quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 30


12/10/15

Amanheceu chovendo horrores! Tomei café com um senhor alemão muito simpático, que eu hevia conhecido em Mansilla, no albergue Gaia. Ele viu no celular que a previsão era de chuva pesada o dia todo. A perspectiva de caminhar com chuva pesada é sempre desalentadora. Não gostaria de passar pela experiência do primeiríssimo dia, em que cheguei a Roncesvalles ensopada, com as meias e botas completamente encharcados. Além disso, a lateral do meu calcanhar direito amanheceu incomodando bastante, e meio inchadinha. Resolvi, então, ficar mais um dia em León. Eu tinha comprado uma garrafa de água, que eu pus no congelador, e na noite anterior já tinha usado no pé direito, para tentar controlar a inflamação. Decidi que ficaria colocando essa compressa de gelo ao longo do dia e daria esse descanso pro calcanhar e por arco do pé também.
Porém, o mais importante é que senti no meu coração que eu deveria tirar o dia pra cuidar do espírito também. Lembra de Don Paco, o especialista em medicina chinesa que eu conheci em San Millán? Pois é. Lembrei-me que ele tinha dito que eu deveria trabalhar meus sentimentos de culpa, e que o Caminho não precisa ser feito com dor. Ele ainda me disse que independentemente do que me trouxe aqui, eu deveria fazer desse Caminho um processo de cura interior. Desde então eu sabia que precisava trabalhar questões internos, começando por tomar consciência das feridas e das culpas que eu carrego dentro de mim.
É estranho porque como a gente não reflete sobre muitas coisas que nos acontecem, desde a mais tenra infância, a gente nem sequer se dá conta das feridas da alma. A verdade, porém, é que todos nós temos as nossas feridas, provocados pelos outros e por nós mesmos. No tempo em que eu fiz terapia, lá em Natal, meu terapeuta me mandou escrever algumas cartas de perdão. É uma técnica que eu comecei a usar recentemente. Não as escrevi na época em que Ramos me disse para fazê-lo. Creio que na altura não consegui entender exatamente o que era esse processo. Seja porque não acreditei nesse caminho, seja porque não consegui vencer meus bloqueios, o fato é que não as escrevi. Comecei a fazer isso há alguns meses, quando estava na fazenda Hare Krishna.
Não sei se você fez isso na sua terapia, mas se não fez, quero lhe dizer que é um processo muito rico e libertador. Acho que a maior parte das pessoas não se dá conta de quanto sentimento de culpa carrega dentro de si. Até porque é meio impossível passar por essa vida sem ferir os outros, e esses outros são, geralmente, as pessoas que mais amamos. Do mesmo modo, é impossível passar pela vida sem ser ferido pelos outros. Isso sem falar nas complicações que a nossa mente inventa e que funcionam como um processo de auto-flagelação interior. Com as cartas de perdão você põe no papel essas feridas, pede perdão pelas que causou e perdoa as pessoas que lhe causaram feridas, muitas vezes sem nem se darem consciência disso. Você vai relembrando os eventos, os sentimentos, e nesse processo você vai tomando consciência das suas feridas e ao colocá-las no papel, você dá início ao processo de cura delas. O choro é, com frequência, inevitável. Também é parte do processo de cura, creio eu.
É claro que você não entrega as cartas aos destinatários, que podem ser outras pessoas ou você mesma. Depois de escrevê-las, você pode rasgá-las. Eu gosto de queimá-las e oferecê-las a Deus, pedindo que Ele leve embora todo o sentimento negativo posto ali no papel. Às vezes você sente que precisa escrever a mesma carta duas ou três vezes, até que você se sinta realmente curada dessas feridas. Não sei se qualquer pessoa pode fazer isso sozinha, sem o acompanhamento de um terapeuta. Eu faço porque sei que dou conta de lidar com minhas emoções.
Pois além de cuidar do pé, repousando e colocando gelo, cuidei também do espírito e da mente. Fiz longas meditações e escrevi duas cartas de perdão. Cheguei ao final do dia com uma sensação boa, de leveza e satisfação por estar fazendo a coisa certa. Enfrentar seus fantasmas interiores é duro, doloroso, mas ao mesmo tempo é realmente libertador. Meu propósito é seguir fazendo essa “limpeza” interior todos os dias. Espero chegar ao final do Caminho curada das minhas dores do corpo e do espírito. Tomara Deus que eu tenha disciplina suficiente.
Bom, o dia estava frio e chuvoso. Estava sozinha no quarto, pela manhã, meditando e escrevendo minhas cartas. Chegou, porém, a senhora da limpeza. Aproveitei esse intervalo para visitar o museu da Catedral, que já estava fechado na véspera. Totalmente dispensável. Nenhuma peça muito especial, que justifique o tempo, a energia e o dinheiro investidos. Não levei nem quinze minutos nessa visita.
Sabe uma coisa que me surpreendeu em León? Não tem desconto para peregrinos nas Igrejas e museus. Achei isso tão pouco simpático. Os descontos são bobos, um euro. Só que não é pelo valor, é o gesto. A gente se sente acolhido e valorizado, no esforço empreendido, quando chega num lugar e tem preço especial para os peregrinos. León não tem essa atitude acolhedora, o que muito me surpreendeu.
Do museu da Catedral me dirigi ao Museu Panteón, da Igreja de San Isidoro. Esse, sim, vale demais a visita. Tem alguns objetos preciosos, como um cálice de vinho do século X (se não me confundo), mas feito com duas ágatas datadas do século primeiro depois de Cristo. Ademais, a guia nos informou que essas ágatas compunham um outro cálice, que no século primeiro era venerado por cristãos como tendo sido o cálice da Santa Ceia. Pesquisadores espanhóis encontraram uns manuscritos na biblioteca do Cairo que mencionam esse cálice, que foi ofertado por um Califa a um rei de León. Claro que a alusão à Santa Ceia não tem nenhuma comprovação histórica (só o fato de que se pensava ter sido esse o objeto). Em todo caso, o cálice é lindo e não deixa de ser impressionante que as pedras tenham praticamente dois mil anos. As ágatas estão unidas por uma bela e delicada estrutura em ouro, com decoração de filigranas e pedras precisas, presente de Dona Urraca, filha de um dos mais importantes reis de Castilla y León (se eu guardei bem a informação).
O museu também tem um grande Galo de cobre, que ficava no alto da torre da Catedral, que foi presente de um outro califa, e tinha pólen datado do século sete. E a coisa mais preciosa é o Panteón, uma sala do Claustro de San Isidoro onde há vários túmulos de reis de Castilla y León, com uma decoração de teto e pinturas lindíssima. São pinturas na parede, datadas dos séculos XII ou XIII, de traços meio primitivos, com cenas bíblicas e um grande Cristo, Senhor do Universo, na abóbada central, e um calendário agrícola num dos arcos que enquadram essa abóbada. O conjunto é realmente impressionante, está muito bem preservado, e, segundo nossa simpática guia, é o maior conjunto de pinturas do gênero, conservadas em seu lugar original, de toda a Europa.
Saí do museu feliz por ter me dado ao trabalho de voltar a San Isidoro. Ainda entrei na Igreja, rezei um pouco e voltei ao albergue, para dar seguimento aos meus cuidados com o corpo e com o espírito. Já tarde da noite, eu estava escrevendo numa saletinha que tem na entrada dos dormitórios, quando chegaram uns senhores que vinham da rua. Eu perguntei se valia a pena o esforço de ir ver a Catedral iluminada, à noite. Eles me disseram que sim, e um deles, um espanhol chamado Nicolas, se ofereceu para me acompanhar. Pus um casaco e saí para dar um passeio até a Catedral. A noite estava fria, mas já não chovia mais. Eu tinha a esperança de que tivessem iluminado a Igreja por dentro, como eles costumam fazer no verão. Diz que dá um efeito lindo nos vitrais. Infelizmente, estamos no outono. Em todo caso, valeu o passeio. Bati um bom papo com Nicolás. Os bares estavam fechando e os últimos fregueses começavam a tomar o rumo de casa.
Sinto que foi um dia importante pra mim, em que dei início a um processo benéfico e transformador. Me falta agora, achar local e oportunidade para queimar as primeiras cartas que escrevi. Sei que tudo tem seu tempo. E esse virá em breve.
Beijos mil, Minha Amada Irmã!

Léia

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