08/10/15
Oi, Niquinha!
Conforme eu já te antecipei,
a manhã de ontem foi muito especial. Tive uma conversa linda e emocionante com
Natividad, a hospitalera do Mosteiro
das Beneditinas. Eu não tinha dormido muito bem, porque a cama era desconfortável,
passei a noite toda afundando no velho colchão, e com um pouco de frio (mesmo
com coberta e saco de dormir). Antes das seis e meia eu já estava
acordadíssima. Acendi minha lanterninha e comecei a me organizar, do modo mais
silencioso que pude. Empacotadas minhas coisas, fui pro corredor, para cuidar
das minhas bolhas e proteger os dedos dos pés com esparadrapos. Estava nessa
função, quando chegou meu amigo coreano. Ficamos conversando, enquanto os
outros peregrinos iam deixando o albergue.
Nisso, aproximou-se um
senhor americano, que eu havia encontrado na entrada de Sahagún, na véspera, e
que vinha esbaforido com a caminhada (devo notar que se trata d uma pessoa com
problemas de obesidade, e já chegando aos setenta). Esse senhor havia decidido
ficar mais uma noite no albergue do mosteiro, para descansar o corpo. A decisão
me pareceu prudentíssima. Ajudei a traduzir sua demanda para Natividad, e
emendei uma conversa com ela, sobre Tom e Norma, que me haviam recomendado a
hospedagem ali. Tom estava gripado e a companheira de Nati fez uma sopa
fresquinha para ele. As duas se lembravam perfeitamente do meu querido casal.
Me contaram que Norma foi ao supermercado e comprou ingredientes para que elas
fizessem uma salada para todos os peregrinos.
Ocorre que ontem, justamente,
não tinha café da manhã no albergue. Mas nossa conversa estava tao animada, que
Nati convidou a mim e a Agustín (o coreano, cujo nome real é impronunciável) para
tomarmos um chá com madalenas (nosso
velho e bom bolo de bacia). Como o senhor americano e uma senhora sueca, que eu
também estava ajudando a traduzir, estavam por ali, pegaram arrego no nosso
convite. Nati nos levou ao refeitório e foi fazer o chá. Enquanto tomávamos chá
e comíamos os bolinhos, fiquei conversando com Nati sobre a Fundação na qual
ela trabalha, e que ajuda crianças pobres no Peru. Eu tinha visto umas fotos e
umas frases na parede. Foi aí que Nati me contou que ela e a outra senhora
trabalham cinco meses por ano, de domingo a domingo, das seis da manhã às dez
da noite, nesse albergue, cedido pelas Beneditinas, para angariar fundos para
um projeto educacional que essa Fundação desenvolve no Peru. Nos outros sete
meses do ano, elas vão para o Peru e desenvolvem o trabalho in loco. Com lágrimas nos olhos, ela me
falava de como esse trabalho no albergue é duro (estamos falando de duas
senhoras de mais de sessenta), porque são só elas duas. Ainda por cima, elas
cozinham pras Irmãs (oito senhorinhas). Me falou das saudades da família quando
estão no Peru. E de como todo esse esforço vale a pena pelos resultados e pelo
que elas recebem, na forma de afeta, das comunidades que elas ajudam. Nati é
professora aposentada. O trabalho que elas fazem é, principalmente, de
capacitação de professores, e de ensino técnico, para tentar garantir melhores
oportunidades para as crianças e jovens de áreas muito pobres do Peru.
Como você pode
imaginar, Minha Irmã, a essa altura eu já estava emocionadíssima. E ela também.
É tão admirável que pessoas entreguem suas vidas dessa maneira, com esse
desprendimento, em prol dos seus semelhantes! Eu fiz uma pequena doação e pedi
o contato dela, porque estou pensando seriamente em ir ajudá-las, quando eu
passar pelo Peru. Estávamos à porta do albergue, nos despedindo, quando começamos
a falar sobre fé. Eu contei a ela que tenho muita fé, e que isso aconteceu na
minha vida quando eu tinha oito anos e fui a uma missa pela primeira vez. Eu
brinquei com ela e disse: Acho que me apaixonei por Jesus, e nunca mais
consegui largá-lo. Nesse momento, Nati se emocionou e me disse que ela também
era assim. Quando criança, ela pegava o crucifixo da parede e escondia debaixo
do travesseiro para dormir perto de Jesus. Porém, há nove anos sua mãe faleceu,
e ela se desgostou com Deus, porque ela estava no Peru, e não pôde estar com a
mãe na hora de sua passagem. Desde então, ela não queria mais saber de conversa
com Jesus. Muito emocionada, ela me disse também que ao me ouvir falar da minha
fé, sentiu um aperto no coração, e teve a sensação de que talvez seja tempo de
procurar Deus novamente.
Eu, igualmente
emocionada, lhe respondi que Deus está onde sempre esteve, ao lado dela. Que
sua Mão continua estendida, e que Ele a ama como sempre, e exatamente como ela
é. Que tudo que ela precisa fazer é estender a própria mão, para sentir novamente
seu Amor e seu Amparo. Nos despedimos com um abraço apertado, e eu saí andando
pela rua, profundamente comovida.
Parei num café, na
Plaza Mayor de Sahagún, para fazer hora, enquanto as lojas não abriam, porque
queria ver se achava uma bateria pra minha câmera. No café, encontrei Rebecca,
a americana de Washington. Rebecca também é uma senhora com problemas de
obesidade. Contou-me que decidiu fazer o Caminho para mudar a rotina e,
eventualmente, encontrar alguma Graça. É curioso como as motivações dos
peregrinos são diversas e, ao mesmo tempo, semelhantes. No caso de Rebecca, ela
precisava quebrar a inércia do sedentarismo e da obesidade (certamente), para
conseguir ter alguma qualidade de vida na velhice. Romper a inércia – de diferentes
situações – é uma motivação que tenho visto muito frequentemente. Sair do seu “lugar”,
“desarrumar” hábitos, conceitos, atitudes arraigadas, para encontrar um arranjo
melhor de si mesmo, parece ser o que muita gente busca no Caminho. Além da
obtenção de alguma “surpresa” de ordem espiritual, que as ajude nesse
propósito.
Saí da cidade umas 11
da manhã, sem minha bateria. Fazia um belo dia de sol, com algumas nuvens brancas
no céu. Um dia sem chuva (nem ameaça de...), finalmente! Como estava sentindo
falta do sol! Acho que a simples perspectiva de um dia ensolarado, me encheu de
ânimo e alegria. Na saída da cidade, cruzei uma ponte de arcos, sobre um belo
rio, repleto de árvores nas margens. Na sequência, passei por um parque urbano,
com alamedas de altas árvores. Pouco adiante, avistei um rebanho de carneiros
vindo em minha direção, com seu pastor e uns três cães, bem mais parrudinhos e
diligentes que o cãozinho guenzo que eu avistara uns dias antes.
Todo o trajeto de
ontem seguia junto à movimentada rodovia N 120. Muito barulho de carros e
caminhões. Para fugir desse barulho, em Calzada de Coto, um vilarejo de nada,
com sua igrejinha fechada, dobrei à direita e segui por uma via alternativa, a
Via Romana. Bem melhor! Caminhei por uma estrada de terra batida, avermelhada, ladeada
por ora campos, ora por mato, com uma vegetação de arbustos. Essa estradinha me
lembrou certas paisagens agrestes nordestinas. Não sei se foi sugestão do
coração saudoso, mas vi Brasil o dia todo. Sempre que eu levantava a vista, via
à minha frente as cores da nossa bandeira: verde e amarelo nas folhas, azul no
céu e branco das nuvens.
Por essa estradinha
alternativa cheguei a Calzadilla de los Hermanillos, onde há uma Igrejinha de
paredes caiadas de branco. É a Ermida de
La Vírgen de los Dolores. Foi aí que concluí que Ermida nada mais é que uma Igreja pequena. Eu vinha pensando que
era um local de acolhida de peregrinos (de natureza religiosa), porque as
primeiras Ermidas que visitei eram
vãos de pedra, sem maiores traços religiosos que algum crucifixo. Pois Ermidas são Igrejas e os locais de
acolhida dos peregrinos, nos tempos medievais, se chamavam Hospital.
A partir de Calzadilla
de los Hermanillos, essa via alternativa segue junto a uma estradinha vicinal. Ainda
muito tranquilo. Passava um carro muito de vez em quando. Logo à saída do
povoado, um senhor muito bem apessoado (de terno e gravata, e num carro chique)
me ofereceu carona até Burgo Ranero. Eu agradeci, e disse que precisava andar.
Dobrei à esquerda após uns quatro quilômetros, e com mais uns dois, estava
chegando a Burgo Ranero. A essa altura fazia um sol forte, de queimar a pele.
Cheguei pelos fundos da cidade. Cruzei a estrada de ferro (umas três linhas),
com um certo receio. Não sei porque nessas horas a mente da gente fica pensando
naquelas cenas de filme, em que aparece um trem de repente e a pessoa, por
alguma razão, fica presa nos trilhos.
Me dirigi ao albergue
municipal, junto à praça central do povoado. O hospitalero me deu uma cama de verdade, sem beliche! Tomei banho
quase frio, mas dessa feita nem achei ruim. Estava tão agradecida pela cama e
pelo dia de sol, que resolvi levar o banho frio na boa. Dei um passeio
curtíssimo pelas três ruas do povoado, constatei que a Igreja estava fechada, e
passei no mercadinho para comprar tomates para meu jantar. Comi uma salada de
tomate com queijo de ovelha que me pareceu divina. Os tomates estavam
perfeitos! Depois, fiquei escrevendo na mesa do refeitório mesmo. Estava nisso,
quando conheci Érico, um gaúcho simpático, que está fazendo o Caminho pela
segunda vez. Conversamos um pouquinho, pois já estava dando dez horas, hora do
toque de recolher. Érico me mostrou um aplicativo do Caminho, para celular,
fantástico. Você monta seu roteiro e ele tem todas as informações sobre
distâncias, albergues, localiza você no mapa. Muito massa (chama-se Camino Pilgrim).
Obviamente, meu celular, com sua vaga lembrança, não comporta o aplicativo.
Fazer o quê. Tenho de me contentar com meu livrinho, que por sua vez já é um
grande progresso em relação à listinha xexelenta que eu tinha há poucos dias,
como único guia e referência.
Pois é isto, Minha
Irmã. Agora mesmo estou muitíssimo bem instalada, em um albergue lindo, em
Mansilla de Las Mulas. Tomei banho quente! E a noite promete ser boa e
repousante. Minha única preocupação é a bolha do calcanhar, que parece estar
querendo infeccionar. Veremos como ela acorda amanhã.
Beijos mil!
Léia
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