domingo, 18 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 33


16/10/15

Nica, Querida!
Deixei Hospital de Órbigo para trás com muita dó. Incrível como o Albergue Verde é acolhedor e convidativo. Após meu lauto café da manhã, com direito a figos frescos, colhidos de uma figueira ao pé da casa, tomei meu rumo. A manhã estava geladíssima. Devia fazer uns dois graus. E olhe que já eram dez da manhã quando cruzei o portão cercado de hera. Entre Hospital de Órbigo e Villares de Órbigo (Órbigo é o nome de um rio que cruza a região), caminhei por uma estradinha de terra, junto a um enorme milharal. Estava eu caminhando ali, sozinha, quando vi um senhorzinho pequenino, de cabeça branca, que vinha numa bicicleta. Ele parou para dar alguma informação a um carro que passava, e quando eu me aproximei, ele me estendeu um lírio do campo, amarelo, recém colhido, e me desejou Buen Camino. Fiquei tão surpresa quanto feliz com aquele gesto.
Segui adiante mais animada. Passei por um bonito bosque de altas árvores bem à entrada de Villares, cruzei o vilarejo de uma única rua sem deter-me e continuei a caminhada por uma estradinha de terra branca. Pelos lados, apenas mato. Na verdade, uma vegetação rasteira, com arbustos e árvores salpicados. A grama ainda estava coberta pelo orvalho da manhã e refletia a luz do sol, como se fosse um espelho. Lindo demais. Ao longe, algumas árvores inteiramente amarelas pelo outono, davam um colorido especial à paisagem. À medida que o dia foi avançando, o azul do céu foi ficando mais intenso, e os contrastes com o colorido da vegetação, mais bonitos. Comecei uma subida íngreme, e olhando para trás podia ver, no vale embaixo, os contornos de Hospital de Órbigos.
Cruzei um outro pequeno povoado (Santibanez de Valdeiglesia), e logo depois me deparei com um canteiro de obras. Estradas estão sendo abertas e passei a caminhar em meio à terra vermelha, rasgada pelas máquinas. Subi colinas, cruzei bosques, andei por estradinhas ora nuas de vegetação, ora ladeadas por bosques coloridos de verde e amarelo, até que cheguei numa espécie de descampado. Ao longe avistei o que parecia ser uma barraquinha de comida. Quando me aproximei, vi pessoas sentadas num banquinho ao pé do muro, debaixo de uma coberta de madeira, duas rapazes se divertiam com um bambolê, e outras pessoas comiam, junto de um carrinho cheio de sucos, frutas, biscoitos. Por trás de um pequeno muro, havia um grande pátio, com um sol desenhado com pedras no chão. Nas pontas dos raios de sol, videiras ainda novinhas. Ao final do pátio, ruínas de uma casa. O lugar se chama Casa de Los Dioses. David e Susi, um espanhol e uma australiana, moram nessas ruínas e recebem os peregrinos com esses quitutes. Tudo de graça. Uma caixinha de doações fica ao lado do carrinho. Assim como Mincho, ouvi Davi dizendo a um peregrino que lhe perguntava quanto custavam as coisas, que havia a caixinha de doações, mas que só colocassem ali qualquer coisa, se fosse de todo o coração, que o importante para eles é a boa energia do Amor. Além do carrinho de comidas, ele e Susi estavam assando legumes e biscoitos, num forno à lenha que construíram dentro da casa.
Eu entrei no pátio e fiquei sentada, contemplando o sol de pedra e sentindo a energia desse lugar tão especial. Não consigo deixar de me comover com a entrega e a doação de pessoas como Mincho, Susi, David, o senhor do Hospital de Almas.... é lindo demais como essas pessoas abrem suas vidas, suas casas, seus corações para acolher quem passa pelo Caminho. Depois de ficar um bom tempo sentadinha na murada, contemplando e orando, me dirigi até a casa e fiquei conversando com Susi e com uma outra moça, americana, creio. Susi nos contava como chegou até ali, como passou três meses no Hospital de Almas e ajudou a redecorar o pátio dos fundos (o que são as coincidências do mundo), e como a simplicidade é desafiadora. Imagino mesmo! Além do fogão de lenha, nas ruínas onde eles moram, há alguns armários e uns colchões no chão. Eles pegam água do rio, lenha no bosque, e vivem assim, com o que Deus dá. De uma coragem absurda! Me comovi profundamente com Susi. E uma das coisas que ela disse que mais me chamaram a atenção foi que ali, longe de tudo e vivendo na mais absoluta simplicidade, a pessoa não tem outra alternativa a não ser se confrontar com ela mesma. A pessoa não tem nada como desculpa e se dá conta de que todo sofrimento e frustração se origina dentro de si mesmo.
Comi meia romã, provei dos legumes assados, dos biscoitos, saboreei uma geléia de tomate bem gostosa e tomei um suco de pera (orgânico). Ao lado da barraquinha conheci um casal de mineiros super simpáticos, e um paranaense. Devo ter ficado mais de uma hora na Casa de Los Dioses. Também parti com vontade de ficar. Não sei se foi a boa energia do lugar, mas o fato é que quase não senti a distância percorrida ao longo do dia, mesmo com o calcanhar doendo um pouco (não lembro se te falei que o osteopata, Gael, que fez a massagem no meu pé, me confirmou que tô com uma tendinite no tendão de Aquiles).
Pouco depois da Casa de Los Dioses, cheguei ao alto de uma colina, onde há um cruzeiro, e avistei Astorga lá embaixo, no vale. E lá ao fundo as montanhas que em breve terei de cruzar. Comecei a descer a colina e logo cheguei à cidadezinha de San Justo de la Veja, quase uma adjacência de Astorga. Atravessei a rua principal, passei por uma ponte e segui caminhando na calçada, junto à rodovia. À minha frente avistei uma figura curiosíssima. Um senhor, grisalho, arrastava uma enorme cruz feita com troncos de madeira, pintada de preto, com tiras de pano amarradas, uma bandeira da Espanha na ponta, e vários cartazes pendurados num fio que acompanhava  toda a extensão da cruz, como se fosse um varal. Acompanhava-o um cão. Ele parou para descansar e o alcancei.Quando estava passando por ele, o sujeito puxou conversa comigo. Tinha barba e estava todo sujo de preto, como se uma fuligem o cobrisse. A roupa estava imunda e ele usava um boné. Começou a falar sobre a crise na Espanha, sobre as dificuldades enfrentadas pelos mais pobres e sobre a destruição do planeta.
O primeiro dos cartazes tinha um de desenho cheio de simbologias, dentre elas a da Terra como uma teta – que estamos sugando, sugando e sugando, sem cuidar dela. Não li o que havia nos cartazes porque eram muitos. Um longo texto de protesto contra muitas coisas, a julgar pelo discurso dele. Havia um apelo qualquer ao Papa Francisco. E ele falou muito das eleições que devem acontecer na Espanha no final do ano. Ao final, entendi que tudo era motivado pela perda de sua mãe, que teria falecido sem receber a adequada atenção médica. Me contou isso muito emocionado e me disse que chegou a fazer protestos à porta de algumas autoridades. Fiquei muito sentida por ele, até porque sei exatamente do que ele estava falando. Não tive coragem de dizer-lhe o quanto isso ainda é corriqueiro no Brasil.  
Já cheguei a Astorga depois das cinco da tarde. Registrei-me no albergue Siervas de Maria, de uma Associação dos Amigos do Caminho, tomei meu banho e saí para dar uma volta pela cidade e comprar algo para comer. Consegui visitar a Catedral, mas não deu para visitar o Palácio Episcopal, que é projeto de Gaudí. Só pude vê-lo por fora. Honestamente, espero que Gaudí tenha gastado todo o seu talento em Barcelona, porque os dois edifícios de autoria dele que eu vi até aqui, pelo menos por fora não têm absolutamente nada demais. Me pareceram uns arremedos de construções medievais, honestamente.
Com relação a Astorga também devo dizer que achei muito sem gracinha. Até mesmo a Catedral, depois que a pessoa viu Burgos e León, não tem quase apelo. O que mais gostei de Astorga foi um jardim público junto à antiga muralha da cidade, e um sítio arqueológico com ruínas de uma casa romana. Isso eu adorei! Tem, inclusive, um belo mosaico do século II D.C. Também achei legal o movimento da Plaza Mayor, que ao anoitecer ficou cheia de crianças brincando, gente conversando, senhorzinhos e senhorinhas passeando. Adorei essa sensação de vida e movimento da população local, num espaço público, que é muito rara na maior parte das cidades atravessadas pelo Caminho.
Comprei tomates e atum num mercadinho e voltei pro albergue para comer. Reencontrei os brasileiros que havia conhecido à tarde (os mineiros e o paranaense). Estavam todos no mesmo albergue que eu. Astorga não tem muitas opções de albergue. Por sorte, escolhi certo, porque caminhando pela rua, encontrei Nicolás (aquele espanhol que com quem fui ver a Catedral de León à noite) e ele estava furioso com o albergue dele, dizendo que era uma fraude. Estava quase a ponto de chamar a Guardia Civil para interditá-lo. Quando cheguei na cozinha para preparar minha salada, reencontrei Nicolás, que havia sido convidado para jantar no meu albergue com um enorme grupo de peregrinos. Eles tomavam toda a comprida mesa do refeitório (comedor) e faziam uma grande algazarra. Um rapaz muito gentil me cedeu seu lugar para que eu pudesse comer sentada.
Durante o jantar conheci Pilar, uma jovem das Canárias, muito, muito doce. Ela é professora de Yoga e, como muitos peregrinos, está querendo produzir mudanças expressivas no seu modo de vida. Não sei porquê, mas enquanto ela falava, me veio a ideia de que eu deveria lhe dar o contato do Albergue Verde. Senti que conhecer Mincho seria bom para ela. Subi ao meu quarto, peguei o cartão, chamei-a num canto e transmiti a ela minha intuição. Pilar ficou muito feliz e agradecida.
A noite estava muito fria. Pedi um cobertor ao hospitalero e decidi me recolher ao quarto. Com todos os albergues municipais e de associações, o Siervas de Maria tem hora de dormir, de acordar e de ir embora. É uma das coisas que me faz preferir sempre ficar nos albergues particulares, quando tenho essa opção. Não foi o caso de Astorga, que, aliás, não me deixará saudades.
Por ora é só.
Beijos mil, Minha Irmã!
Léia  

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