16/10/15
Nica, Querida!
Deixei Hospital de
Órbigo para trás com muita dó. Incrível como o Albergue Verde é acolhedor e
convidativo. Após meu lauto café da manhã, com direito a figos frescos,
colhidos de uma figueira ao pé da casa, tomei meu rumo. A manhã estava
geladíssima. Devia fazer uns dois graus. E olhe que já eram dez da manhã quando
cruzei o portão cercado de hera. Entre Hospital de Órbigo e Villares de Órbigo
(Órbigo é o nome de um rio que cruza a região), caminhei por uma estradinha de
terra, junto a um enorme milharal. Estava eu caminhando ali, sozinha, quando vi
um senhorzinho pequenino, de cabeça branca, que vinha numa bicicleta. Ele parou
para dar alguma informação a um carro que passava, e quando eu me aproximei,
ele me estendeu um lírio do campo, amarelo, recém colhido, e me desejou Buen Camino. Fiquei tão surpresa quanto
feliz com aquele gesto.
Segui adiante mais
animada. Passei por um bonito bosque de altas árvores bem à entrada de
Villares, cruzei o vilarejo de uma única rua sem deter-me e continuei a
caminhada por uma estradinha de terra branca. Pelos lados, apenas mato. Na
verdade, uma vegetação rasteira, com arbustos e árvores salpicados. A grama
ainda estava coberta pelo orvalho da manhã e refletia a luz do sol, como se
fosse um espelho. Lindo demais. Ao longe, algumas árvores inteiramente amarelas
pelo outono, davam um colorido especial à paisagem. À medida que o dia foi
avançando, o azul do céu foi ficando mais intenso, e os contrastes com o
colorido da vegetação, mais bonitos. Comecei uma subida íngreme, e olhando para
trás podia ver, no vale embaixo, os contornos de Hospital de Órbigos.
Cruzei um outro
pequeno povoado (Santibanez de Valdeiglesia), e logo depois me deparei com um
canteiro de obras. Estradas estão sendo abertas e passei a caminhar em meio à
terra vermelha, rasgada pelas máquinas. Subi colinas, cruzei bosques, andei por
estradinhas ora nuas de vegetação, ora ladeadas por bosques coloridos de verde
e amarelo, até que cheguei numa espécie de descampado. Ao longe avistei o que
parecia ser uma barraquinha de comida. Quando me aproximei, vi pessoas sentadas
num banquinho ao pé do muro, debaixo de uma coberta de madeira, duas rapazes se
divertiam com um bambolê, e outras pessoas comiam, junto de um carrinho cheio
de sucos, frutas, biscoitos. Por trás de um pequeno muro, havia um grande
pátio, com um sol desenhado com pedras no chão. Nas pontas dos raios de sol,
videiras ainda novinhas. Ao final do pátio, ruínas de uma casa. O lugar se
chama Casa de Los Dioses. David e Susi, um espanhol e uma australiana, moram
nessas ruínas e recebem os peregrinos com esses quitutes. Tudo de graça. Uma
caixinha de doações fica ao lado do carrinho. Assim como Mincho, ouvi Davi
dizendo a um peregrino que lhe perguntava quanto custavam as coisas, que havia
a caixinha de doações, mas que só colocassem ali qualquer coisa, se fosse de
todo o coração, que o importante para eles é a boa energia do Amor. Além do carrinho
de comidas, ele e Susi estavam assando legumes e biscoitos, num forno à lenha
que construíram dentro da casa.
Eu entrei no pátio e
fiquei sentada, contemplando o sol de pedra e sentindo a energia desse lugar
tão especial. Não consigo deixar de me comover com a entrega e a doação de
pessoas como Mincho, Susi, David, o senhor do Hospital de Almas.... é lindo
demais como essas pessoas abrem suas vidas, suas casas, seus corações para
acolher quem passa pelo Caminho. Depois de ficar um bom tempo sentadinha na
murada, contemplando e orando, me dirigi até a casa e fiquei conversando com
Susi e com uma outra moça, americana, creio. Susi nos contava como chegou até
ali, como passou três meses no Hospital de Almas e ajudou a redecorar o pátio
dos fundos (o que são as coincidências do mundo), e como a simplicidade é
desafiadora. Imagino mesmo! Além do fogão de lenha, nas ruínas onde eles moram,
há alguns armários e uns colchões no chão. Eles pegam água do rio, lenha no
bosque, e vivem assim, com o que Deus dá. De uma coragem absurda! Me comovi
profundamente com Susi. E uma das coisas que ela disse que mais me chamaram a
atenção foi que ali, longe de tudo e vivendo na mais absoluta simplicidade, a
pessoa não tem outra alternativa a não ser se confrontar com ela mesma. A
pessoa não tem nada como desculpa e se dá conta de que todo sofrimento e
frustração se origina dentro de si mesmo.
Comi meia romã, provei
dos legumes assados, dos biscoitos, saboreei uma geléia de tomate bem gostosa e
tomei um suco de pera (orgânico). Ao lado da barraquinha conheci um casal de
mineiros super simpáticos, e um paranaense. Devo ter ficado mais de uma hora na
Casa de Los Dioses. Também parti com vontade de ficar. Não sei se foi a boa
energia do lugar, mas o fato é que quase não senti a distância percorrida ao
longo do dia, mesmo com o calcanhar doendo um pouco (não lembro se te falei que
o osteopata, Gael, que fez a massagem no meu pé, me confirmou que tô com uma
tendinite no tendão de Aquiles).
Pouco depois da Casa
de Los Dioses, cheguei ao alto de uma colina, onde há um cruzeiro, e avistei
Astorga lá embaixo, no vale. E lá ao fundo as montanhas que em breve terei de cruzar. Comecei a descer a colina e logo cheguei à cidadezinha
de San Justo de la Veja, quase uma adjacência de Astorga. Atravessei a rua
principal, passei por uma ponte e segui caminhando na calçada, junto à rodovia.
À minha frente avistei uma figura curiosíssima. Um senhor, grisalho, arrastava
uma enorme cruz feita com troncos de madeira, pintada de preto, com tiras de
pano amarradas, uma bandeira da Espanha na ponta, e vários cartazes pendurados num
fio que acompanhava toda a extensão da
cruz, como se fosse um varal. Acompanhava-o um cão. Ele parou para descansar e
o alcancei.Quando estava passando por ele, o sujeito puxou conversa comigo. Tinha
barba e estava todo sujo de preto, como se uma fuligem o cobrisse. A roupa
estava imunda e ele usava um boné. Começou a falar sobre a crise na Espanha,
sobre as dificuldades enfrentadas pelos mais pobres e sobre a destruição do
planeta.
O primeiro dos
cartazes tinha um de desenho cheio de simbologias, dentre elas a da Terra como
uma teta – que estamos sugando, sugando e sugando, sem cuidar dela. Não li o
que havia nos cartazes porque eram muitos. Um longo texto de protesto contra
muitas coisas, a julgar pelo discurso dele. Havia um apelo qualquer ao Papa
Francisco. E ele falou muito das eleições que devem acontecer na Espanha no
final do ano. Ao final, entendi que tudo era motivado pela perda de sua mãe,
que teria falecido sem receber a adequada atenção médica. Me contou isso muito
emocionado e me disse que chegou a fazer protestos à porta de algumas
autoridades. Fiquei muito sentida por ele, até porque sei exatamente do que ele
estava falando. Não tive coragem de dizer-lhe o quanto isso ainda é corriqueiro
no Brasil.
Já cheguei a Astorga
depois das cinco da tarde. Registrei-me no albergue Siervas de Maria, de uma
Associação dos Amigos do Caminho, tomei meu banho e saí para dar uma volta pela
cidade e comprar algo para comer. Consegui visitar a Catedral, mas não deu para
visitar o Palácio Episcopal, que é projeto de Gaudí. Só pude vê-lo por fora.
Honestamente, espero que Gaudí tenha gastado todo o seu talento em Barcelona,
porque os dois edifícios de autoria dele que eu vi até aqui, pelo menos por
fora não têm absolutamente nada demais. Me pareceram uns arremedos de
construções medievais, honestamente.
Com relação a Astorga
também devo dizer que achei muito sem gracinha. Até mesmo a Catedral, depois
que a pessoa viu Burgos e León, não tem quase apelo. O que mais gostei de
Astorga foi um jardim público junto à antiga muralha da cidade, e um sítio
arqueológico com ruínas de uma casa romana. Isso eu adorei! Tem, inclusive, um
belo mosaico do século II D.C. Também achei legal o movimento da Plaza Mayor,
que ao anoitecer ficou cheia de crianças brincando, gente conversando,
senhorzinhos e senhorinhas passeando. Adorei essa sensação de vida e movimento
da população local, num espaço público, que é muito rara na maior parte das
cidades atravessadas pelo Caminho.
Comprei tomates e atum
num mercadinho e voltei pro albergue para comer. Reencontrei os brasileiros que
havia conhecido à tarde (os mineiros e o paranaense). Estavam todos no mesmo
albergue que eu. Astorga não tem muitas opções de albergue. Por sorte, escolhi
certo, porque caminhando pela rua, encontrei Nicolás (aquele espanhol que com
quem fui ver a Catedral de León à noite) e ele estava furioso com o albergue
dele, dizendo que era uma fraude. Estava quase a ponto de chamar a Guardia Civil para interditá-lo. Quando
cheguei na cozinha para preparar minha salada, reencontrei Nicolás, que havia
sido convidado para jantar no meu albergue com um enorme grupo de peregrinos.
Eles tomavam toda a comprida mesa do refeitório (comedor) e faziam uma grande algazarra. Um rapaz muito gentil me
cedeu seu lugar para que eu pudesse comer sentada.
Durante o jantar
conheci Pilar, uma jovem das Canárias, muito, muito doce. Ela é professora de
Yoga e, como muitos peregrinos, está querendo produzir mudanças expressivas no
seu modo de vida. Não sei porquê, mas enquanto ela falava, me veio a ideia de
que eu deveria lhe dar o contato do Albergue Verde. Senti que conhecer Mincho
seria bom para ela. Subi ao meu quarto, peguei o cartão, chamei-a num canto e transmiti
a ela minha intuição. Pilar ficou muito feliz e agradecida.
A noite estava muito
fria. Pedi um cobertor ao hospitalero
e decidi me recolher ao quarto. Com todos os albergues municipais e de
associações, o Siervas de Maria tem hora de dormir, de acordar e de ir embora.
É uma das coisas que me faz preferir sempre ficar nos albergues particulares,
quando tenho essa opção. Não foi o caso de Astorga, que, aliás, não me deixará
saudades.
Por ora é só.
Beijos mil, Minha
Irmã!
Léia
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