10/10/15
Só para deixar
registrado, hoje faz um mês que comecei O Caminho. Engraçada a sensação de que
tem mais tempo... talvez pela intensidade do que se vive aqui.
Dormi suuuuper bem no
Albergue Gaia! Acordei às 7:15 da manhã. Completamente inusitado. O café da
manhã foi animado, com umas neozelandesas que dormiram no quarto comigo. Como a
Nova Zelândia está no meu roteiro de viagem, pedi dicas e elas me convidaram
para visitá-las e se prontificaram a me ciceronear. Uma delas está fazendo o
Caminho porque perdeu a guarda da filha mais nova, e precisa recomeçar a vida.
Ligar o botão de reset não é nada
fácil, imagina numa circunstância dessas. Já te disse que muita gente em fazer
o Caminho porque deseja justamente apertar o botão de reset e retomar a vida de um jeito totalmente diferente. Megan está
sendo obrigada a isso. Apertaram o botão para ela. Obviamente, é sempre mais
complicado ir a reboque da vida.
Na realidade, esse
trio de neozelandesas me pareceu meio complicado. Senti certa tensão no ar.
Megan acaba de se juntar às duas outras, que vêm caminhando juntas desde Saint
Jean. Ontem, quando elas chegaram ao albergue, uma delas meio que desabafou
comigo, enquanto a outra tomava banho. Chorando, ela me disse que não estava
sendo fácil caminhar com a amiga (que é demasiado falante e alegre). Não dava para
entrar em detalhes, nem eu achei que devia perguntar. Apenas disse algo que
aprendi a uns dois anos, lendo um livro de um xamã Asteca: devemos aprender a
não tomar as atitudes dos outros como algo pessoal. Pense numa coisa
libertadora. Quando a gente consegue compreender que as atitudes dos outros com
relação à gente têm mais a ver com eles mesmos (com suas experiências prévias,
com os traumas e feridas que cada um carrega) do que com a gente, a vida fica
mais leve, e a gente sofre bem menos. Disso para ver se ajudava a acalmar os
ânimos. Deus as ajude a chegarem ao final do Caminho em paz.
Sabe que esse episódio
me fez pensar em como deve ser desafiador fazer o Caminho inteiro com os mesmos
parceiros. É um senhor teste de convivência, porque a maioria das pessoas é
levada aos seus limites. E em situações-limite, a gente nunca sabe como cada um
reage. Eu confesso que estou gostando muito de fazer o Caminho sozinha. Tanto porque
eu vou conhecendo muita gente, e estabelecendo parcerias temporárias, e
conexões muito diversas, como porque também tenho a oportunidade de
efetivamente ficar sozinha para rezar e meditar. Sem falar que eu posso seguir
no meu ritmo de maneira totalmente despreocupada.
Bom, após o café, me
dirigi à estação de ônibus, bem pertinho do albergue, e tomei um ônibus para
León. Vários peregrinos estavam tomando o ônibus, com suas mochilas, pulando
essa etapa de Mansilla a León. Fiquei conversando com um grupo de canadenses,
enquanto o ônibus não chegava. Conversa de peregrino é muito engraçada. Tem uma
parte inicial, em que cada um informa de onde é, tem uma parte em que se diz
onde e quando se começou, quantos quilômetros se está caminhando por dia, e tem
uma longa parte sobre bolhas e outros problemas de saúde vivenciados ao longo
do Caminho.
Uma vez em León minha
primeira providência foi procurar uma bateria para a minha câmera. Contra todas
as probabilidades, consegui encontrar o modelo exato da bateria da minha
máquina no Corte Inglés!!!! Nem acreditei, porque não é uma bateria comum. Pois
tinha um único exemplar genérico da bateria (a minha câmera é Sony). Feliz da
vida e agradecidíssima, comecei meu passeio por León.
O Corte Inglés fica
fora do Centro Histórico, numa área totalmente moderna e sem nenhum charme. Caminhei
um pouquinho por uma rua bem movimentada, até chegar a uma Igreja de São
Francisco. Quando olhei pra cima e vi os bracinhos de São Francisco e de Cristo
cruzados, que são o símbolo da Ordem, entrei na Igreja, cuja fachada não
chamava muita atenção. O interior é simples e sem maiores atrativos.
Certamente, o prédio foi bastante descaracterizado. De todo modo, aproveitei
para fazer minhas orações matinais.
Segui caminhando e
cruzei uma grande avenida. Uns poucos metros à frente avistei os primeiros
edifícios com cara de antiguidade, e as entradas de ruazinhas estreitas.
Caminhei bastante por todo o centro histórico de León, que é bastante tortuoso.
Não é fácil de andar, como em Burgos. As ruazinhas de León fazem curvas e
emendam umas com as outras. Daria para pessoa se perder fácil, se não fossem as
torres da Catedral. O Centro Histórico estava movimentadíssimo. Logo que
entrei, na primeira ladeira, me deparei com uma feirinha de antiguidades.
Pessoas expunham todo de tipo de objetos antigos, ora no chão, ora em mesas
improvisadas. Vi tanta coisa interessante! Ah, se eu tivesse dinheiro!
Na Plaza Mayor -- um
extenso quadrilátero, com as típicas galerias, com muitos restaurantes,
confeitarias e lojas de produtos típicos --, havia uma feira de frutas e
verduras. A praça estava cheia, vários locais com seus carrinhos de feira, e
muitos turistas, espanhóis mesmo. Descobri, depois, que segunda-feira é feriado
nacional. Ou seja, esse é um fim-de-semana de feriadão. Por isso a cidade estava
tão apinhada de gente.
A Catedral fica em
outra praça, que também estava apinhada de gente. Quando eu me aproximei da
entrada, um carro antigo, preto, vinha encostando. Dele saiu uma noiva, que foi
recepcionada pelo pai. Como todos que estavam na praça, fiquei espiando a
entrada da noiva na Igreja monumental. Após sua passagem, fecharam os portões e
nos avisaram que a Catedral reabriria para visita após as duas e meia. Fiquei
admirando o edifício pelo exterior. Do lado de fora, a Catedral de León é menos
impressionante que a de Burgos. Creio que é um pouco menor, não fica numa
elevação, como a de Burgos, e tem uma fachada mais sóbria, menos floreada. Em
compensação, tem muuuitos vitrais. Fiquei só imaginando como ela devia ser
impressionante dentro. E digo menos impressionante que a de Burgos, porém,
impressionante de todo modo! Tem algo nela que lembra Notre Dame.
No pátio da Catedral
tem umas escadas que conduzem a um subterrâneo onde se podem visitar restos de
uma fortaleza romana, do final do século primeiro depois de Cristo! Houve um
acampamento romano bem no lugar onde foi construída a Catderal. León foi uma
cidade murada. Vários trechos da antiga muralha medieval podem ser vistos em
diferentes pontos do centro histórico. Tal como a de Mansilla, a muralha
leonesa é feita de seixos colados com algum tipo de argamassa. Nota-se que ela
foi restaurada, e em diferentes épocas, mas ainda assim é uma vista
interessante, particularmente o trecho junto à Igreja de San Isidoro, mais
extenso e no qual se podem ver torres.
Visitei a Igreja de
Nossa Senhora do Mercado. Bem lindinha, no pesado e sóbrio estilo românico, com
os frisos em xadrez e os capitéis com flores e figuras míticas que tanto me
agradam. O interior é muito simples, com dois altares laterais barrocos, porém
em madeira, sem cobertura de ouro. Tal como várias das Igrejas que tenho
encontrado ao longo do Caminho, trata-se de uma edificação meio remendada, com
intervenções evidentes e de épocas distintas, certamente destinadas a evitar a
ruína do edifício. Ainda assim, os traços mais típicos e mais preciosos do
românico estão preservados. Como eu te disse, adoro os capitéis e figurinhas
míticas que decoram o exterior dessas Igrejas. A Igreja da Colegiata de Santo
Isidoro também é nesse estilo, só que parece mais intacta. Imagine que na
fachada principal, acima da entrada da Igreja, os signos do Zodíaco estão
esculpidos na pedra! Achei um barato! O
prédio é do século XI. Parece que esse tipo de decoração pagã foi
proibida após o Concílio de Tentro. Uma pena. O efeito é interessantíssimo. Aliás,
imagino que deve haver estudos interessantes explicando essa convivência entre
o sacro e o profano em importantes Igrejas da época medieval. Os capitéis da
Igreja de Santo Isidoro são preciosos. E o retábulo do Altar principal é lindo.
São painéis pintados a óleo, contando a vida de Maria, a Paixão de Jesus e seus
milagres. Cada painel tem uma moldura dourada, toda trabalhada, como se fosse
uma torre. Parece com o de Santa Maria del Castillo (o que foi roubado). Pelo
estilo, imagino que seja de artesãos flamencos.
Ainda entrei na Igreja
de São Marcelo, sem nenhum interesse. E passei por um edifício que sugere um
castelo de pedra, desenhado por Gaudí. Perdoe a heresia, Minha Irmã, mas achei
o prédio quase cafona. Entre o prédio de Gaudí e a Colegiata, há um belo parque,
chamado Parque del Cid, que tem ao fundo um pedaço da muralha (totalmente
restaurado) e à frente ruínas romanas. Comi salgados e doces deliciosos numa
pastelería incrível e comecei minha caminhada de volta à estação de ônibus. A
rua que vai da Catedral até a praça onde está o prédio de Gaudí (Casa de
Botines) é mais ampla que as ruazinhas estreitas e coloridas do miolo do centro
histórico. E essa rua, cheia de restaurantes, bares, cafés, lojinhas, vai se alargando
até chegar à praça onde está a Casa de Botines. Daí pra frente, ela se abre
ainda mais e dá origem a uma ampla avenida, que logo no início tem uns poucos
edifícios de feição francesa, tipo Belle Époque. Logo a paisagem assume as
feições de grande centro urbano, até que se chega num grande girador, após o
qual está uma ponte que dá acesso à estação de ônibus. Ao pé do rio há um
agradável parque, com alamedas de árvores e jardins franceses. O rio é bonito,
arborizado em amplos trechos. A paisagem, com as cores do outono, é cheia de
charme.
Peguei o ônibus das
cinco de volta a Mansilla. Já estava com os pés bem cansados. Foi interessante
chegar em Mansilla pelo lado da muralha. Quando cheguei ao albergue, Marisa e
Carlos estavam me esperando para tomarmos um chá. Dessa vez, foi ela quem
comprou biscoitinhos. Aliás, ela manda abraços para você e para a família. Eu
disse a ela que estou escrevendo cartas diárias.
Agora de noite, faz
pouco, estava só ouvindo uma conversa curiosa, entre um alemão, um dinamarquês
e uma holandesa. Eles conversavam sobre como, em seus países, os pobres estão
ficando mais pobres, os ricos estão ficando mais ricos, e a classe média estão
encolhendo. Eu não dei nenhum pitaco. Estou aprendendo a ouvir mais e falar
menos!!! Só pensei com meus botões: bem-vindos à realidade de boa parte do
mundo. Eles também reclamavam da crise de autoridade nas escolas, onde os
alunos estão cheios de direitos e não respeitam mais os professores. Se a
Alemanha está assim, avalie só... Ah! E o alemão também estava falando sobre a
questão da imigração. Ele fez um comentário semelhante ao que ouvi de Daniella
(lembra da moça alemão que eu encontrei num café, que tinha perdido a mãe fazia
pouco?), expressando desagrado com a ideia de que em algumas décadas a Alemanha
será muçulmana. Lembro que quando Daniella fez esse comentário, ela disse que
na Alemanha não se pode dizer isso em voz alta, porque você é acusado de nazista,
mas que, no fundo, essa é uma preocupação que os alemães têm, porque por cima
da imigração tem a questão das diferenças das taxas de natalidade, além do fato
dos muçulmanos não se integrarem culturalmente. Não posso deixar de entender a
natureza desse tipo de inquietação. Essa é realmente uma questão complexa.
Enfim, como te disse,
fiquei quieta, só escutando, enquanto dava um jeito na minha Credencial de
Peregrino, que amanheceu toda molhada, com água que vazou da minha bolsa d’água.
Alguns selos ficaram borrados, mas eu já ajeitei tudo, com fita adesiva. Amanhã
retomo minha caminhada. Tenho a impressão de que a bolha está melhorando. Estou
monitorando, e te darei notícias.
Boa noite, Minha Irmã!
Grande beijo no seu
coração,
Léia
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