quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 29


11/10/15

Dia de retomar a caminhada. Acordei bem cedinho, para aproveitar a boa conexão de internet do Albergue Gaia e postar as fotos do Caminho no meu Facebook. Como eu te disse, fiz de tudo para me entender com o tal do Picassa, mas não deu certo. Nem gosto muito de postar fotos no Facebook, mas foi o jeito. Ou era assim, ou vocês não poderiam ver as fotos de jeito nenhum. Vê se usa o Facebook de Quel para você e mamãe darem uma olhada, por favor.
Tomei café no albergue, com um casal canadense e uma californiana, todos de meia idade, extremamente simpáticos. A senhora canadense é enfermeira e a americana é massagista. Quando eu estava pondo meus esparadrapos e meus cremes no pé, elas se aproximaram e terminaram me ajudando, todas duas. Vê a sorte. Ganhei massagem no pé e uma dica importante da enfermeira (não gravei os nomes delas!). Ela me disse que a inflamação no arco do pé geralmente acontece porque as pessoas querem dar passadas muito largas, e acabam estressando as estruturas do arco. Me aconselhou a caminhar com passos mais curtos. E assim eu fiz. Passos mais curtos significam uma caminhada mais lenta, o que representa um exercício extra de paciência. Engraçado como o Caminho está o tempo todo me pedindo paciência. Tô tentando obedecer! Quero aproveitar para fazer o registro de que eu não sou a única doida a falar dO Caminho na Terceira Pessoa. Quase todos os peregrinos falam assim. Na verdade, acho que todos os que entram verdadeiramente no espírito dO Caminho, acabam se referindo a ele como se fosse uma entidade, com uma natureza e características particulares.
Saí de Mansilla de Las Mulas com chuva. Choveu constantemente a primeira metade da jornada toda, mas não era uma chuva pesada, então, deu para administrar com a capa de chuva. Atravessei a pontezinha na saída de Mansilla e parei para contemplar a muralha do lado de fora. Fiquei só imaginando como era a chegada dos viajantes a essa cidade murada, vários séculos atrás... Da ponte a paisagem é bem bonita, com as muralhas à frente e o rio todo margeado por altas árvores. Também, foi só eu me afastar um pouquinho de Mansilla pra paisagem ficar sem graça. A maior parte do trajeto entre Mansilla e León segue junto a uma movimentada rodovia. Um que outro trechinho é mais simpático, com árvores e arbustos altos, dos dois lados, o que não apenas forma uma alamedazinha, como encobre a feiúra da rodovia. No geral, porém, é uma caminhada pouco atrativa.
Estava eu andando num trecho feioso, bem rente à rodovia, quando avistei uma casa alta, com uma placa que dizia: Albergue Filosofia. O nome já me chamou a atenção. Quando eu passo na porta, está tocando uma valsa, de Strauss. Obviamente que eu não resisti e entrei para tomar um chá. O albergue/bar era mesmo meio inusitado, com sofás e poltronas, além de mesas e cadeiras. Tudo muito simples, porém se via que o dono (um sujeito também aparentemente muito simplório) tinha se esmerado para dar um ar de sofisticação ao seu bar. Tomei meu chá ouvindo Strauss, usei o banheiro e segui adiante.
Pouco depois desse inusitado albergue, caminhei por um simpático bosque, com umas esculturas de ferro, e cheguei a uma extensa ponte de arco (talvez a única paisagem agradável do dia). A ponte cruza um belo rio cujas margens estão cobertas por densa vegetação, e continua uns bons metros por cima de um gramado. Era a entrada de uma cidadezinha de beira de estrada, de traços contemporâneos, chamada Puente Villarente. Marisa e Carlos tinham me recomendado uma confeitaria (pastelería) do local. Passei para verificar, e realmente os doces são uma delícia. Pelo movimento intenso de locais, já vi logo que os quitutes deviam ser bons. Aliás, devo dizer que os pães, biscoitos e folhados das pastelerías espanholas são dignos das calorias ingeridas. Os que provei no Horno Rústico, recheados com creme (conforme me recomendaram meus hospitaleros) estavam divinos!
Ainda cruzei dois pequenos povoados, sem nada de muito interessante, antes de chegar à periferia de León. Esse foi, aliás, o único trechinho do trajeto do dia que se afastou um pouco da rodovia. Pelos terrenos cobertos de uma vegetação rasteira, vi pessoas com sacos ou cestinhas nas mãos, colhendo cogumelos. De repente, a paisagem meio rural dá lugar a galpões, grandes prédios comerciais e concessionárias. Tinha chegado a Puente Castro, já parte da grande mancha urbana de León. Cruzei a larga e movimentada rodovia por meio de uma passarela e andei por vários quilômetros ainda, até alcançar o centro histórico. Como era domingo, tudo estava fechado. À parte a rodovia, não havia movimento nas ruas de Puente Castro. Já na entrada de León, justo antes de cruzar o rio que banha a cidade, parei numa pracinha para recolocar meu casaco (tirar e colocar o casaco é sempre uma operação de guerra, porque tem de tirar mochila, bolsa, máquina fotográfica), e quando vejo, em plena avenida de acesso a León propriamente dita, um enorme rebanho de carneiros vem andando pachorrentamente. Carros ficam encurralados. Não têm outra alternativa a não ser esperar o rebanho passar. Me divirto muito com a cena. E fico pensando: Que bom que essas cenas não acontecem apenas no Nordeste do Brasil!
Quando estava cruzando a ponte, uma senhorinha se aproximou de mim e me perguntou se eu estava caminhando sozinha, e antes mesmo que eu respondesse, foi me aconselhando: Não ande sozinha, você está sabendo do que aconteceu com a moça americana? Eu lhe respondi que sim, e que estou sendo cautelosa, mas que ao mesmo tempo, entrego minha vida a Deus todos os dias. Ela sorriu, me disse um Vá com Deus,  e eu segui meu caminho.
Demorei uma eternidade para cruzar essa área periférica de León, que não tem atrativo nenhum. Condomínios, áreas comerciais, enfim, perfil de cidade grande. Caminhei muuuito devagar, porque meu pé direito estava me incomodando bastante. O arco desse pé ainda está um pouco inflamado, e com a bolha no calcanhar esquerdo, acho que eu vinha forçando mais o pé direito. Resultado é que agora me apareceu uma outra dor no pé direito, no calcanhar, do lado externo. De todo modo, consegui chegar ao meu albergue, Muralla Leonesa, antes das três, que é até quando se costuma segurar reserva. Eu raramente faço reserva em albergue, porém, como León estava muito cheia por causa do feriado nacional (Día de la Hispanidad), e Marisa tinha me recomendado este, tinha deixado reserva feita.
Adorei o albergue. Todo novinho, inaugurado há poucos meses, com cozinha para peregrinos e regras super flexíveis. Nada de toque de recolher. A gente podia entrar no albergue e ir pro quarto na hora que bem entendesse. Amei! María, a moça que me atendeu, é uma gracinha. Me instalei, tomei meu banho, comi uma paella que eu tinha comprado num supermercado (dessas comidas prontas, pra esquentar no micro-ondas), e saí para visitar a Catedral. As ruas da cidade antiga estavam bem mais tranquilas que no sábado. A Plaza Mayor até parecia outro lugar, sem a feira da véspera. Nem lembro se comentei que as ruas de León (centro histórico) são estreitas e tortuosas, com sobrados de dois ou três andares, de fachadas coloridas. Há uma grande quantidade de bares, restaurantes e cafés, e sempre há muita gente pelas ruas. É uma cidade muito viva. Junto do albergue tinha uma lojinha de chá com todo tipo de chá que se pode imaginar. Eu tinha entrado nela já no sábado. Tomei três chás diferentes: amarelo do Grande Imperador; Vermelho com canela, cardamomo e outras especiarias; e chá verde com jasmim.  
Mesmo com o pé incomodando, fui visitar a Catedral, que é muito perto do meu albergue, e não requeria muito esforço de caminhada. Difícil descrever a emoção que a pessoa sente quando está no interior dessa Catedral! O conjunto de vitrais que ela tem (1.800 m2) é absolutamente impressionante! Sem dúvida alguma é o monumento mais belo que vi até aqui. Há vitrais em todas as paredes da Pulchra Leonina. São três enormes rosáceas e inúmeras janelas, com seus vitrais multicores, retratando cenas bíblicas, santos, apóstolos, a vida de Maria e Jesus. Tocava uma música religiosa suave, que cria uma atmosfera ainda mais envolvente. Os arcos da Catedral são imensos, com suas ogivas perfeitas e suas nervuras no teto – novidade no processo de construção que permitiu às Igrejas góticas terem esses tetos tão altos. Sentei nuns banquinhos no cruzeiro central e fiquei só admirando aquela maravilha do engenho humano, muito emocionada. Se a intenção era criar um ambiente de elevação do espírito, os construtores foram realmente bem sucedidos. Sentadinha, em silêncio, contemplando  essa maravilha, me lembrei muito de Osman Lins, um dos meus escritores favoritos. A obra de Osman amadureceu muito depois que ele passou um tempo na Europa, e ele dizia que a contemplação das catedrais góticas, com seus vitrais e retábulos, tiveram um efeito transformador sobre ele e sobre sua literatura. Embora a principal experiência dele tenho sido na França, Léon me lembrou muito Osman, em particular o Retábulo de Santa Joana Carolina (um dos mais belos textos já escritos em língua portuguesa, na minha modesta opinião).
Há alguns detalhes de decoração nos altares laterais interessantes, como uma delicada imagem de Nossa Senhora do Ó (amo essa representação de Nossa Senhora Grávida), de entre os séculos XIII e XIV. A verdade, no entanto, é que nada se compara ao impacto dos vitrais. É uma pena que um coro em estilo renascentista (pós gótico tardio, tipo século XVI) tenha sido instalado bem no meio da nave principal. Esse coro, ainda que seja um belo trabalho em madeira, quebra um pouco a harmonia do conjunto, e certamente reduz o impacto do conjunto das altíssimas paredes, com suas ogivas que direcionam o olhar para o céu, e os vitrais. Após contemplar toda o edifício por mim mesma, liguei o audioguia e comecei a ouvir a história da construção do edifício, cuja obra foi concluída em praticamente meio século (segunda metade do XIII). Daí porque se observa nela maior unidade arquitetônica que a Catedral de Burgos, por exemplo.
No século XIX, a Pulchra Leonina sofreu uma importante e impressionante restauração. Vou mencionar esse episódio porque me pareceu fantástico. A Igreja tinha sofrido intervenções ao longo dos séculos, que estavam comprometendo seu delicado equilíbrio arquitetônico. O teto ameaçava ruir. Pois um sujeito estudou o estilo gótico de construção e montou um plano de restauração em que o teto foi inteiramente removido e os vitrais foram desmontados peça por peça, catalogados e encaixotados! Ele conseguiu restaurar a antiga estrutura, pôs tudo de volta no lugar e quando removeram as estacas de sustentação, a Igreja permaneceu de pé. Não é incrível? Eu fiquei impressionada. Diz que a cidade ficou de respiração presa quando retiraram as estacas de sustentação. Dou por visto. E o resultado é que tirando esse coro (introduzido tardiamente), e o retábulo do altar, a Catedral de León acaba por ser uma raridade na Espanha, onde quase todas as Igrejas, grandes e pequenas, têm evidentes traços de restauração e mudanças, às vezes, significativas de estilo, que foram se sobrepondo com o passar dos séculos.
Estava nessa visita guiada quando me dei conta de que na Capela do Santíssimo estava tendo missa. Como era domingo, corri pro acesso ao Claustro (na lateral) e ainda peguei boa parte da missa. A Capela do Santíssimo é muito simples, com decoração na parede do altar em pedra mesmo, num estilo gótico florido (ou tardio). O Claustro não tem nada de muito especial. Inclusive, me deu a impressão de um estilo posterior ao da Catedral, com as nervuras do teto bem decoradas. A coisa mais interessante do Claustro é o ângulo de visão da própria Catedral.
Quando saí do Claustro, o tempo estava chuvoso e frio. Como, ademais, meu pé estava doído, voltei pro albergue e decidi ficar escrevendo e organizando minhas coisas.
Esse foi meu dia, Niquinha. Saudades muitas!
Beijos no coração,

Léia 

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