quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 25


07/10/15

Boa Noite, Minha Irmã!
Já passei da metade do Caminho!!! Na verdade, já andei 415,6 kms e me faltam 347,4 kms. Se der tudo certo, em 20 dias estarei chegando a Santiago de Compostela. Como pretendo passar um dia em León, tenho mais 19 dias de caminhada pela frente (alguns deles bem leves, outros mais puxados). Até aqui, caminhei 24 dias. Bem, como referência para a quilometragem estou usando um guia do Caminho Francês, que acabei comprando quando estava saindo de Carrión de los Condes. Até aqui eu vinha me orientando por uma xerox que fiz de uns papéis que Tom e Norma pegaram em Saint Jean Pied de Port (eu não peguei porque como achei albergue logo e a hospitalera tinha a credencial do peregrino, achei que não valia a pena ficar numa fila considerável à porta da Oficine de acolhida). Eu estava vendo os livrinhos de alguns peregrinos, com mapas, informações bem mais completas sobre albergues, então, acabei adquirindo um guia. Sempre posso emprestar pra quem for fazer o Caminho no futuro.
As informações sobre as distâncias, às vezes, são conflituosas. Há divergências entre as fontes. Ontem mesmo, em Sahagún recebi um certificado de que havia passado pelo Centro Geográfico do Caminho Francês (considerando Roncesvalles como ponto de partida). A matemática não bate muito com o cálculo que pus acima (do meu guia). Em todo caso, de certeza já passei da metade! O que me deixa muito feliz e animada. Já posso começar uma contagem regressiva de dias, rs, rs, rs.
Bom, vou te contar como foi o dia de ontem. Eu tinha dormido em Calzadilla de la Cueza na noite anterior. Dormi super bem no albergue municipal. Estava no beliche inferior, e o cobertor era bem quentinho. Ainda assim, acordei cedo, até antes da galera (acho que tô me habituando a acordar cedo). Me organizei e saí com o dia ainda clareando, pois seria um dia mais comprido de caminhada (22 kms). Saí toda paramentada, com capa, jaqueta e calça impermeáveis, porque o tempo continuava chuvoso e com muito vento, embora menos que no dia anterior. Passei o dia todo tirando e pondo a jaqueta e a capa de chuva (que esquentam muito).
Logo após a saída de Calzadilla, o Caminho segue junto a uma movimentada rodovia. Felizmente, arbustos relativamente altos encobrem a rodovia e como o lado esquerdo está bem arborizado, até que a vista era agradável. O incômodo vinha mesmo do barulho dos carros. Cruzei dois pequeninos povoados, Ledigos e Terradillos de los Templarios, cujas Igrejas estavam fechadas. Parei numa área de descanso dessa última cidade e fiz um pequeno lanche (banana e nozes).
Após Terradillos o Caminho se afasta da rodovia e segue em meio a campos de cultivo. Pois foi justamente nesse trecho que perdi a bateria da minha máquina fotográfica. Fui tirar uma foto, e nada. Me dei conta de que o compartimento estava aberto e a bateria tinha caído. Eu estava a uns dois quilômetros do povoado. Ainda podia ver a torre da Igreja por trás de uma pequena colina. Resolvi voltar para tentar encontrá-la pelo chão. Foi então que pude perceber como se sente quem está caminhando ao contrário de todo mundo. É engraçado porque todo mundo olha pra você. Alguns lhe perguntam se você está voltando para casa. Pois é. Tem gente que faz o caminho de volta de Santiago! E eu sempre olhei para essa galera com um misto de estranheza e admiração. Bom, andei dois quilômetros para trás, até a exata saída do povoado, onde eu sabia que tinha tirado a última foto, e nada. O jeito foi me conformar, caminhar de novo os dois quilômetros para frente e tirar fotos precárias com meu patético celular (a tela é muito escura e com frequência as fotos são uma loteria, pois eu simplesmente não consigo ver o que estou enquadrando).
Caminhei até Moratinos. Outro povoado minúsculo, porém, com uma curiosidade. Há umas caves seculares, instaladas numa espécie de morro feito de argila. Não se sabe explicar com certeza como porque séculos atrás as pessoas fizeram aquele morro de argila, mas o fato é que ele se mostrou resistente e a galera instalou umas caves, com portas e “chaminés” (respiradouros, na verdade). E parece que foram as caves que estimularam a produção de vinho caseiro na região, não o contrário. Quase toda família da localidade chegou a ter sua cave nesse morrinho. Hoje, algumas estão abandonadas, outras continuam em plena atividade. Numa das pontas do morro tem um restaurante, que adentra por essa estrutura de barro. Como já eram duas da tarde e eu ainda tinha muito chão pela frente, resolvi almoçar nesse lugar pitoresco. Pedi o menu do peregrino. Comi uma gostosa e substanciosa sopa de feijão branco, um franguinho guisado caseiro e uma torta de queijo e amora bem gostosinha.

Alimentada, retomei a estrada. Continuei caminhando em meio a campos de cultivo (desnudos e sempre ocre), passei por mais um pequeno povoado (San Nicolás del Real Camino) com sua Igrejinha fechada, voltei a caminhar junto de uma grande rodovia, até que cheguei ao pé de um viaduto, onde havia um marco de pedra indicando o fim da Província de Palencia. Após contornar esse viaduto, avistei uma relativamente grande mancha urbana. Era Sahagun. Dei Graças a Deus, porque já estava bastante cansada e com a bolha do calcanhar incomodando muito. Mas.... de repente, em vez de seguir reto, em direção à cidade que estava bem ali na minha frente, o Caminho dobrou à direita, cruzou a rodovia e seguiu pelo meio dos campos. Nem acreditei. Já estava pedindo arrego, quando entendi o porquê da volta. Ao final de uma alameda de árvores altas e magras, avistei uma pontezinha com uma Igreja. Uma gracinha de cenário. E um pouco depois da Igrejinha (fechada!), uma espécie de portal, com uma estátua de cada lado, anunciava que o peregrino havia chegado ao centro geográfico do Caminho de Santiago. Engraçado porque eu não vinha fazendo essa conta, embora achasse que estava pelo meio, em função dos dias caminhados e dos que ainda havia por caminhar. Fiquei muito feliz com a confirmação.
Os últimos quilômetros, até o centro da cidade foram duros. O cansaço parece que aumenta porque seu corpo sabe que está chegando. Na realidade, com o episódio da bateria da máquina, acabei caminhando uns 26 kms ontem. E o Mosteiro das Irmãs Beneditinas, para onde eu havia mandado minha mochila, ficava na saída da cidade!!!
Eram umas cinco e meia da tarde quando parei nas Informações para saber como chegar ao meu alojamento. Descobri que a Igreja La Peregrina fica aberta até as 19 horas e dá um certificado de que você chegou ao centro geográfico do Caminho. Ela fica depois do Mosteiro de Santa Cruz, onde eu devia encontrar minha mochila e ver se ainda tinha lugar (Norma e Tom ficaram lá e me recomendaram fortemente que eu dormisse ali, porque foram muito bem tratados). Resolvi seguir direto para La Peregrina e deixar minha hospedagem pra resolver depois. No caminho, passei por duas belas Igrejas (San Lorenzo e San Tirso), com feições arquitetônicas distintas das que vinha observando. Em lugar de grandes pedras, as paredes são feitas de pequenos tijolos. E ambas têm formas arredondadas nas embaixo e altas torres de sinos, quadrangulares, de três ou quatro andares. A Igreja de San Lorenzo é maior e tem arcadas numa das fachadas externas. As duas estavam fechadas e só pude contemplar o exterior mesmo.
Por trás do Mosteiro das Beneditinas, uma alta torre de relógio se ergue ao lado das ruínas de alguma antiga Igreja românica. E ao final dessas ruínas, por sobre uma rua normal, um belo arco esculpido em pedra branca. Segui caminhando até a saída da cidade e subi uma colina onde se encontra a Igreja de um antigo convento de São Francisco (construído entre 1260 e 1358). O exterior do prédio é feito dos mesmos tijolinhos que acabei de mencionar. Só que há detalhes mouriscos (a expressão dos panfletos é modéjar), como os arcos com aquela forma típica de mesquita. Entrei, paguei a entrada do museu e peguei meu certificado (com meu nome!!!) do centro geográfico e comecei a visita.
Deslumbrante e comovente! Não posso dar outra definição para o que vi. Esse antigo convento estava abandonado e passou por um processo de restauração em que se descobriram elementos originais de sua construção, nesse estilo modéjar. O que pode ser preservado tal como era no século XIII está à mostra, e o resto da edificação foi coberta com argamassa e pintada de branco (estou falando do interior). O resultado é fantástico, porque valoriza, chama a atenção para esses traços originais, para os arcos, as pinturas em formatos geométricos, os alto-relevos rendilhados. Tem uma capela linda, com alto-relevos de um detalhamento incrível. A parede da nave principal, toda em tijolinhos, revela as janelas trabalhadas. Como decoração adicional, apenas uma impressionante imagem de Nossa Senhora Peregrina, do século XVIII. Em meio a objetos de arte sacra seculares, esculturas contemporâneas bem interessantes. O antigo coro abriga uma biblioteca sobre o Caminho de Santiago. Você sabe como eu sou cri-cri com arte contemporânea, mas posso lhe dizer que em La Peregrina eles conseguiram harmonizar o antigo e o contemporâneo com muita sensibilidade. Amei. Saí de lá comovida.
Já eram sete horas quando saí do museu e corri até o Mosteiro das Beneditinas. A porta principal estava fechada. Bati na porta e nada. Pensei: Me lasquei. Vou ter de encontrar um lugar pra dormir e me virar sem roupa, sem acessórios de toilate... Caminhei um pouco pra esquerda e vi uma porta aberta. Graças a Deus. Entrei. Era a Igreja do Mosteiro. As Irmãs estavam fazendo uma espécie de celebração (não era missa porque não tinha padre). Alguns poucos peregrinos estavam lá. Resolvi ficar e falar com elas quando terminasse a celebração. As Irmãs cantaram e fizeram leituras do Evangelho. Uma delas tocava um órgão. Quando terminou a cantoria, uma das Irmãs se levantou e pediu aos peregrinos que se aproximassem do altar. Fizemos dois semi-círculos e ela leu uma oração de bênção aos peregrinos. A oração era tão doce! Falava em acolhida, abrigo, solidariedade. Fiquei super emocionada. Comecei a chorar. Me senti tão amparada, acho...
(Señor Jesucristo, que sacaste a tu servo Abraham de la ciudad de Ur de los caldeos, guardándole em todas sus peregrinaciones, y que fuiste el guia del Pueblo hebreo a través del desierto, te pedimos te dignes bendecir a este hijo tuyo que por amor a tu nombre peregrina a Santiago de Compostela. Sé para él compañero en la marcha, guia em las encrucijadas, albergue en el caminho, sombra en el calor, luz en la oscuridad, Consuelo em sus desalentos y firmeza em sus propósitos: para que por tu guia llegue incólume al término de su caminho, y enriquecido de gracia y de virtudes vuelva ileso a su casa, lleno de saludables virtudes.)
Uma vez que tudo terminou, me dirigi à Irmã, falei da minha mochila e da porta fechada. Ela me orientou a ir para uma lateral do Mosteiro. Ao chegar lá, me deparei com uma porta aberta! Entrei, falei com a pessoa responsável, peguei minha mochila e fui para o meu quarto. O quarto era muito simples, eu fiquei na cama de cima, só que não tinha escadinha no beliche, o colchão era velho. Na hora do banho: água fria. Esperei vários minutos com aa água correndo e ela sempre fria. Eu estava tão cansada. Já eram mais de oito da noite, com frio... chega me deu um desânimo. Eu pensei: porque raios Norma e Tom me recomendaram tanto ficar aqui! (amanhã, quando eu te contar sobre o dia de hoje, você vai ver que eu tinha mesmo de dormir ali). Comecei a tomar um banho de gato, quando finalmente a água começou a esquentar. Consegui terminar meu banho com água quente. Fiquei tão agradecida!
Após o banho, saí do quarto para poder sentar numa cadeira e cuidar das minhas bolhas. Estava fazendo isso no corredor, quando chegou um jovem coreano que, ao me ver lidando com minhas bolhas, se prontificou a me ajudar. Ele me ajudou a furar a bolha com agulha esterilizada e me deu um adesivo que seria bom para secar a bolha. Depois de feito o curativo, fomos a uma saleta para fazer um lanche, pois nem eu nem ele jantamos no Mosteiro. Batemos um bom papo enquanto comíamos. Ele é um rapaz muito doce.
A essa altura eu já estava exausta. Não tive forças para tentar escrever nada. Fui pro quarto. Meus dois companheiros de quarto já estavam deitados. Apaguei as luzes e me vali da lanterninha de cabeça que comprei em Carrión. Fazia uma noite beeeem fria. Ainda bem que tinha cobertor. De todo modo, o colchão era velho e tinha uma baixa no meio. Não seria uma grande noite de sono, mas, enfim. A emoção da bênção e a visita a La Peregrina ainda repercutiam no meu espírito. Portanto, fui dormir em paz.
Agora, estou aqui em Burgo Ranero, num albergue municipal. Todos já se recolheram e eu preciso ir também. Pra te adiantar, devo dizer que a manhã de hoje foi muito especial.
Até amanhã, então, Niquinha!
Beijos mil,

Léia

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