontade mesmo de retribuir.
Bom, hoje saí do albergue com o dia raiando. Corri até uma das torres da muralha, para ver o sol nascendo do alto. Muito belo. Depois, fui ao Centro de Saúde, para ver se algum médico podia dar uma olhada na bolha do meu calcanhar, que parecia estar infeccionada. Falei com a moça da recepção e em dois minutos desceu o médico que estava de plantão. Era um senhor de uns cinquenta e poucos anos. Já foi me dando uma bronca porque eu não procurei o centro assim que cheguei na cidade, ontem à tarde. Ele disse que a bolha não está infectada, que eu não preciso de antibiótico. Ele aplicou um antisséptico dentro da bolha, com uma agulha (doeu um bocadinho), pôs uns esparadrapos e me recomendou expressamente que não ande por dois dias. Me sugeriu que eu pegasse um ônibus pra León, que é uma cidade mais interessante, e ficasse passeando por lá uns dois dias. Ao fim desse prazo, devo procurar um posto de saúde, para que me removam a pele da bolha e façam um curativo. Ele me disse que se eu seguir as orientações, devo chegar numa boa a Santiago. O médico ficou, na verdade, impressionado com o bom estado do meu pé. Ele e a enfermeira ficaram comentando como chegam peregrinos com os pés completamente estropiados.
Como eu quero andar cada quilômetro do Caminho, recusei a sugestão de pular essa etapa entre Mansilla e Léon. Fiquei por Mansilla hoje. Pela manhã visitei o Museu Etnográfico da Provincia de Léon. É um museu bem organizado, instalado num Mosteiro de Santo Agostinho. Tal como no caso do La Peregrina, fizeram uma restauração que preservou o que foi possível preservar (ou recuperar) da edificação original, e combinaram com elementos contemporâneos. A coleção do museu faz um bom retrato da vida tradicional das populações rurais leonesas. Vários objetos bem interessantes, dão uma ideia de como costumava ser a vida no campo. Vendo aqueles instrumentos, utilizados para diferentes ofícios relacionados à sobrevivência (produção de uva, mel, chocolate, tecidos, móveis, caça, pesca, pastoreio) fiquei pensando em como a vida do homem foi tão trabalhosa. Engraçado que a gente sabe disso, mas não pensa em como já foi tão custoso ter as necessidades mais simples satisfeitas. A quantidade de energia e de horas de trabalho para que se pudesse ter uma peça de roupa para vestir, ou pedaço de pão para comer...
Após a visita ao museu, voltei ao albergue, fiz meu almoço, tomei banho e aqui estou, sentadinha na cama, de pernas para cima, te escrevendo. E agora, deixa eu te contar como foi o dia de ontem. Eu tinha dormido num albergue municipal, em Burgo Ranero. Um povoado de nada. Dormi mais ou menos, porque mesmo com a coberta, senti frio. Acho que é porque a casa não tinha forro. Vesti algumas camadas de roupa, e ainda assim tive um pouco de frio.    
Tomei café vendo o dia raiar pela janela do refeitório. Saí do albergue com o sol se levantando. Para ver o sol nascendo, é preciso parar e olhar para trás. Desde Ponte La Reina, onde se juntam os Caminhos Francês e Aragonês, estamos caminhando no sentido Leste-Oeste (antes, a gente caminha no sentido Norte-Sul), logo, o sol sempre nasce atrás. O céu logo se pôs radiante de azul. E, no entanto, foi uma manhã geladíssima.
A caminhada de ontem foi o tempo todo ao lado de uma estrada vicinal. Era uma alameda bonita, bem arborizada, com banquinhos de cimento aqui e acolá. A estradinha estava pouco movimentada, e deu para caminhar com tranquilidade, ouvindo os pássaros, meditando e rezando. A primeira parte do trajeto foi mais dura, 13 kms até Reliego. Acho que já te falei que esses percursos com intervalos muito longos entre cidades são os mais cansativos para mim, ainda que sempre haja áreas de descanso, com mesas, bancos e alguma fonte para abastecimento d’água. Parei numa dessas áreas de descanso, comi pão e queijo que trazia comigo, alonguei e repousei um pouco os pés. A bolha do calcanhar me incomodou bastante ontem.
Na minúscula Reliegos, comi umas tapas de cogumelos, (sempre como ou tomo algo nos cafés e bares onde paro pra usar o banheiro) e fiz compras numa vendinha, já pensando no almoço, porque eu sabia que chegaria a Mansilla na hora da siesta. Reliegos também tem bodegas num morrinho de argila. Devo dizer que fora o bar e a vendinha, parecia um povoado fantasma. De lá já dava para avistar a mancha urbana de Mansilla de las Mulas ao longe. A visão do destino do dia é sempre alentadora; dá um gás pra enfrentar a reta final. A caminhada continuou à beira da estrada. Normalmente, os peregrinos caminham à esquerda das estradas ou rodovias. Do lado direito, cruzando a estrada, campos vazios e ao fundo, montanhas. Gostei do fato de voltar a ver montanhas no horizonte. Fazia dias que isso não acontecia. Me dei conta de que é uma sensação melhor do que a do horizonte chato, com terras a perder de vista. Não sei se é porque caminhando muito, a sensação de infinitude do horizonte alarga as distâncias...
A entrada de Mansilla é meio feinha, porém o trajeto é curto. Logo se chega á área central. Com a ajuda deum policial, achei logo meu albergue, Gaia, que como eu te disse no princípio, é muito legal. Cheguei, me registrei e quando perguntei pela minha mochila, descobri que ainda não havia chegado. Esse foi um fato inusitado. Sempre que eu chego em qualquer albergue, minha mochila já está me esperando. Marisa ficou logo preocupada. Eu, juro, fiquei tranquila. Me acostumei a confiar nesse serviço. Tinha certeza de que a mochila iria aparecer. De fato, dez minutos após um telefonema de Marisa, a mochila chegou. Havia sido entregue num albergue próximo. Tomei meu banho e preparei meu almoço na cozinha do albergue. Eu tinha comprado um vidro de deliciosos pimentões assados, que comi com pasta, e uma salada de tomate bem temperada. Normalmente, nos albergues que têm cozinha para os peregrinos, se encontram temperos que outros peregrinos deixaram para trás. Nica, tô comendo tanto tomate! Não sei porque, mas me deu uma fissura por tomate. Sempre que eu tenho a possibilidade, como uma salada de três ou quatro tomates.
Após almoçar, saí para dar volta por Mansilla, que foi uma cidade murada. Há vários e extensos pedaços da antiga muralha medieval. São grossas paredes feitas de seixos, colados com algum tipo de argamassa. Também restam ruínas de algumas torres. Na mais completa delas, há uma escada meio duvidosa, e uma passarela de madeira que cruza um fosso, à qual faltam algumas tábuas. Subi essa torre com todo cuidado. Valeu a pena. Do alto se vê bem toda a muralha e a cidade com suas duas torres de Igreja. Algumas das casas são coladas à muralha. Por trás dos muros, um belo bosque, parcialmente vestido do amarelo outonal. Segui caminhando junto à muralha, que faz quase um semi-círculo, até chegar a uma praça tipicamente espanhola, retangular, com suas casinhas antigas, de balcões sustentados por pilares de madeira, que formam galerias, boas para abrigar do sol nas tardes quentes de verão. Passei pela Igreja de San Martín, que estava fechada. É um prédio do século XIII, mas de original parece que só resta a portada gótica. Consegui entrar na Igreja de Santa María, que não tem nada de especial. Na verdade, as duas Igrejas têm um exterior completamente descaracterizado, inclusive no que se refere às torres, de traçado mais germânico que ibérico. Em Santa María há um altar barroco, porém, estava muito escuro para vê-lo bem, e havia um forte cheiro de mofo. Me demorei nessa Igreja o tempo suficiente para fazer umas orações.
Também visitei a Ermida de La Vírgen de Gracia, quase colada ao albergue. A fachada lembra uma das nossas igrejinhas barrocas, tipo a da pracinha de Boa Viagem, ainda que não tão charmosa. Dentro, ela é muito, muito simples. Só chama a atenção a imagem da Virgem, muito bonita, com vestes bem elaboradas, uma grande lua de prata e um belíssimo resplendor também em prata.
Já voltei para o albergue à noite. Fiquei conversando com os peregrinos de Maiorca, e enquanto lanchava, bati um papo bom com Marisa. Ela me disse que essa parte que estamos fazendo (a meseta) é a mais dura, justamente porque é tudo plano, e a paisagem não é tão deslumbrante. É aí que os peregrinos mais têm problemas com bolhas. É mais duro, disse ela, porque a pessoa acaba tendo que se voltar para dentro, e encarar seus próprios fantasmas. Achei essa teoria muito interessante. Após Astorga, há muitas subidas e descidas. Diz Marisa, que é mais bonito e melhor para o corpo, que volta a exercitar diferentes músculos. Em todo caso, estou pensando seriamente em comprar uma joelheira mais potente, porque há muitas encostas íngremes pela frente, e eu não quero me arriscar a morrer na praia.
Esse foi o dia de ontem. Amanhã, tomarei um ônibus pela manhã e passarei o dia em Léon. No fim da tarde, volto a Mansilla. E agora vou tomar um chá com uns biscoitinhos folhados, cobertos de açúcar de confeiteiro e amêndoas que são simplesmente divinos! Dissolvem na boca. Comprei uma bandejinha, para poder partilhar com os outros.
Até amanhã, Niquinha!
Beijos cheios de saudade,

Léia

ObS: Nica, já fiz de tudo e não consigo me entender com esse Picassa. Acho que o jeito vai ser eu carregar as fotos pro Facebook....

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