segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 24


05/10/15

Boa tarde, Niquinha!
Te escrevo de Calzadilla de la Cueza, um povoadinho no meio do nada. Hoje percorri apenas os 17 kms que separam Carrión de los Condes, onde dormi ontem, de Calzadilla. Agora, pense numa caminhada pesada. Foram 17 kms compriiiiidos! Em primeiro lugar, amanheceu chovendo horrores. Dormi muito bem, mas oito horas da manhã tive de deixar meu quarto, no Convento de Santa Clara. Ainda estava meio escuro e me dirigi a um café próximo, para comer e fazer hora. Aproveitei para batizar meus bastões. Dei a eles os nomes de Cosme e Damião. Inscrevi os nomes com a ponta da minha faquinha.
Do café, fui a um albergue de outras Irmãs (não sei a congregação), para pedir que confirmassem com o rapaz do transporte de mochilas que ele passasse em Santa Clara. A Irmã que atendeu a porta foi uma gracinha, ligou pro rapaz e deixou tudo acertado pra mim. Ela mencionou que ia assistir missa em Santa Clara e, como ainda chovia muito, e eu não tinha entrado na Igreja do Convento, resolvi ir com ela. O atual prédio do Convento é do século XVII, com visíveis adições ou reformas posteriores. Não é uma edificação especialmente bela. A Capela tem duas coisas que me chamaram a atenção. Um altar lateral com uma grande talha em forma de coração que serve de moldura a um Cristo crucificado e uma pintura inusitada para mim, de um Cristo crucificado com grandes asas de anjo, “conversando” com São Francisco, com uma expressão quase alegre no rosto. Achei um barato essa representação.
Lá no fundo da Igreja, uma área reservada para as Irmãs, decorada com azulejos. Elas assistem à missa por detrás de umas grades, e na hora da Comunhão, o padre vai até elas. Pelo que me lembre, foi a primeira vez que assisti a uma missa num Convento de freiras reclusas. Portanto, essa coisa da grade eu só conhecia de filmes. As Irmãs fizeram as leituras e cantaram (acompanhadas de um violão) ao longo da celebração. E uma outra curiosidade, o padre fez o sermão no início, antes do Perdão, sentadinho numa cadeira de espaldar alto, à direita do Altar.
Terminada a missa, voltei ao café e tomei mais um chá. Continuava a chover cântaros! Muita gente estava nesse café, comprando bilhetes de ônibus para a próxima cidade maiorzinha. Como chovia muito, e ontem minha capa de chuva já não tinha dado conta do recado direito, resolvi passar numa loja de artigos para peregrinos. Comprei uma calça impermeável (para ver se evito de molhar minhas meias e, consequentemente, meus sapatos) e uma jaqueta também, para colocar por debaixo da minha capa. Vesti tudo na loja mesmo e saí pronta para enfrentar as intempéries. Felizmente, quando pus o pé fora da loja, tinha parado de chover.
Saí de Carrión com tranquilidade, passei em frente ao Mosteiro de San Zoilo (que em princípio tem um belo claustro, mas fecha às segundas), cruzei dois grandes giradores e caminhei por um tempo no acostamento de uma estradinha vicinal. Após alguns quilômetros, finalmente, o Caminho se afasta da estrada asfaltada e segue em meio a campos de cultivo, aqui e acolá pontuados por árvores. Certamente são mais de doze quilômetros de caminhada numa linha reta, sem praticamente nada no meio. Nenhum povoado, apenas duas áreas de descanso, com mesas e bancos de madeira ou de pedra. Eu, pessoalmente, fico muito mais cansado quando tenho de vencer grandes distâncias assim, sem uma quebra no meio, sem um povoadozinho para tomar um chá e fazer uma pausa mais prolongada.
Além disso, o tempo ficou instável o dia todo. Chovia e parava, chovia e parava. Essa instabilidade é meio chata, porque a pessoa fica tirando e botando capa de chuva (pois a capa esquenta muito). Mas o pior de tudo foi o vento. Ventou horrores hoje. Pior do que ontem, que também foi dia de chuva e vento. A pessoa tinha que fazer um esforço redobrado, porque o vento soprava ora de frente, ora de lado, sempre com muita força. Quando eu parava, se não estivesse bem firme, eu me desequilibrava. Os passarinhos não conseguiam voar, e tinham dificuldade para ficar paradinhos nos galhos dos arbustos. Havia inúmeros pássaros nos campos. Imagino que estivessem tentando comer os grãos recém-semeados. Engraçado porque o vento me trazia o canto deles, mas eu não conseguia vê-los. Achei que estivesse imaginando coisas. Até que os vislumbrei, passeando em meio à terra, porque não conseguiam voar. Como eles eram da mesma cor da terra, o mesmo ocre ao qual já me acostumei, não era tão evidente vê-los.
Juro que hoje eu queria pedir arrego. Já estava exausta quando vi uma indicação pintada numa ponte, de que ainda faltavam seis quilômetros para chegar ao povoado! Ainda caminhei muito sem ver nenhum sinal de civilização à frente, até que vislumbrei uma torre, que imaginei ser de Igreja, e me animei com a ideia de estar chegando ao meu destino. Quando fui me aproximando, vi que não era uma torre de Igreja, porque estava claramente no meio de um cemitério. Como não conseguia ver nenhuma outra edificação por perto, chega fiquei triste. Pensei: Senhor, não me diga que essa cidade ainda está longe! Felizmente não estava. Ao chegar ao topo de uma encostazinha, pude ver o pequeno povoado de Calzadilla, alguns metros à esquerda da tal torre.
Estou no Albergue Municipal, que é excelente (e no precinho: 5 euros). Tudo novinho em folha, wi-fi, lavanderia, cozinha e, o mais importante (!!!), um bom cobertor! Cheguei aqui com chuva e nem me animei a sair para comprar comida fresca do mercado. Comprei uma massa numa vending machine que tem na cozinha e me alimentei por aqui mesmo. O inconveniente é o toque de recolher, às nove da noite. Paciência.
Minha primeira bolha já está quase sarada. Já a que me apareceu ontem, no calcanhar, continua com muito líquido. Sarjei de novo hoje, e deixei a linha dentro. As duas bolhas são no pé esquerdo, que eu estou sobrecarregando por causa da inflamação no pé direito. Desta última já estou quase curada. Hoje já tente reequilibrar minha marcha, pra evitar sobrecarga no lado esquerdo do corpo. As costas também estão bem melhores. Faz uns quatro dias que suspendi a pomada anti-inflamatória. O incômodo nas laterais do quadril também diminuiu, creio eu que em função dos alongamentos que estou fazendo. Estou alongando antes, durante e depois da caminhada. Porém... hoje meu punho esquerdo começou a dar sinal de vida. O uso dos bastões acaba demandando um tanto dos punhos. Mas espero que não seja nada demais.
Aqui em Calzadilla reencontrei uma americana que eu vi nos primeiros dias de caminhada, Rebecca. Ela estava caminhando com a filha, que teve de voltar para os Estados Unidos quando elas chegaram em Burgos. É interessante isso de você, de vez em quando, reencontrar alguma carinha conhecida. Isso é raro, no meu caso, porque caminho mais devagar que a maioria. A maior parte das pessoas que conheci já vai longe. Tenho falado com Norma e Tom por email quase todos os dias. Faz três dias eles já estavam em Leon. É improvável que eu consiga reencontrá-los aqui na Espanha. Quem sabe eu vá visitá-los nas Filipinas!
Por hoje é isso, Nica. Rezando para amanhã não ser tão chuvoso.
Espero que esteja tudo bem por aí. Beijos cheios de saudade,

Léia

Nenhum comentário:

Postar um comentário