sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 26


08/10/15

Oi, Niquinha!
Conforme eu já te antecipei, a manhã de ontem foi muito especial. Tive uma conversa linda e emocionante com Natividad, a hospitalera do Mosteiro das Beneditinas. Eu não tinha dormido muito bem, porque a cama era desconfortável, passei a noite toda afundando no velho colchão, e com um pouco de frio (mesmo com coberta e saco de dormir). Antes das seis e meia eu já estava acordadíssima. Acendi minha lanterninha e comecei a me organizar, do modo mais silencioso que pude. Empacotadas minhas coisas, fui pro corredor, para cuidar das minhas bolhas e proteger os dedos dos pés com esparadrapos. Estava nessa função, quando chegou meu amigo coreano. Ficamos conversando, enquanto os outros peregrinos iam deixando o albergue.
Nisso, aproximou-se um senhor americano, que eu havia encontrado na entrada de Sahagún, na véspera, e que vinha esbaforido com a caminhada (devo notar que se trata d uma pessoa com problemas de obesidade, e já chegando aos setenta). Esse senhor havia decidido ficar mais uma noite no albergue do mosteiro, para descansar o corpo. A decisão me pareceu prudentíssima. Ajudei a traduzir sua demanda para Natividad, e emendei uma conversa com ela, sobre Tom e Norma, que me haviam recomendado a hospedagem ali. Tom estava gripado e a companheira de Nati fez uma sopa fresquinha para ele. As duas se lembravam perfeitamente do meu querido casal. Me contaram que Norma foi ao supermercado e comprou ingredientes para que elas fizessem uma salada para todos os peregrinos.  
Ocorre que ontem, justamente, não tinha café da manhã no albergue. Mas nossa conversa estava tao animada, que Nati convidou a mim e a Agustín (o coreano, cujo nome real é impronunciável) para tomarmos um chá com madalenas (nosso velho e bom bolo de bacia). Como o senhor americano e uma senhora sueca, que eu também estava ajudando a traduzir, estavam por ali, pegaram arrego no nosso convite. Nati nos levou ao refeitório e foi fazer o chá. Enquanto tomávamos chá e comíamos os bolinhos, fiquei conversando com Nati sobre a Fundação na qual ela trabalha, e que ajuda crianças pobres no Peru. Eu tinha visto umas fotos e umas frases na parede. Foi aí que Nati me contou que ela e a outra senhora trabalham cinco meses por ano, de domingo a domingo, das seis da manhã às dez da noite, nesse albergue, cedido pelas Beneditinas, para angariar fundos para um projeto educacional que essa Fundação desenvolve no Peru. Nos outros sete meses do ano, elas vão para o Peru e desenvolvem o trabalho in loco. Com lágrimas nos olhos, ela me falava de como esse trabalho no albergue é duro (estamos falando de duas senhoras de mais de sessenta), porque são só elas duas. Ainda por cima, elas cozinham pras Irmãs (oito senhorinhas). Me falou das saudades da família quando estão no Peru. E de como todo esse esforço vale a pena pelos resultados e pelo que elas recebem, na forma de afeta, das comunidades que elas ajudam. Nati é professora aposentada. O trabalho que elas fazem é, principalmente, de capacitação de professores, e de ensino técnico, para tentar garantir melhores oportunidades para as crianças e jovens de áreas muito pobres do Peru.
Como você pode imaginar, Minha Irmã, a essa altura eu já estava emocionadíssima. E ela também. É tão admirável que pessoas entreguem suas vidas dessa maneira, com esse desprendimento, em prol dos seus semelhantes! Eu fiz uma pequena doação e pedi o contato dela, porque estou pensando seriamente em ir ajudá-las, quando eu passar pelo Peru. Estávamos à porta do albergue, nos despedindo, quando começamos a falar sobre fé. Eu contei a ela que tenho muita fé, e que isso aconteceu na minha vida quando eu tinha oito anos e fui a uma missa pela primeira vez. Eu brinquei com ela e disse: Acho que me apaixonei por Jesus, e nunca mais consegui largá-lo. Nesse momento, Nati se emocionou e me disse que ela também era assim. Quando criança, ela pegava o crucifixo da parede e escondia debaixo do travesseiro para dormir perto de Jesus. Porém, há nove anos sua mãe faleceu, e ela se desgostou com Deus, porque ela estava no Peru, e não pôde estar com a mãe na hora de sua passagem. Desde então, ela não queria mais saber de conversa com Jesus. Muito emocionada, ela me disse também que ao me ouvir falar da minha fé, sentiu um aperto no coração, e teve a sensação de que talvez seja tempo de procurar Deus novamente.
Eu, igualmente emocionada, lhe respondi que Deus está onde sempre esteve, ao lado dela. Que sua Mão continua estendida, e que Ele a ama como sempre, e exatamente como ela é. Que tudo que ela precisa fazer é estender a própria mão, para sentir novamente seu Amor e seu Amparo. Nos despedimos com um abraço apertado, e eu saí andando pela rua, profundamente comovida.
Parei num café, na Plaza Mayor de Sahagún, para fazer hora, enquanto as lojas não abriam, porque queria ver se achava uma bateria pra minha câmera. No café, encontrei Rebecca, a americana de Washington. Rebecca também é uma senhora com problemas de obesidade. Contou-me que decidiu fazer o Caminho para mudar a rotina e, eventualmente, encontrar alguma Graça. É curioso como as motivações dos peregrinos são diversas e, ao mesmo tempo, semelhantes. No caso de Rebecca, ela precisava quebrar a inércia do sedentarismo e da obesidade (certamente), para conseguir ter alguma qualidade de vida na velhice. Romper a inércia – de diferentes situações – é uma motivação que tenho visto muito frequentemente. Sair do seu “lugar”, “desarrumar” hábitos, conceitos, atitudes arraigadas, para encontrar um arranjo melhor de si mesmo, parece ser o que muita gente busca no Caminho. Além da obtenção de alguma “surpresa” de ordem espiritual, que as ajude nesse propósito.  
Saí da cidade umas 11 da manhã, sem minha bateria. Fazia um belo dia de sol, com algumas nuvens brancas no céu. Um dia sem chuva (nem ameaça de...), finalmente! Como estava sentindo falta do sol! Acho que a simples perspectiva de um dia ensolarado, me encheu de ânimo e alegria. Na saída da cidade, cruzei uma ponte de arcos, sobre um belo rio, repleto de árvores nas margens. Na sequência, passei por um parque urbano, com alamedas de altas árvores. Pouco adiante, avistei um rebanho de carneiros vindo em minha direção, com seu pastor e uns três cães, bem mais parrudinhos e diligentes que o cãozinho guenzo que eu avistara uns dias antes.
Todo o trajeto de ontem seguia junto à movimentada rodovia N 120. Muito barulho de carros e caminhões. Para fugir desse barulho, em Calzada de Coto, um vilarejo de nada, com sua igrejinha fechada, dobrei à direita e segui por uma via alternativa, a Via Romana. Bem melhor! Caminhei por uma estrada de terra batida, avermelhada, ladeada por ora campos, ora por mato, com uma vegetação de arbustos. Essa estradinha me lembrou certas paisagens agrestes nordestinas. Não sei se foi sugestão do coração saudoso, mas vi Brasil o dia todo. Sempre que eu levantava a vista, via à minha frente as cores da nossa bandeira: verde e amarelo nas folhas, azul no céu e branco das nuvens.
Por essa estradinha alternativa cheguei a Calzadilla de los Hermanillos, onde há uma Igrejinha de paredes caiadas de branco. É a Ermida de La Vírgen de los Dolores. Foi aí que concluí que Ermida nada mais é que uma Igreja pequena. Eu vinha pensando que era um local de acolhida de peregrinos (de natureza religiosa), porque as primeiras Ermidas que visitei eram vãos de pedra, sem maiores traços religiosos que algum crucifixo. Pois Ermidas são Igrejas e os locais de acolhida dos peregrinos, nos tempos medievais, se chamavam Hospital.
A partir de Calzadilla de los Hermanillos, essa via alternativa segue junto a uma estradinha vicinal. Ainda muito tranquilo. Passava um carro muito de vez em quando. Logo à saída do povoado, um senhor muito bem apessoado (de terno e gravata, e num carro chique) me ofereceu carona até Burgo Ranero. Eu agradeci, e disse que precisava andar. Dobrei à esquerda após uns quatro quilômetros, e com mais uns dois, estava chegando a Burgo Ranero. A essa altura fazia um sol forte, de queimar a pele. Cheguei pelos fundos da cidade. Cruzei a estrada de ferro (umas três linhas), com um certo receio. Não sei porque nessas horas a mente da gente fica pensando naquelas cenas de filme, em que aparece um trem de repente e a pessoa, por alguma razão, fica presa nos trilhos.
Me dirigi ao albergue municipal, junto à praça central do povoado. O hospitalero me deu uma cama de verdade, sem beliche! Tomei banho quase frio, mas dessa feita nem achei ruim. Estava tão agradecida pela cama e pelo dia de sol, que resolvi levar o banho frio na boa. Dei um passeio curtíssimo pelas três ruas do povoado, constatei que a Igreja estava fechada, e passei no mercadinho para comprar tomates para meu jantar. Comi uma salada de tomate com queijo de ovelha que me pareceu divina. Os tomates estavam perfeitos! Depois, fiquei escrevendo na mesa do refeitório mesmo. Estava nisso, quando conheci Érico, um gaúcho simpático, que está fazendo o Caminho pela segunda vez. Conversamos um pouquinho, pois já estava dando dez horas, hora do toque de recolher. Érico me mostrou um aplicativo do Caminho, para celular, fantástico. Você monta seu roteiro e ele tem todas as informações sobre distâncias, albergues, localiza você no mapa. Muito massa (chama-se Camino Pilgrim). Obviamente, meu celular, com sua vaga lembrança, não comporta o aplicativo. Fazer o quê. Tenho de me contentar com meu livrinho, que por sua vez já é um grande progresso em relação à listinha xexelenta que eu tinha há poucos dias, como único guia e referência.
Pois é isto, Minha Irmã. Agora mesmo estou muitíssimo bem instalada, em um albergue lindo, em Mansilla de Las Mulas. Tomei banho quente! E a noite promete ser boa e repousante. Minha única preocupação é a bolha do calcanhar, que parece estar querendo infeccionar. Veremos como ela acorda amanhã.
Beijos mil!

Léia

Nenhum comentário:

Postar um comentário