21/10/15
Boa Tarde, Nica!
Estou te escrevendo de
uma cidadezinha mimosa, chamada Villafranca del Bierzo. Neste exato momento,
estou sentada numa poltrona em frente a uma lareira, numa salinha de estar de
uma casa centenária, que pertenceu aos pais de Dona Mercedez. Essa senhora é um
amor de criatura. Decidiu transformar o velho casarão em um albergue para que
as filhas voltassem a morar perto dela. O casarão foi todo reformado e mais
parece um hotel do que um albergue. Do ponto de vista de conforto, sem dúvida,
foi o melhor albergue em que fiquei hospedada até aqui. Porque além do ambiente
requintado, Dona Mercedez e as filhas, Ángela e María, estão me tratando com
uma atenção e um carinho que me fazem sentir em casa! Eles me trouxeram uma
bacia com água quente e sal, para o pé da bolha, e gelo para o tornozelo
inflamado (a tendinite).
Villafranca del Bierzo
é uma jóia de vilarejo, instalada em meio às montanhas, à beira de um rio. A
paisagem é bela e a cidade está muito bem cuidada. As torres das suas três ou
quatro Igrejas se destacam contra a silhueta das montanhas. Amei. Resolvi ficar
aqui por pelo menos duas noites, para dar um descanso ao meu calcanhar.
Deixa eu voltar para o
dia de ontem. Eu tinha dormido em Ponferrada. Foi uma boa noite de sono no
albergue Alea. São raros os albergues em que se dorme com lençóis limpos.
Geralmente os albergues não trocam a roupa de cama. Só dão uma esticadinha. Por
isso que todo mundo anda com seu saquinho de dormir. Eu, além do saco de
dormir, uso lençol e fronha descartáveis. Até aqui, só fiquei em três albergues
com lençóis limpinhos: o Albergue Verde, o Alea e esse em que estou agora, o Leo. E posso te dizer que é uma delícia
dormir numa cama com lençol limpinho! Mais uma dessas coisas corriqueiras de
que a gente não se dá conta da importância que têm na vida cotidiana.
Além de dormir bem,
tomei um farto café da manhã no albergue. No Alea, reencontrei um casal
americano que havia conhecido em León, e conheci um jovem capixaba, Rafael. O
trio me lembrou meu período de caminhada com Norma e Tom. Rafael foi meio
adotado por Teresa e o esposo. Estão caminhando juntos. Hoje, encontrei-os
novamente nas ruas de Villafranca del Bierzo. É uma sensação tão boa quando a
gente reencontra alguém que viu três, quatro, ou vários dias antes, em algum
ponto do Caminho!
Ah! Na noite anterior,
Teresa estava numa conversa animadíssima com Svetlana, uma jovem alemã que eu
tinha conhecido em Acebo (o hotel-albergue). As duas conversavam sobre sistemas
de saúde pública, diferenças entre Europa e Estados Unidos, sobre a dívida da
Grécia e as questões de fronteira e Imigração. Ouvi toda a conversa sem dar nem
um pitaco! Fiquei tão feliz comigo mesma. Estou fazendo o propósito de ouvir
mais e falar menos. Uns meses atrás, não tinha qualquer possibilidade de eu ouvir
uma conversa dessas – ainda mais que elas me incluíam no papo, com os olhares –
e não emitir firmes opiniões a respeito. Pois ontem, por incrível que pareça,
fiquei só escutando, aprendendo e matutando. Quando a gente não entra na
discussão, a escuta é diferente, o aprendizado é outro. Não deixa de ser um
exercício de humildade. Pois ando empenhada nele.
Bem, ontem fez um belo
dia de sol! Nem parecia que tinha chovido tanto na véspera. Comecei minha
caminhada contente e agradecida pelo céu azul, salpicado por uns fiapos de
nuvens. Do albergue à saída de Ponferrada fui passando pelos pontos de
interesse histórico. A cidade tem um grande castelo dos Cavaleiros Templários.
É um edifício impressionante, até pelo porte. Ainda estava fechado e achei que
não valia à pena esperar que abrisse. Fiquei observando e notei que o castelo
sofreu intervenções e reformas recentes e não muito criteriosas. Vê-lo por fora
me pareceu de bom tamanho. Me lembrei muito de Tomar, em Portugal, que também é
um castelo Templário, e me pareceu mais autêntico, justamente por não estar
inteiro e perfeito, deixando evidentes as marcas do tempo e da história.
Ponferrada não é uma
cidade particularmente bonita, a não ser pela paisagem montanhosa em volta, e
pelo portentoso castelo. A Basílica de la Virgen de La Encina tem uma alta
torre de pedra, sem muito charme. Diz que é do século XVI, mas me pareceu mais
um edifício modificado por intervenções recentes. O que mais me encantou nessa
Igreja foi um Cristo crucificado de traços simples e longilíneos, bem
característicos de uma arte sacra ainda medieval. A Basílica fica numa dessas
praças quadrangulares. Parei para tomar um café num bar cujo dono era uma
simpatia. Saí um pouco do Caminho para ir ver a Torre del Reloj (sec XVI), sob
a qual está um arco que dá acesso à praça onde se encontra o prédio do
Ayuntamiento. Essa praça estava cheia de estudantes que saíam de algum colégio.
Nada muito especial, contudo. Retomei o Caminho e depois que deixei para trás o
centro histórico (cruzando um belo rio, onde se viam as montanhas do entorno
espelhadas na água), andei ainda muito tempo dentro da área urbana de
Ponferrada, fiz compras num supermercado, e finalmente cheguei a uma alameda
arborizada, que me levou a um povoado periférico, chamado Compostilla.
Atravessei uma vizinhança bem bonita, com muitas árvores e belas casas, várias
delas com placa de Vende-se. Lembrei
que um dia desses algum peregrino americano comentava que toda a Espanha
parecia estar à venda. De fato, esse é um sinal evidente da crise que ainda
afeta os espanhóis. Em Compostilla, a Igreja de Santa María me chamou a atenção
porque nas paredes internas há umas pinturas que parecem reproduzir figuras do
Panteón, de León (lembra?).
Toda a caminhada de
ontem foi bem bonita. O céu se pôs inteiramente azul, sem uma nuvem no céu.
Caminhei por entre hortas e campos arborizados, sempre com uma cadeia de
montanhas à minha frente, na linha do horizonte. Muitas árvores estão
inteiramente amarelas, e o contraste com o azul intenso do céu, realmente é
muito bonito. Cruzei dois pequenos povoados, Columbrianos e Fuentes Nuevas (o
pai de Carlos, marido de Chrissy, é desse povoadozinho). Por sinal que parei
num banquinho de Fuentes Nuevas para fazer um lanche. Todas as cidades da etapa
de hoje eram pertinho umas das outras. Pouco mais à frente cheguei a uma cidade
chamada Camponayara. Cidade mesmo, com certo porte, e sem nenhum encanto.
Depois de Camponayara
a paisagem ficou ainda mais linda. Comecei a atravessar uma zona de vinhedos,
chamada El Bierzo. Com o outono, as parreiras estão super coloridas: verde
claro, amarelas, laranjas e vermelhas. Como é uma área montanhosa, elas sobem
pelas colinas. Esse trecho do Caminho me encantou, com as parreiras coloridas,
as árvores vestidas de amarelo, às vezes formando alamedas, que ensobreavam a
estrada, dando um alívio do sol, que estava bem quente, e comprida silhueta das
montanhas ao lado ou à minha frente.
Assim foi até chegar a
Cacabelos, que é uma gracinha de povoado. Adorei o ambiente, as ruas estreitas,
com casinhas antigas, com varandas de madeira sustentadas por pilastras
certamente seculares. Algumas delas parecem atingir um equilíbrio improvável,
dando a impressão de que a qualquer momento vão desabar. Outras dessas varandas
estão cheinhas de flores coloridas ou trepadeiras. Um lindo gramado, pontuado
de árvores, se estende ao longo do rio que corta a cidade. Muito fofa a
cidadezinha. Amei. É um desses lugares em que eu teria ficado, caso estivesse
carregando minha mochila.
Infelizmente, tive de
seguir adiante, porque tinha mandado minha mochila para a próxima localidade.
Pieros fica a menos de quatro quilômetros de Cacabelos, porém, me custou uma
eternidade para chegar, pois meus dois pés estavam me incomodando. Um deles com
a tendinite, o outro com uma bolha que cresceu ao lado da antiga. Pieros, meu destino,
é um povoado de nada. Lá tem a tal pousada que Mincho me havia recomendado, El
Serbol y La Luna. Estava particularmente interessada nas massagens de que
falava o panfletinho. Pensei também que seria uma atmosfera semelhante à do
Albergue Verde. Resulta que não era tão agradável pela falta de espaço mesmo. A
energia da galera era bem legal, porém, o albergue é meio apertadinho. De todo
modo, valeu demais. O jantar, vegetariano, estava uma delícia. E como o
albergue é pequeno, éramos poucos peregrinos. Logo, a hora da comida foi uma
grande confraternização. Havia alemães, australianos, franceses, belgas, um
holandês e uma americana. Como ouvi uma peregrina dizendo certa vez: O Caminho
é mais internacional que as Nações Unidas.
No jantar conheci uma
francesa, Hélène, que está fazendo o Caminho pela segunda vez. Da primeira vez,
ela fez o Caminho em agradecimento, porque teve um problema sério nos joelhos e
chegou a ficar numa cadeira de rodas. Quando ela me contou isso, meu coração se
aqueceu. Eu disse a ela que também estou fazendo o Caminho em agradecimento por
uma Graça que tenho certeza de fé de que receberei! E será até 15 de janeiro.
Bati muito papo com um
senhor holandês, Harm, e a moça americana, que é enfermeira! Ela foi um anjo
que Deus mandou para me ajudar. O calcanhar direito, da bolha, tinha voltado a
me incomodar (e muito) durante a caminhada do dia. O problema é que se formou
outro abcesso, mas no lado mais externo do calcanhar, numa área que ficava
super sem jeito pra eu furar ou fazer qualquer coisa. Laura cuidou do calcanhar
pra mim. Furou, tirou todo o líquido (estava meio escuro, como se tivesse feito
um calo de sangue), mandou eu colocar o pé na água quente com sal, e, hoje de
manhã, ela não só colocou uma pomada antibiótica como me deu o tubo de pomada!
E me recomendou que protegesse bem o calcanhar para a caminhada.
Bom, dormi bem
aquecida, portanto, tive uma boa noite de sono. Tomei um bom café da manhã e retomei
minha caminhada, mas para fazer apenas 6 kms. Atendendo aos seus conselhos, Minha
Irmã, decidi ir apenas até Villafranca del Bierzo, para não exigir muito do
tornozelo, e avaliar a necessidade de repousar um dia nessa cidade.
Hoje fez mais um belo
dia de sol e céu espelhado, deslumbrante de azul. Porém, fez um pouco mais de
frio. A paisagem entre Pieros e Villafranca del Bierzo é ainda mais linda! Caminhei
subindo, portanto, fui adentrando pelas montanhas, cobertas de parreirais com o
colorido que descrevi acima. Tão lindas as encostas coloridas de amarelo,
laranja e vermelho, com as montanhas ao fundo! Ao longe, eu podia ver que os
vales ao pé das montanhas estavam encobertos por uma tênue névoa. Às vezes os
parreirais cediam lugar à vegetação agreste, com árvores e arbustos igualmente
tingidos pela paleta de cores do outono. Passarinhos faziam uma grande
algazarra. Pena que em meio à paisagem bucólica houvesse, em alguns trechos,
grandes torres de energia elétrica. Cruzei apenas o pequeno e gracioso vilarejo
de Valtuille de Arriba, e antes que eu pudesse me cansar, avistei a cidade de
Villafranca del Bierzo encravada entre as montanhas. De longe já podia
vislumbrar suas várias torres de Igreja. À entrada da cidade, parei num
banquinho para comer umas frutas que tinha apanhado pela beira da estrada (as
macieiras estão carregadas) e um membrillo, uma fruta estranha, que parece uma
pera por fora, mas é mais dura e azedinha. As árvores de membrillo estão
carregadas e as há em abundância nesse trecho do Caminho. Emanam um perfume
adocicado que estava me deixando curiosíssima. No albergue de Pieros, me deram
um de presente.
Estava eu sentada num
banquinho, comendo minhas frutas, quando chegou Miguel, um espanhol que havia
dormido no mesmo quarto que eu, em Ponferrada. Ele tem um desses aplicativos do
Caminho e estava verificando as informações dos albergues. Eu havia mando minha
mochila para La Piedra, mas me convenci de que o Leo era uma melhor opção. Dito
e feito. De cara fiquei encantada com o albergue Leo. A casa, antiga, tem uma
fachada charmosíssima, branquinha, com varandas de madeira e flores. A madeira
do teto é aparente (grossas vigas que denunciam os muitos anos de idade). Nos
registramos e fomos buscar minha mochila no outro albergue.
Ângela, uma das filhas
de Dona Mercedez, nos colocou no que ela considera o quarto mais bonito do
albergue, onde dormia sua mãe. Uma gracinha! Tenho estado a tarde toda descansando,
de pé pra cima. Havia passado no mercado e fiz uma massa com cogumelos, e uma
salada, para o almoço. Miguel comeu comigo, na cozinha do albergue. E agora estou
aqui, nesse bem bom. Amanhã há de ser a mesma coisa. E aí veremos como
respondem os pés.
Por ora é isso,
Niquinha. Como diz o Zé Simão, agora, só amanhã.
Beijos mil!
Léia
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