12/10/15
Amanheceu chovendo
horrores! Tomei café com um senhor alemão muito simpático, que eu hevia conhecido
em Mansilla, no albergue Gaia. Ele viu no celular que a previsão era de chuva pesada
o dia todo. A perspectiva de caminhar com chuva pesada é sempre desalentadora.
Não gostaria de passar pela experiência do primeiríssimo dia, em que cheguei a
Roncesvalles ensopada, com as meias e botas completamente encharcados. Além disso,
a lateral do meu calcanhar direito amanheceu incomodando bastante, e meio
inchadinha. Resolvi, então, ficar mais um dia em León. Eu tinha comprado uma
garrafa de água, que eu pus no congelador, e na noite anterior já tinha usado
no pé direito, para tentar controlar a inflamação. Decidi que ficaria colocando
essa compressa de gelo ao longo do dia e daria esse descanso pro calcanhar e
por arco do pé também.
Porém, o mais
importante é que senti no meu coração que eu deveria tirar o dia pra cuidar do
espírito também. Lembra de Don Paco, o especialista em medicina chinesa que eu
conheci em San Millán? Pois é. Lembrei-me que ele tinha dito que eu deveria
trabalhar meus sentimentos de culpa, e que o Caminho não precisa ser feito com
dor. Ele ainda me disse que independentemente do que me trouxe aqui, eu deveria
fazer desse Caminho um processo de cura interior. Desde então eu sabia que
precisava trabalhar questões internos, começando por tomar consciência das
feridas e das culpas que eu carrego dentro de mim.
É estranho porque como
a gente não reflete sobre muitas coisas que nos acontecem, desde a mais tenra
infância, a gente nem sequer se dá conta das feridas da alma. A verdade, porém,
é que todos nós temos as nossas feridas, provocados pelos outros e por nós
mesmos. No tempo em que eu fiz terapia, lá em Natal, meu terapeuta me mandou
escrever algumas cartas de perdão. É uma técnica que eu comecei a usar
recentemente. Não as escrevi na época em que Ramos me disse para fazê-lo. Creio
que na altura não consegui entender exatamente o que era esse processo. Seja
porque não acreditei nesse caminho, seja porque não consegui vencer meus
bloqueios, o fato é que não as escrevi. Comecei a fazer isso há alguns meses,
quando estava na fazenda Hare Krishna.
Não sei se você fez
isso na sua terapia, mas se não fez, quero lhe dizer que é um processo muito
rico e libertador. Acho que a maior parte das pessoas não se dá conta de quanto
sentimento de culpa carrega dentro de si. Até porque é meio impossível passar
por essa vida sem ferir os outros, e esses outros são, geralmente, as pessoas
que mais amamos. Do mesmo modo, é impossível passar pela vida sem ser ferido
pelos outros. Isso sem falar nas complicações que a nossa mente inventa e que
funcionam como um processo de auto-flagelação interior. Com as cartas de perdão
você põe no papel essas feridas, pede perdão pelas que causou e perdoa as
pessoas que lhe causaram feridas, muitas vezes sem nem se darem consciência
disso. Você vai relembrando os eventos, os sentimentos, e nesse processo você
vai tomando consciência das suas feridas e ao colocá-las no papel, você dá
início ao processo de cura delas. O choro é, com frequência, inevitável. Também
é parte do processo de cura, creio eu.
É claro que você não
entrega as cartas aos destinatários, que podem ser outras pessoas ou você
mesma. Depois de escrevê-las, você pode rasgá-las. Eu gosto de queimá-las e oferecê-las
a Deus, pedindo que Ele leve embora todo o sentimento negativo posto ali no
papel. Às vezes você sente que precisa escrever a mesma carta duas ou três
vezes, até que você se sinta realmente curada dessas feridas. Não sei se
qualquer pessoa pode fazer isso sozinha, sem o acompanhamento de um terapeuta.
Eu faço porque sei que dou conta de lidar com minhas emoções.
Pois além de cuidar do
pé, repousando e colocando gelo, cuidei também do espírito e da mente. Fiz
longas meditações e escrevi duas cartas de perdão. Cheguei ao final do dia com
uma sensação boa, de leveza e satisfação por estar fazendo a coisa certa.
Enfrentar seus fantasmas interiores é duro, doloroso, mas ao mesmo tempo é
realmente libertador. Meu propósito é seguir fazendo essa “limpeza” interior
todos os dias. Espero chegar ao final do Caminho curada das minhas dores do
corpo e do espírito. Tomara Deus que eu tenha disciplina suficiente.
Bom, o dia estava frio
e chuvoso. Estava sozinha no quarto, pela manhã, meditando e escrevendo minhas
cartas. Chegou, porém, a senhora da limpeza. Aproveitei esse intervalo para
visitar o museu da Catedral, que já estava fechado na véspera. Totalmente
dispensável. Nenhuma peça muito especial, que justifique o tempo, a energia e o
dinheiro investidos. Não levei nem quinze minutos nessa visita.
Sabe uma coisa que me
surpreendeu em León? Não tem desconto para peregrinos nas Igrejas e museus.
Achei isso tão pouco simpático. Os descontos são bobos, um euro. Só que não é
pelo valor, é o gesto. A gente se sente acolhido e valorizado, no esforço
empreendido, quando chega num lugar e tem preço especial para os peregrinos.
León não tem essa atitude acolhedora, o que muito me surpreendeu.
Do museu da Catedral
me dirigi ao Museu Panteón, da Igreja de San Isidoro. Esse, sim, vale demais a
visita. Tem alguns objetos preciosos, como um cálice de vinho do século X (se
não me confundo), mas feito com duas ágatas datadas do século primeiro depois
de Cristo. Ademais, a guia nos informou que essas ágatas compunham um outro
cálice, que no século primeiro era venerado por cristãos como tendo sido o
cálice da Santa Ceia. Pesquisadores espanhóis encontraram uns manuscritos na biblioteca
do Cairo que mencionam esse cálice, que foi ofertado por um Califa a um rei de
León. Claro que a alusão à Santa Ceia não tem nenhuma comprovação histórica (só
o fato de que se pensava ter sido esse o objeto). Em todo caso, o cálice é
lindo e não deixa de ser impressionante que as pedras tenham praticamente dois
mil anos. As ágatas estão unidas por uma bela e delicada estrutura em ouro, com
decoração de filigranas e pedras precisas, presente de Dona Urraca, filha de um
dos mais importantes reis de Castilla y León (se eu guardei bem a informação).
O museu também tem um grande
Galo de cobre, que ficava no alto da torre da Catedral, que foi presente de um
outro califa, e tinha pólen datado do século sete. E a coisa mais preciosa é o
Panteón, uma sala do Claustro de San Isidoro onde há vários túmulos de reis de
Castilla y León, com uma decoração de teto e pinturas lindíssima. São pinturas
na parede, datadas dos séculos XII ou XIII, de traços meio primitivos, com
cenas bíblicas e um grande Cristo, Senhor do Universo, na abóbada central, e um
calendário agrícola num dos arcos que enquadram essa abóbada. O conjunto é
realmente impressionante, está muito bem preservado, e, segundo nossa simpática
guia, é o maior conjunto de pinturas do gênero, conservadas em seu lugar
original, de toda a Europa.
Saí do museu feliz por
ter me dado ao trabalho de voltar a San Isidoro. Ainda entrei na Igreja, rezei
um pouco e voltei ao albergue, para dar seguimento aos meus cuidados com o
corpo e com o espírito. Já tarde da noite, eu estava escrevendo numa saletinha
que tem na entrada dos dormitórios, quando chegaram uns senhores que vinham da
rua. Eu perguntei se valia a pena o esforço de ir ver a Catedral iluminada, à
noite. Eles me disseram que sim, e um deles, um espanhol chamado Nicolas, se
ofereceu para me acompanhar. Pus um casaco e saí para dar um passeio até a
Catedral. A noite estava fria, mas já não chovia mais. Eu tinha a esperança de
que tivessem iluminado a Igreja por dentro, como eles costumam fazer no verão.
Diz que dá um efeito lindo nos vitrais. Infelizmente, estamos no outono. Em
todo caso, valeu o passeio. Bati um bom papo com Nicolás. Os bares estavam fechando
e os últimos fregueses começavam a tomar o rumo de casa.
Sinto que foi um dia
importante pra mim, em que dei início a um processo benéfico e transformador.
Me falta agora, achar local e oportunidade para queimar as primeiras cartas que
escrevi. Sei que tudo tem seu tempo. E esse virá em breve.
Beijos mil, Minha
Amada Irmã!
Léia
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