terça-feira, 27 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 38


24/10/15

Niquinha, Querida,
Deixei Villafranca del Bierzo com um sentimento de profunda gratidão, aos meus anfitriões, claro, mas principalmente a Deus. Mercê me levou até a porta e nos despedimos com lágrimas nos olhos. Marta, a senhora responsável pela limpeza, também se despediu de mim com muito carinho. O dia estava nublado e como estava com cara de chuva, pus minha calça impermeável e o casaco. Mais à frente, acabei por tirá-los, porque não choveu e essas roupas impermeáveis esquentam demais. Comecei caminhando à beira de uma estrada vicinal. A certa altura, virando-me para trás, pude ver Villafranca encravadinha em meio às colinas. Muito linda essa cidadezinha!
Caminhei o dia todo num vale, passando entre as encostas das montanhas, praticamente o dia todo margeando o rio Pereje. Acho que já te disse que adoro caminhar acompanhando o curso dos rios, porque sempre dá pra gente escutar o barulhinho bom das águas correndo. Nessa etapa do Caminho, o rio foi meu contraponto feliz e inspirador ao movimento das rodovias. De fato, andei o dia todo ao pé de alguma estrada, às vezes junto a uma grande rodovia, às vezes à beira de uma estrada de menor porte. Por cima de alguns povoados, avistei altíssimos viadutos, cruzando os vales, conectando as colinas. Felizmente, em certos trechos da estradinha vicinal ao longo da qual caminhava, as árvores, muito altas, quase se tocavam acima, formando bonitas alamedas. Tenho a impressão de que a vegetação está cada vez mais amarela e laranja. E o chão começa a ficar coberto de folhas secas, em tons de marrom. Aliás, caminhei contemplando a queda das folhas, que mesmo ao vento suave, de desprendem dos galhos e caem delicadamente no chão. É bonito de ver e de ouvir também! Quando o vento é suave, as folhas produzem um delicado barulho ao se soltarem dos galhos e fazerem sua lenta aterrissagem no chão. Passei por muitíssimas castanheiras, e vi gente colhendo castanhas pelo chão.
Atravessei quatro pequenos povoados (Pereje, Trabadelo, La Portela de Valcarce e Ambasmesta), cada qual com sua Igrejinha de pedra, de torre única, vazada. Pude entrar na Igreja de São Pedro, em Ambasmestas, e rezar um pouco. Fico sempre feliz quando as Igrejas estão abertas e eu posso entrar e orar. Essa é uma Igrejinha bem simples, e bela na sua simplicidade. No topo do retábulo do altar, dedicado a São Pedro, um Cristo crucificado, com um sol e uma lua pintados de cada lado. Essa é, aliás, uma constante dos retábulos espanhóis, o sol e a lua, um de cada lado da Cruz. Acho muito interessante.
Vega de Valcarce, o povoado que era o meu destino do dia, é uma cidadezinha até charmosa, situada num vale todo cercado de colinas. No alto de uma delas, as ruínas de um antigo castelo (sec. IX) observam a cidade. À entrada, passei por hortas cheias de belas couves, e jerimuns absolutamente imensos. A Igrejinha de Veja, também de pedra, porém com uma torre de quatro paredes, não tem muita graça. Parece ser um prédio de construção mais recente. Certamente fruto de alguma reforma importante. Hospedei-me num albergue chamado El Paso. Mais um albergue novinho em folha, instalado num velho casarão reformado. Nada semelhante ao Leo, claro. El Paso é um albergue com cara de albergue. Mas muito bonzinho. Havia pouca gente. Além de mim e de um casal de americanos, havia apenas um grupo de coreanos, que falavam pouquíssimo inglês. Diga-se de passagem que tem me surpreendido a quantidade de coreanos que estão fazendo o Caminho.
A hospitalera, María Jesús (Jus), foi muito solícita. Providenciou água quente para o meu pé e cuidou da lavagem da minha roupa. Enquanto punha o pé na água quente (por causa do calinho de sangue), comi uma boa salada. Os coreanos estavam todos na cozinha e prepararam uma lauta refeição. Também cozinharam uma panela grande de castanhas, que certamente apanharam pela estrada. Jus mostrou a eles como se abriam as castanhas e ficou me contando que essa região tem muitíssimas castanheiras que foram plantadas pelos romanos! Parte dessa área do Norte da Espanha foi ocupada pelos romanos (daí porque há as ruínas em Burgos, em León...), e as castanhas foram ali introduzidas porque podem ser conservadas durante todo o ano, e têm muita sustança. Jus disse que os camponeses, de manhã, antes de subirem para os montes, para trabalhar, cozinhavam as castanhas com leite, e que aquilo lhes quedava no estômago por muitas horas. Diz ela que também é uma boa comida para os peregrinos. Vou ver se provo.
E assim passou-se mais um dia, Niquinha. O pé parece ter reagido bem à retomada da caminhada. Pelo menos não inchou mais. Se continuar assim até Santiago, me dou por satisfeita.
Beijos mil, Minha Irmã,

Léia

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