25/10/15
Oi, Nica!
Hoje foi dia de vencer
o grande desafio dessa última etapa do Caminho Francês: a subida dO Cebreiro. A
certa altura dessa subida, numa curva de estrada, no meio da mata, há uma
espécie de refúgio. Ali, vi uma plaquinha pintada, com essa frase: A felicidade não é destino. A felicidade é a
atitude com que se encara a vida. O problema com frases do gênero é que
muitas vezes elas soam com algo fácil de dizer e difícil de concretizar na vida
real. Especialmente difícil quando se está imerso em alguma situação grave, e
que gere muita dor. Eu sei disso, porém, tendo a acreditar cada vez mais que
são nossas reações diante dos fatos que definem nosso estado de espírito. Quanto
mais resistimos aos fatos, mais sofremos com eles. A felicidade, ou talvez seja
melhor dizer, a paz de espírito decorre da entrega e da aceitação da realidade.
E com isso não quero dizer nem que seja fácil se sintonizar nesse estado de
paz, nem que se deva assumir uma postura acomodada e meramente passiva diante
da vida. É muito mais a ideia de ajustar nossas expectativas às nossas
circunstâncias, e de reconhecer os limites da nossa vontade. Enfim. Fiquei com
essa frase na cabeça ao longo o dia, meditando sobre ela.
Mas, voltando ao
começo do dia, acaba que não dormi bem no albergue de Vega de Valcarce porque
senti um pouco de frio. A manta que eles me deram (1 euro, por sinal), era
muito fininha. Não deu pra nada. Acordei de noite e pus mais roupa, pra me
aquecer. Tomei café da manhã no albergue mesmo, na companhia dos hospitaleros, Jus e Lalo (o dono). Eles me
fizeram um suco de laranja que estava divino! Segundo Jus, o inverno é que é a
época das laranjas. E, realmente, tenho tomado sucos de laranja que parecem um
mel de tão docinhos. Enquanto comíamos, rolou uma conversa curiosa sobre altos impostos,
corrupção e falta de interesse dos políticos em investir num sistema de educação
pública realmente efetivo.... Qualquer semelhança será mera coincidência?!
Confesso que estou impressionada com a similaridade entre as queixas que tenho
escutado dos europeus e as nossas próprias.
Bom, já eram umas dez
da manhã quando tomei meu rumo. O dia estava ensolarado, com algumas poucas
nuvens no céu. Pude ver as ruínas do castelo com maior nitidez. Na saída do povoado,
avistei uma lojinha com rosários coloridos pendurados no enquadramento da
janela. Parei e comprei um crucifixo feito à mão. O autor das peças é um
colombiano radicado na Espanha. Um velho hippie,
de barba comprida e toda branca. Ficamos conversando um pouco. Engraçado que
quase todos os hispano-falantes que tenho encontrado acham que eu sou
argentina, por causa do meu sotaque falando espanhol. Não sei onde raios fui
pegar esse sotaque. Mas ainda bem que não implico com a Argentina, porque outro
compatriota nosso já estaria P da vida. Esse colombiano ficou tirando onda
comigo.
A primeira parte da
caminhada do dia ainda foi no vale, basicamente numa estradinha vicinal toda
coberta por árvores, muitas castanheiras, claro. Também tenho passado por
macieiras carregadinhas. Algumas dão umas maças vermelhas, lindas, daquelas da
estória da Branca de Neve. Outras são macieiras silvestres, e dão umas maças
pequeninas e esverdeadas. As macieiras da Branca de Neve normalmente estão em
propriedades privadas. Já as silvestres, muitas vezes, crescem na beira da
estrada e dá pra você colher uma ou outra maçã. São gostozinhas.
Cruzei o pequeno
povoado de Ruitelan, ao pé de um enorme viaduto. Sua Igrejinha estava aberta. Entrei,
rezei e estampei minha credencial. A Igrejinha tem uma pia batismal de pedra,
com toda cara de ter alguns bons séculos de existência. O último povoado antes
do início da subida dO Cebreiro chama-se Herrerías. É um povoado charmoso, que
se estende ao longo do sopé de uma montanha. Tem uma pequena ponte de pedra, de
um só arco, ogival. Parei num café, comprei uma pera, usei o banheiro e tomei
fôlego para a subida de quase 700 metros, que todos dizem ser desafiadora.
A paisagem dessa
subida é lindíssima. A gente vai por uma estradinha de terra, em meio a uma
mata virgem, cheia de árvores cobertas de musgos e trepadeiras. E nessa época
do ano, então, já se vê toda a paleta do Outono. E quando a gente vai chegando
mais alto, que se acabam as matas, acho que a paisagem é ainda mais
deslumbrante, porque se avistam todas as montanhas ao redor, com os vales pelo
meio, as encostas das colinas, ora verdes, ora cobertas de árvores de todas as
cores, ora cobertas por um tapete de samambaias vermelhas, alaranjadas e
amarelas.
Foi ainda na mata que
encontrei o refúgio que mencionei a princípio: El Buho de Atenea. Alguém pintou
uns banquinhos e pôs umas plaquinhas simpáticas numa clareira bem convidativa, bem
no topo de uma subidinha. Aproveitei para descansar e meditar um pouco. É tão
boa essa sensação de estar no meio da natureza, ouvindo só os barulhos da mata,
respirando o cheiro da terra e das folhas, ainda úmidas da chuva da véspera...
De vez em quando passava algum peregrino. Mas eu fiquei lá, sentadinha,
concentrada em mim mesma, procurando me sintonizar com Deus por meio da sua
Criação. Depois de uma meia hora, me levantei e segui por essa estradinha até
chegar a um minúsculo povoado chamado La Faba. Dei logo de cara com um bar que
estava cheio de peregrinos. Tratava-se, na realidade, de um bar-pousada, bem
alternativo: El Refugio. Vi uns crepes com cara boa e resolvi almoçar. Comi um
crepe de húmus, com tempero indiano, delicioso! A atendente era brasileira.
Estava fazendo o Caminho com o namorado, eles se encantaram com o lugar e
resolveram ficar, trabalhando como voluntários. Enquanto comia, fiquei
conversando com uma americana de Miami, Karen. Acabei comendo metade do crepe
dela também, porque ela fez redução de estômago e só consegue comer pouco.
A essa altura o tempo
estava começando a mudar. O céu ficou nublado e com cara de chuva. Retomei a
caminhada, na esperança de chegar a O Cebreiro antes da chuva cair. Dei uma
paradinha a poucos metros do bar onde havia comido. Nisso passaram por mim três
peregrinos. Um senhor e uma jovem negros e um rapaz branco. Negros sempre
chamam a minha atenção no Caminho porque são muito raros. Fiquei pensando se
seriam de algum país africano. O rapaz branco falou algo comigo em inglês. Nos
desejamos Buen Camino. Eles seguiram à frente e eu fui logo atrás. Daqui a uns
minutos eles param e eu escuto um “Ôxe!”. Falei logo, vocês são pernambucanos?
Tio e sobrinha, Paulo e Karine, são do Recife. O rapaz, Flávio, é paulista, de
mãe pernambucana (Sertânia). Estão caminhando juntos há várias semanas. Paulo
meio que adotou Flávio. Integrei-me ao grupo e venci, com eles, a parte mais
inclinada dO Cebreiro. Na realidade, achei que o povo faz um pantim muito
grande. Não é uma subida tão dura. Nada que se compare aos Pirineus. Agora, a
vista, como eu já disse, é magnífica! A gente só via montanhas e vales no
horizonte. Aqui e acolá a luz do sol atravessava as nuvens e iluminava algum pedacinho
de vale. Realmente belo.
Antes de chegar a O
Cebreiro, um grande marco de pedra assinala o início das Terras de Galícia! Deixamos
para trás o extenso Reino de León y Castilla, e adentramos a derradeira das
regiões do Caminho de Santiago. Paulo, que está fazendo o Caminho pela quarta
vez, começou a nos contar que a Galícia abrigou muitas “bruxas” e “bruxos” nos
tempos da Inquisição, porque como era uma região mais remota, muitos perseguidos
da Inquisição vieram se esconder por ali. Além disso, a Galícia tem um forte
passado Celta.
Paulo é uma figura!
Uma simpatia, uma alegria, uma espontaneidade contagiantes. E adorei encontrar
meus conterrâneos, voltar a escutar nosso sotaque tão gostoso! Karine e Flávio
também são uns amores. Me senti muito à vontade com eles, desde o primeiro
instante. Paulo me falou muito sobre como era o Caminho até 2011. Ele diz que
nos últimos 4 anos aumentou demais o fluxo de peregrinos, que o Caminho virou
moda e está um pouco descaracterizado. Muita gente vindo fazer mais turismo, ou
pela folia, ou pelo mero desafio físico, mais do que com uma motivação
espiritual ou existencial (ainda bem que encontrei essa galera mais no
iniciozinho da minha caminhada, depois passei a encontrar muita gente que está
em busca de crescer moral e espiritualmente, que está num processo de revisão
da própria vida). O problema, segundo Paulo, é que isso vem gerando mudanças na
atitude dos hospitaleros e da própria
população. Ele contou que nas primeiras vezes em que fez o Caminho, quando
passava pelos povoadozinhos, os moradores mandavam bilhetinhos pra Santiago,
pediam pros peregrinos rezarem por eles, e tratavam os peregrinos como pessoas
muito especiais. Realmente, não é exatamente isso que a gente sente. Muitos
locais me desejam Buen Camino quando
eu passo pelos povoados (e encontro alguém na rua!), mas há muitos também que
não te dão a menor bola. Enfim, como tudo na vida, o Caminho também há de ser
cíclico. Em uns anos a moda passa e o espírito do Caminho ficará.
Na subida dO Cebreiro
vimos uns peregrinos a cavalo. Tem uma pequena empresa que vende o serviço só
nessa etapa de subida e descida dO Cebreiro. Peregrinos fazendo o Caminho a
cavalo, de verdade, só vi um casal até aqui, bem lá no início. A grande maioria
vai a pé mesmo, e tem uma proporção razoável de ciclistas. Essas são as três
formas reconhecidas de peregrinagem.
Um enorme muro de
pedra denuncia a chegada a O Cebreiro, que está no cume de um monte, a 1.300
metros de altitude. Fizemos a parte final da subida com muito vento (gelado!) e
alguma chuva. O Cebreiro é uma cidade toda de pedra. Absolutamente todas as
casas, e a Igreja de Santa María A Real, são de pedra. O Cebreiro tem um ar bem
turístico. Há algumas boas pousadas rurais, algumas lojinhas de souvenires,
restaurantes onde toca constantemente música celta. Aliás, a gente já entrou na
cidade ouvindo música celta no ar. Como a Igreja fica bem na entrada, paramos
logo para fazer nossas orações e conhecer o edifício, de arquitetura
pré-românica (séc. IX). Por fora, a Igreja é toda de pedra, conforme mencionei.
Dentro, ela tem as paredes caiadas, e grandes arcos de pedra, arredondados,
separando a nave principal das laterais. No altar principal, apenas um grande e
belo Crucifixo, do século XII. O arco do acesso a uma das naves laterais tem
forma de ogiva. Bíblias em várias línguas estão expostas num armário de vidro.
Em destaque, na nave da esquerda, o túmulo de Do Elias Valiña, que foi o
religioso responsável pela invenção das flechas amarelas para marcar o Caminho
de Santiago. Observando que muitos peregrinos se perdiam, Don Elias juntou um
grupo de estudantes e começou a sinalizar o Caminho com as inconfundíveis setas
amarelas.
Após a visita à
Igreja, peguei minha mochila no principal hotel da cidade e fui com meus novos
companheiros para o albergue municipal. No caminho, já deu para vermos toda a
pequena cidade, que ainda preserva umas duas casinhas arredondadas, de pedra,
com telhado de palha. O albergue municipal é bem simplizinho, mas estava com
aquecimento ligado, o que, pra mim, é a glória. O detalhe pitoresco é que os
chuveiros não têm porta (os banheiros de homens e mulheres são separados! Coisa
que não se verifica em todos os albergues). Me senti de volta aos meus tempos
de estudante. Acho que a última vez em que tomei banho em chuveiro quase
coletivo foi quando fui ao Congresso da UNE! Mas a água estava quentinha, e
isso é também o mais importante. Paulo e Karine me apresentaram a um outro
grupo de brasileiros que também estavam no albergue.
O banho teve de ser
corrido porque chegamos a O Cebreiro pouco antes das cinco da tarde, e tinha
missa às seis. Como era domingo, corri pra chegar a tempo da missa. Cheguei à
Igreja basicamente na hora em que o Padre estava subindo ao altar. As duas
leituras, o Salmo e a Oração da Comunidade foram todas feitas por peregrinos,
em diferentes línguas: italiano, francês, inglês e espanhol. Achei muito legal.
Ao final a missa, o Padre nos deu a Bênção do Peregrino. A brasileirada estava quase
toda na missa.
Já fazia muito frio
quando saímos a Igreja. Passei num mercado, comprei umas besteiras e voltei pro
albergue. Não estava nem um pouco a fim de sair e novo, naquele frio, para
comer. Sem falar que as ruas de O Cebreiro são calçadas com seixos, ou seja, um
piso totalmente irregular. Sem as botas, é sofrido pro meu pé caminhar nesse
tipo de superfície. Então, enquanto a galera saía pra caçar onde comer, eu fui
pro refeitório e já estava me instalando para começar a comer e te escrever,
pra te atualizar das novidades, quando chegou Nacho, um espanhol que foi
adotado pelos brasileiros. Dividi minha ceia com Nacho, que tinha ganho uma
tortilla e tivemos uma conversa bela e inspiradora.
Nacho (nome de
batismo, Inacio) ficou desempregado no ano passado e começou a fazer bicos. Por
complcaçõoes familiares, resolveu aceitar um convite para trabalhar como
voluntário num mosteiro Zen, na Itália. Depois de alguns meses nesse lugar, resolveu
partir. E aí começou a fazer o Caminho de Santiago a partir de Roma! Detalhe:
sem um tostão no bolso. Ele veio andando dependendo exclusivamente da
Providência Divina. Procurava os mosteiros e paróquias, pedia abrigo e comida.
E em algumas ocasiões, em cidadezinhas onde as Igrejas estão fechadas e o padre
só aparece em domingo ou Dia Santo, ficou dependendo dos Homens de Boa Vontade.
Ele me contou cada situação miraculosa, em que ele pensava que ia ter de dormir
ao relento, e, de repente, aparecia uma criatura para abrigá-lo e alimentá-lo.
Ele espera chegar a Santiago desse jeito. E está quase. Nesse meio tempo, ele
parou umas duas vezes porque foi convidado para trabalhar como hospitalero voluntário, em albergues do
Caminho.
Eu fiquei
impressionada! Essa conversa foi um grande aprendizado para mim. Eu sempre me
considerei uma pessoa de muita fé, e, no entanto, não sei se teria tamanho
desprendimento. Lançar-se na estrada inteiramente entregue à Providência Divina
requer uma coragem, uma entrega Total! Admirável.
Ao mesmo tempo, tem
algo de muito triste nessa história, que revela um drama de muitos espanhóis e
italianos que tenho encontrado. As crises nesses países jogaram as pessoas num
cenário sombrio, marcado pela falta de perspectivas, pelo pessimismo, pela
desesperança. Eis uma questão delicada e complexa.
Pois foi essa a
aventura do dia, Minha Irmã! Mais uma etapa vencida. O pé resistiu bem à subida
dO Cebreiro. São mais 10 dias até Santiago, considerando etapas mais curtas, para
poupar o pé. Pedindo a Deus a Graça de chegar.
Beijocas, Nica,
Léia
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