11/10/15
Dia de retomar a
caminhada. Acordei bem cedinho, para aproveitar a boa conexão de internet do
Albergue Gaia e postar as fotos do Caminho no meu Facebook. Como eu te disse,
fiz de tudo para me entender com o tal do Picassa, mas não deu certo. Nem gosto
muito de postar fotos no Facebook, mas foi o jeito. Ou era assim, ou vocês não
poderiam ver as fotos de jeito nenhum. Vê se usa o Facebook de Quel para você e
mamãe darem uma olhada, por favor.
Tomei café no
albergue, com um casal canadense e uma californiana, todos de meia idade,
extremamente simpáticos. A senhora canadense é enfermeira e a americana é
massagista. Quando eu estava pondo meus esparadrapos e meus cremes no pé, elas
se aproximaram e terminaram me ajudando, todas duas. Vê a sorte. Ganhei
massagem no pé e uma dica importante da enfermeira (não gravei os nomes
delas!). Ela me disse que a inflamação no arco do pé geralmente acontece porque
as pessoas querem dar passadas muito largas, e acabam estressando as estruturas
do arco. Me aconselhou a caminhar com passos mais curtos. E assim eu fiz.
Passos mais curtos significam uma caminhada mais lenta, o que representa um
exercício extra de paciência. Engraçado como o Caminho está o tempo todo me
pedindo paciência. Tô tentando obedecer! Quero aproveitar para fazer o registro
de que eu não sou a única doida a falar dO Caminho na Terceira Pessoa. Quase
todos os peregrinos falam assim. Na verdade, acho que todos os que entram
verdadeiramente no espírito dO Caminho, acabam se referindo a ele como se fosse
uma entidade, com uma natureza e características particulares.
Saí de Mansilla de Las
Mulas com chuva. Choveu constantemente a primeira metade da jornada toda, mas
não era uma chuva pesada, então, deu para administrar com a capa de chuva.
Atravessei a pontezinha na saída de Mansilla e parei para contemplar a muralha
do lado de fora. Fiquei só imaginando como era a chegada dos viajantes a essa
cidade murada, vários séculos atrás... Da ponte a paisagem é bem bonita, com as
muralhas à frente e o rio todo margeado por altas árvores. Também, foi só eu me
afastar um pouquinho de Mansilla pra paisagem ficar sem graça. A maior parte do
trajeto entre Mansilla e León segue junto a uma movimentada rodovia. Um que
outro trechinho é mais simpático, com árvores e arbustos altos, dos dois lados,
o que não apenas forma uma alamedazinha, como encobre a feiúra da rodovia. No
geral, porém, é uma caminhada pouco atrativa.
Estava eu andando num
trecho feioso, bem rente à rodovia, quando avistei uma casa alta, com uma placa
que dizia: Albergue Filosofia. O nome já me chamou a atenção. Quando eu passo
na porta, está tocando uma valsa, de Strauss. Obviamente que eu não resisti e
entrei para tomar um chá. O albergue/bar era mesmo meio inusitado, com sofás e
poltronas, além de mesas e cadeiras. Tudo muito simples, porém se via que o
dono (um sujeito também aparentemente muito simplório) tinha se esmerado para
dar um ar de sofisticação ao seu bar. Tomei meu chá ouvindo Strauss, usei o
banheiro e segui adiante.
Pouco depois desse
inusitado albergue, caminhei por um simpático bosque, com umas esculturas de
ferro, e cheguei a uma extensa ponte de arco (talvez a única paisagem agradável
do dia). A ponte cruza um belo rio cujas margens estão cobertas por densa
vegetação, e continua uns bons metros por cima de um gramado. Era a entrada de
uma cidadezinha de beira de estrada, de traços contemporâneos, chamada Puente
Villarente. Marisa e Carlos tinham me recomendado uma confeitaria (pastelería) do local. Passei para
verificar, e realmente os doces são uma delícia. Pelo movimento intenso de
locais, já vi logo que os quitutes deviam ser bons. Aliás, devo dizer que os
pães, biscoitos e folhados das pastelerías
espanholas são dignos das calorias ingeridas. Os que provei no Horno Rústico, recheados com creme
(conforme me recomendaram meus hospitaleros)
estavam divinos!
Ainda cruzei dois
pequenos povoados, sem nada de muito interessante, antes de chegar à periferia
de León. Esse foi, aliás, o único trechinho do trajeto do dia que se afastou um
pouco da rodovia. Pelos terrenos cobertos de uma vegetação rasteira, vi pessoas
com sacos ou cestinhas nas mãos, colhendo cogumelos. De repente, a paisagem
meio rural dá lugar a galpões, grandes prédios comerciais e concessionárias.
Tinha chegado a Puente Castro, já parte da grande mancha urbana de León. Cruzei
a larga e movimentada rodovia por meio de uma passarela e andei por vários
quilômetros ainda, até alcançar o centro histórico. Como era domingo, tudo
estava fechado. À parte a rodovia, não havia movimento nas ruas de Puente
Castro. Já na entrada de León, justo antes de cruzar o rio que banha a cidade,
parei numa pracinha para recolocar meu casaco (tirar e colocar o casaco é
sempre uma operação de guerra, porque tem de tirar mochila, bolsa, máquina fotográfica),
e quando vejo, em plena avenida de acesso a León propriamente dita, um enorme
rebanho de carneiros vem andando pachorrentamente. Carros ficam encurralados.
Não têm outra alternativa a não ser esperar o rebanho passar. Me divirto muito
com a cena. E fico pensando: Que bom que essas cenas não acontecem apenas no
Nordeste do Brasil!
Quando estava cruzando
a ponte, uma senhorinha se aproximou de mim e me perguntou se eu estava
caminhando sozinha, e antes mesmo que eu respondesse, foi me aconselhando: Não
ande sozinha, você está sabendo do que aconteceu com a moça americana? Eu lhe
respondi que sim, e que estou sendo cautelosa, mas que ao mesmo tempo, entrego
minha vida a Deus todos os dias. Ela sorriu, me disse um Vá com Deus, e eu segui meu
caminho.
Demorei uma eternidade
para cruzar essa área periférica de León, que não tem atrativo nenhum. Condomínios,
áreas comerciais, enfim, perfil de cidade grande. Caminhei muuuito devagar,
porque meu pé direito estava me incomodando bastante. O arco desse pé ainda
está um pouco inflamado, e com a bolha no calcanhar esquerdo, acho que eu vinha
forçando mais o pé direito. Resultado é que agora me apareceu uma outra dor no pé
direito, no calcanhar, do lado externo. De todo modo, consegui chegar ao meu
albergue, Muralla Leonesa, antes das três, que é até quando se costuma segurar
reserva. Eu raramente faço reserva em albergue, porém, como León estava muito
cheia por causa do feriado nacional (Día de la Hispanidad), e Marisa tinha me
recomendado este, tinha deixado reserva feita.
Adorei o albergue.
Todo novinho, inaugurado há poucos meses, com cozinha para peregrinos e regras
super flexíveis. Nada de toque de recolher. A gente podia entrar no albergue e ir
pro quarto na hora que bem entendesse. Amei! María, a moça que me atendeu, é
uma gracinha. Me instalei, tomei meu banho, comi uma paella que eu tinha comprado num supermercado (dessas comidas
prontas, pra esquentar no micro-ondas), e saí para visitar a Catedral. As ruas
da cidade antiga estavam bem mais tranquilas que no sábado. A Plaza Mayor até
parecia outro lugar, sem a feira da véspera. Nem lembro se comentei que as ruas
de León (centro histórico) são estreitas e tortuosas, com sobrados de dois ou
três andares, de fachadas coloridas. Há uma grande quantidade de bares,
restaurantes e cafés, e sempre há muita gente pelas ruas. É uma cidade muito
viva. Junto do albergue tinha uma lojinha de chá com todo tipo de chá que se
pode imaginar. Eu tinha entrado nela já no sábado. Tomei três chás diferentes:
amarelo do Grande Imperador; Vermelho com canela, cardamomo e outras
especiarias; e chá verde com jasmim.
Mesmo com o pé
incomodando, fui visitar a Catedral, que é muito perto do meu albergue, e não
requeria muito esforço de caminhada. Difícil descrever a emoção que a pessoa
sente quando está no interior dessa Catedral! O conjunto de vitrais que ela tem
(1.800 m2) é absolutamente impressionante! Sem dúvida alguma é o monumento mais
belo que vi até aqui. Há vitrais em todas as paredes da Pulchra Leonina. São três enormes rosáceas e inúmeras janelas, com
seus vitrais multicores, retratando cenas bíblicas, santos, apóstolos, a vida
de Maria e Jesus. Tocava uma música religiosa suave, que cria uma atmosfera
ainda mais envolvente. Os arcos da Catedral são imensos, com suas ogivas
perfeitas e suas nervuras no teto – novidade no processo de construção que
permitiu às Igrejas góticas terem esses tetos tão altos. Sentei nuns banquinhos
no cruzeiro central e fiquei só admirando aquela maravilha do engenho humano,
muito emocionada. Se a intenção era criar um ambiente de elevação do espírito,
os construtores foram realmente bem sucedidos. Sentadinha, em silêncio,
contemplando essa maravilha, me lembrei
muito de Osman Lins, um dos meus escritores favoritos. A obra de Osman
amadureceu muito depois que ele passou um tempo na Europa, e ele dizia que a
contemplação das catedrais góticas, com seus vitrais e retábulos, tiveram um
efeito transformador sobre ele e sobre sua literatura. Embora a principal
experiência dele tenho sido na França, Léon me lembrou muito Osman, em particular
o Retábulo de Santa Joana Carolina
(um dos mais belos textos já escritos em língua portuguesa, na minha modesta
opinião).
Há alguns detalhes de decoração
nos altares laterais interessantes, como uma delicada imagem de Nossa Senhora
do Ó (amo essa representação de Nossa Senhora Grávida), de entre os séculos
XIII e XIV. A verdade, no entanto, é que nada se compara ao impacto dos
vitrais. É uma pena que um coro em estilo renascentista (pós gótico tardio,
tipo século XVI) tenha sido instalado bem no meio da nave principal. Esse coro,
ainda que seja um belo trabalho em madeira, quebra um pouco a harmonia do
conjunto, e certamente reduz o impacto do conjunto das altíssimas paredes, com
suas ogivas que direcionam o olhar para o céu, e os vitrais. Após contemplar
toda o edifício por mim mesma, liguei o audioguia e comecei a ouvir a história
da construção do edifício, cuja obra foi concluída em praticamente meio século
(segunda metade do XIII). Daí porque se observa nela maior unidade arquitetônica
que a Catedral de Burgos, por exemplo.
No século XIX, a Pulchra Leonina sofreu uma importante e
impressionante restauração. Vou mencionar esse episódio porque me pareceu
fantástico. A Igreja tinha sofrido intervenções ao longo dos séculos, que
estavam comprometendo seu delicado equilíbrio arquitetônico. O teto ameaçava
ruir. Pois um sujeito estudou o estilo gótico de construção e montou um plano
de restauração em que o teto foi inteiramente removido e os vitrais foram
desmontados peça por peça, catalogados e encaixotados! Ele conseguiu restaurar
a antiga estrutura, pôs tudo de volta no lugar e quando removeram as estacas de
sustentação, a Igreja permaneceu de pé. Não é incrível? Eu fiquei
impressionada. Diz que a cidade ficou de respiração presa quando retiraram as
estacas de sustentação. Dou por visto. E o resultado é que tirando esse coro
(introduzido tardiamente), e o retábulo do altar, a Catedral de León acaba por
ser uma raridade na Espanha, onde quase todas as Igrejas, grandes e pequenas,
têm evidentes traços de restauração e mudanças, às vezes, significativas de
estilo, que foram se sobrepondo com o passar dos séculos.
Estava nessa visita
guiada quando me dei conta de que na Capela do Santíssimo estava tendo missa.
Como era domingo, corri pro acesso ao Claustro (na lateral) e ainda peguei boa parte
da missa. A Capela do Santíssimo é muito simples, com decoração na parede do altar
em pedra mesmo, num estilo gótico florido (ou tardio). O Claustro não tem nada
de muito especial. Inclusive, me deu a impressão de um estilo posterior ao da
Catedral, com as nervuras do teto bem decoradas. A coisa mais interessante do
Claustro é o ângulo de visão da própria Catedral.
Quando saí do
Claustro, o tempo estava chuvoso e frio. Como, ademais, meu pé estava doído,
voltei pro albergue e decidi ficar escrevendo e organizando minhas coisas.
Esse foi meu dia,
Niquinha. Saudades muitas!
Beijos no coração,
Léia
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