24/10/15
Niquinha, Querida,
Deixei Villafranca del
Bierzo com um sentimento de profunda gratidão, aos meus anfitriões, claro, mas
principalmente a Deus. Mercê me levou até a porta e nos despedimos com lágrimas
nos olhos. Marta, a senhora responsável pela limpeza, também se despediu de mim
com muito carinho. O dia estava nublado e como estava com cara de chuva, pus
minha calça impermeável e o casaco. Mais à frente, acabei por tirá-los, porque
não choveu e essas roupas impermeáveis esquentam demais. Comecei caminhando à
beira de uma estrada vicinal. A certa altura, virando-me para trás, pude ver
Villafranca encravadinha em meio às colinas. Muito linda essa cidadezinha!
Caminhei o dia todo
num vale, passando entre as encostas das montanhas, praticamente o dia todo
margeando o rio Pereje. Acho que já te disse que adoro caminhar acompanhando o
curso dos rios, porque sempre dá pra gente escutar o barulhinho bom das águas
correndo. Nessa etapa do Caminho, o rio foi meu contraponto feliz e inspirador
ao movimento das rodovias. De fato, andei o dia todo ao pé de alguma estrada,
às vezes junto a uma grande rodovia, às vezes à beira de uma estrada de menor
porte. Por cima de alguns povoados, avistei altíssimos viadutos, cruzando os
vales, conectando as colinas. Felizmente, em certos trechos da estradinha
vicinal ao longo da qual caminhava, as árvores, muito altas, quase se tocavam acima,
formando bonitas alamedas. Tenho a impressão de que a vegetação está cada vez
mais amarela e laranja. E o chão começa a ficar coberto de folhas secas, em
tons de marrom. Aliás, caminhei contemplando a queda das folhas, que mesmo ao
vento suave, de desprendem dos galhos e caem delicadamente no chão. É bonito de
ver e de ouvir também! Quando o vento é suave, as folhas produzem um delicado
barulho ao se soltarem dos galhos e fazerem sua lenta aterrissagem no chão.
Passei por muitíssimas castanheiras, e vi gente colhendo castanhas pelo chão.
Atravessei quatro
pequenos povoados (Pereje, Trabadelo, La Portela de Valcarce e Ambasmesta),
cada qual com sua Igrejinha de pedra, de torre única, vazada. Pude entrar na Igreja de São Pedro, em
Ambasmestas, e rezar um pouco. Fico sempre feliz quando as Igrejas estão
abertas e eu posso entrar e orar. Essa é uma Igrejinha bem simples, e bela na
sua simplicidade. No topo do retábulo do altar, dedicado a São Pedro, um Cristo
crucificado, com um sol e uma lua pintados de cada lado. Essa é, aliás, uma
constante dos retábulos espanhóis, o sol e a lua, um de cada lado da Cruz. Acho
muito interessante.
Vega de Valcarce, o
povoado que era o meu destino do dia, é uma cidadezinha até charmosa, situada
num vale todo cercado de colinas. No alto de uma delas, as ruínas de um antigo
castelo (sec. IX) observam a cidade. À entrada, passei por hortas cheias de
belas couves, e jerimuns absolutamente imensos. A Igrejinha de Veja, também de
pedra, porém com uma torre de quatro paredes, não tem muita graça. Parece ser
um prédio de construção mais recente. Certamente fruto de alguma reforma
importante. Hospedei-me num albergue chamado El Paso. Mais um albergue novinho
em folha, instalado num velho casarão reformado. Nada semelhante ao Leo, claro.
El Paso é um albergue com cara de albergue. Mas muito bonzinho. Havia pouca
gente. Além de mim e de um casal de americanos, havia apenas um grupo de
coreanos, que falavam pouquíssimo inglês. Diga-se de passagem que tem me
surpreendido a quantidade de coreanos que estão fazendo o Caminho.
A hospitalera, María Jesús (Jus), foi muito solícita. Providenciou
água quente para o meu pé e cuidou da lavagem da minha roupa. Enquanto punha o
pé na água quente (por causa do calinho de sangue), comi uma boa salada. Os
coreanos estavam todos na cozinha e prepararam uma lauta refeição. Também
cozinharam uma panela grande de castanhas, que certamente apanharam pela
estrada. Jus mostrou a eles como se abriam as castanhas e ficou me contando que
essa região tem muitíssimas castanheiras que foram plantadas pelos romanos!
Parte dessa área do Norte da Espanha foi ocupada pelos romanos (daí porque há
as ruínas em Burgos, em León...), e as castanhas foram ali introduzidas porque
podem ser conservadas durante todo o ano, e têm muita sustança. Jus disse que
os camponeses, de manhã, antes de subirem para os montes, para trabalhar,
cozinhavam as castanhas com leite, e que aquilo lhes quedava no estômago por
muitas horas. Diz ela que também é uma boa comida para os peregrinos. Vou ver
se provo.
E assim passou-se mais
um dia, Niquinha. O pé parece ter reagido bem à retomada da caminhada. Pelo
menos não inchou mais. Se continuar assim até Santiago, me dou por satisfeita.
Beijos mil, Minha
Irmã,
Léia
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