07/10/15
Boa Noite, Minha Irmã!
Já passei da metade do
Caminho!!! Na verdade, já andei 415,6 kms e me faltam 347,4 kms. Se der tudo
certo, em 20 dias estarei chegando a Santiago de Compostela. Como pretendo
passar um dia em León, tenho mais 19 dias de caminhada pela frente (alguns
deles bem leves, outros mais puxados). Até aqui, caminhei 24 dias. Bem, como
referência para a quilometragem estou usando um guia do Caminho Francês, que
acabei comprando quando estava saindo de Carrión de los Condes. Até aqui eu
vinha me orientando por uma xerox que fiz de uns papéis que Tom e Norma pegaram
em Saint Jean Pied de Port (eu não peguei porque como achei albergue logo e a hospitalera tinha a credencial do
peregrino, achei que não valia a pena ficar numa fila considerável à porta da
Oficine de acolhida). Eu estava vendo os livrinhos de alguns peregrinos, com
mapas, informações bem mais completas sobre albergues, então, acabei adquirindo
um guia. Sempre posso emprestar pra quem for fazer o Caminho no futuro.
As informações sobre
as distâncias, às vezes, são conflituosas. Há divergências entre as fontes.
Ontem mesmo, em Sahagún recebi um certificado de que havia passado pelo Centro Geográfico do Caminho Francês
(considerando Roncesvalles como ponto de partida). A matemática não bate muito
com o cálculo que pus acima (do meu guia). Em todo caso, de certeza já passei
da metade! O que me deixa muito feliz e animada. Já posso começar uma contagem
regressiva de dias, rs, rs, rs.
Bom, vou te contar
como foi o dia de ontem. Eu tinha dormido em Calzadilla de la Cueza na noite
anterior. Dormi super bem no albergue municipal. Estava no beliche inferior, e
o cobertor era bem quentinho. Ainda assim, acordei cedo, até antes da galera
(acho que tô me habituando a acordar cedo). Me organizei e saí com o dia ainda
clareando, pois seria um dia mais comprido de caminhada (22 kms). Saí toda
paramentada, com capa, jaqueta e calça impermeáveis, porque o tempo continuava
chuvoso e com muito vento, embora menos que no dia anterior. Passei o dia todo
tirando e pondo a jaqueta e a capa de chuva (que esquentam muito).
Logo após a saída de
Calzadilla, o Caminho segue junto a uma movimentada rodovia. Felizmente,
arbustos relativamente altos encobrem a rodovia e como o lado esquerdo está bem
arborizado, até que a vista era agradável. O incômodo vinha mesmo do barulho
dos carros. Cruzei dois pequeninos povoados, Ledigos e Terradillos de los
Templarios, cujas Igrejas estavam fechadas. Parei numa área de descanso dessa
última cidade e fiz um pequeno lanche (banana e nozes).
Após Terradillos o
Caminho se afasta da rodovia e segue em meio a campos de cultivo. Pois foi
justamente nesse trecho que perdi a bateria da minha máquina fotográfica. Fui
tirar uma foto, e nada. Me dei conta de que o compartimento estava aberto e a
bateria tinha caído. Eu estava a uns dois quilômetros do povoado. Ainda podia
ver a torre da Igreja por trás de uma pequena colina. Resolvi voltar para
tentar encontrá-la pelo chão. Foi então que pude perceber como se sente quem
está caminhando ao contrário de todo mundo. É engraçado porque todo mundo olha
pra você. Alguns lhe perguntam se você está voltando para casa. Pois é. Tem
gente que faz o caminho de volta de Santiago! E eu sempre olhei para essa
galera com um misto de estranheza e admiração. Bom, andei dois quilômetros para
trás, até a exata saída do povoado, onde eu sabia que tinha tirado a última
foto, e nada. O jeito foi me conformar, caminhar de novo os dois quilômetros
para frente e tirar fotos precárias com meu patético celular (a tela é muito
escura e com frequência as fotos são uma loteria, pois eu simplesmente não
consigo ver o que estou enquadrando).
Caminhei até
Moratinos. Outro povoado minúsculo, porém, com uma curiosidade. Há umas caves
seculares, instaladas numa espécie de morro feito de argila. Não se sabe
explicar com certeza como porque séculos atrás as pessoas fizeram aquele morro
de argila, mas o fato é que ele se mostrou resistente e a galera instalou umas
caves, com portas e “chaminés” (respiradouros, na verdade). E parece que foram
as caves que estimularam a produção de vinho caseiro na região, não o
contrário. Quase toda família da localidade chegou a ter sua cave nesse
morrinho. Hoje, algumas estão abandonadas, outras continuam em plena atividade.
Numa das pontas do morro tem um restaurante, que adentra por essa estrutura de
barro. Como já eram duas da tarde e eu ainda tinha muito chão pela frente,
resolvi almoçar nesse lugar pitoresco. Pedi o menu do peregrino. Comi uma
gostosa e substanciosa sopa de feijão branco, um franguinho guisado caseiro e
uma torta de queijo e amora bem gostosinha.
Alimentada, retomei a
estrada. Continuei caminhando em meio a campos de cultivo (desnudos e sempre
ocre), passei por mais um pequeno povoado (San Nicolás del Real Camino) com sua
Igrejinha fechada, voltei a caminhar junto de uma grande rodovia, até que
cheguei ao pé de um viaduto, onde havia um marco de pedra indicando o fim da
Província de Palencia. Após contornar esse viaduto, avistei uma relativamente
grande mancha urbana. Era Sahagun. Dei Graças a Deus, porque já estava bastante
cansada e com a bolha do calcanhar incomodando muito. Mas.... de repente, em
vez de seguir reto, em direção à cidade que estava bem ali na minha frente, o
Caminho dobrou à direita, cruzou a rodovia e seguiu pelo meio dos campos. Nem
acreditei. Já estava pedindo arrego, quando entendi o porquê da volta. Ao final
de uma alameda de árvores altas e magras, avistei uma pontezinha com uma
Igreja. Uma gracinha de cenário. E um pouco depois da Igrejinha (fechada!), uma
espécie de portal, com uma estátua de cada lado, anunciava que o peregrino
havia chegado ao centro geográfico do Caminho de Santiago. Engraçado porque eu
não vinha fazendo essa conta, embora achasse que estava pelo meio, em função
dos dias caminhados e dos que ainda havia por caminhar. Fiquei muito feliz com
a confirmação.
Os últimos
quilômetros, até o centro da cidade foram duros. O cansaço parece que aumenta
porque seu corpo sabe que está chegando. Na realidade, com o episódio da
bateria da máquina, acabei caminhando uns 26 kms ontem. E o Mosteiro das Irmãs
Beneditinas, para onde eu havia mandado minha mochila, ficava na saída da
cidade!!!
Eram umas cinco e meia
da tarde quando parei nas Informações para saber como chegar ao meu alojamento.
Descobri que a Igreja La Peregrina fica aberta até as 19 horas e dá um
certificado de que você chegou ao centro geográfico do Caminho. Ela fica depois
do Mosteiro de Santa Cruz, onde eu devia encontrar minha mochila e ver se ainda
tinha lugar (Norma e Tom ficaram lá e me recomendaram fortemente que eu
dormisse ali, porque foram muito bem tratados). Resolvi seguir direto para La
Peregrina e deixar minha hospedagem pra resolver depois. No caminho, passei por
duas belas Igrejas (San Lorenzo e San Tirso), com feições arquitetônicas
distintas das que vinha observando. Em lugar de grandes pedras, as paredes são
feitas de pequenos tijolos. E ambas têm formas arredondadas nas embaixo e altas
torres de sinos, quadrangulares, de três ou quatro andares. A Igreja de San
Lorenzo é maior e tem arcadas numa das fachadas externas. As duas estavam
fechadas e só pude contemplar o exterior mesmo.
Por trás do Mosteiro
das Beneditinas, uma alta torre de relógio se ergue ao lado das ruínas de
alguma antiga Igreja românica. E ao final dessas ruínas, por sobre uma rua
normal, um belo arco esculpido em pedra branca. Segui caminhando até a saída da
cidade e subi uma colina onde se encontra a Igreja de um antigo convento de São
Francisco (construído entre 1260 e 1358). O exterior do prédio é feito dos
mesmos tijolinhos que acabei de mencionar. Só que há detalhes mouriscos (a
expressão dos panfletos é modéjar),
como os arcos com aquela forma típica de mesquita. Entrei, paguei a entrada do
museu e peguei meu certificado (com meu nome!!!) do centro geográfico e comecei
a visita.
Deslumbrante e
comovente! Não posso dar outra definição para o que vi. Esse antigo convento
estava abandonado e passou por um processo de restauração em que se descobriram
elementos originais de sua construção, nesse estilo modéjar. O que pode ser preservado tal como era no século XIII está
à mostra, e o resto da edificação foi coberta com argamassa e pintada de branco
(estou falando do interior). O resultado é fantástico, porque valoriza, chama a
atenção para esses traços originais, para os arcos, as pinturas em formatos
geométricos, os alto-relevos rendilhados. Tem uma capela linda, com alto-relevos de um detalhamento incrível. A
parede da nave principal, toda em tijolinhos, revela as janelas trabalhadas. Como
decoração adicional, apenas uma impressionante imagem de Nossa Senhora
Peregrina, do século XVIII. Em meio a objetos de arte sacra seculares,
esculturas contemporâneas bem interessantes. O antigo coro abriga uma
biblioteca sobre o Caminho de Santiago. Você sabe como eu sou cri-cri com arte
contemporânea, mas posso lhe dizer que em La Peregrina eles conseguiram
harmonizar o antigo e o contemporâneo com muita sensibilidade. Amei. Saí de lá
comovida.
Já eram sete horas
quando saí do museu e corri até o Mosteiro das Beneditinas. A porta principal
estava fechada. Bati na porta e nada. Pensei: Me lasquei. Vou ter de encontrar um lugar pra dormir e me virar sem
roupa, sem acessórios de toilate... Caminhei um pouco pra esquerda e vi uma
porta aberta. Graças a Deus. Entrei.
Era a Igreja do Mosteiro. As Irmãs estavam fazendo uma espécie de celebração
(não era missa porque não tinha padre). Alguns poucos peregrinos estavam lá.
Resolvi ficar e falar com elas quando terminasse a celebração. As Irmãs
cantaram e fizeram leituras do Evangelho. Uma delas tocava um órgão. Quando
terminou a cantoria, uma das Irmãs se levantou e pediu aos peregrinos que se
aproximassem do altar. Fizemos dois semi-círculos e ela leu uma oração de
bênção aos peregrinos. A oração era tão doce! Falava em acolhida, abrigo,
solidariedade. Fiquei super emocionada. Comecei a chorar. Me senti tão
amparada, acho...
(Señor Jesucristo, que sacaste a tu servo Abraham de la ciudad de Ur de
los caldeos, guardándole em todas sus peregrinaciones, y que fuiste el guia del
Pueblo hebreo a través del desierto, te pedimos te dignes bendecir a este hijo
tuyo que por amor a tu nombre peregrina a Santiago de Compostela. Sé para él
compañero en la marcha, guia em las encrucijadas, albergue en el caminho,
sombra en el calor, luz en la oscuridad, Consuelo em sus desalentos y firmeza em
sus propósitos: para que por tu guia llegue incólume al término de su caminho,
y enriquecido de gracia y de virtudes vuelva ileso a su casa, lleno de
saludables virtudes.)
Uma vez que tudo
terminou, me dirigi à Irmã, falei da minha mochila e da porta fechada. Ela me
orientou a ir para uma lateral do Mosteiro. Ao chegar lá, me deparei com uma
porta aberta! Entrei, falei com a pessoa responsável, peguei minha mochila e
fui para o meu quarto. O quarto era muito simples, eu fiquei na cama de cima,
só que não tinha escadinha no beliche, o colchão era velho. Na hora do banho:
água fria. Esperei vários minutos com aa água correndo e ela sempre fria. Eu
estava tão cansada. Já eram mais de oito da noite, com frio... chega me deu um
desânimo. Eu pensei: porque raios Norma e Tom me recomendaram tanto ficar aqui!
(amanhã, quando eu te contar sobre o dia de hoje, você vai ver que eu tinha
mesmo de dormir ali). Comecei a tomar um banho de gato, quando finalmente a
água começou a esquentar. Consegui terminar meu banho com água quente. Fiquei
tão agradecida!
Após o banho, saí do
quarto para poder sentar numa cadeira e cuidar das minhas bolhas. Estava
fazendo isso no corredor, quando chegou um jovem coreano que, ao me ver lidando
com minhas bolhas, se prontificou a me ajudar. Ele me ajudou a furar a bolha
com agulha esterilizada e me deu um adesivo que seria bom para secar a bolha. Depois
de feito o curativo, fomos a uma saleta para fazer um lanche, pois nem eu nem
ele jantamos no Mosteiro. Batemos um bom papo enquanto comíamos. Ele é um rapaz
muito doce.
A essa altura eu já
estava exausta. Não tive forças para tentar escrever nada. Fui pro quarto. Meus
dois companheiros de quarto já estavam deitados. Apaguei as luzes e me vali da
lanterninha de cabeça que comprei em Carrión. Fazia uma noite beeeem fria.
Ainda bem que tinha cobertor. De todo modo, o colchão era velho e tinha uma
baixa no meio. Não seria uma grande noite de sono, mas, enfim. A emoção da
bênção e a visita a La Peregrina ainda repercutiam no meu espírito. Portanto,
fui dormir em paz.
Agora, estou aqui em
Burgo Ranero, num albergue municipal. Todos já se recolheram e eu preciso ir
também. Pra te adiantar, devo dizer que a manhã de hoje foi muito especial.
Até amanhã, então,
Niquinha!
Beijos mil,
Léia
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