sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Cartas para Minha Irmã: a caminho de Santiago de Compostela 32


15/10/15

Boa tarde, Niquinha!
Te escrevo de um lugar mágico: o Albergue Verde. Estou sentada num balanço, em meio a um gramado, com várias árvores de frutas ao redor, redes penduradas, mesinhas, cadeiras e espriguiçadeiras. Reina uma paz grande e escuto um galo que canta de vez em quando. O dono do albergue, Mincho, é uma pessoa muito especial. Todos os anos ele passa os invernos na Índia. É um mestre de Yoga e pelo jeito de falar, compartilha da visão de mundo Zen. A casinha onde está instalado o albergue, que vejo por entre as folhagens das árvores, era um antigo galpão da fazenda de seu pai. Há cinco anos ele reformou tudo e abriu esse albergue. Cheguei aqui ontem, e fiquei tão encantada, que resolvi ficar mais um dia. Para repousar o pé e o cuidar do espírito, mais uma vez. Daqui a pouco farei uma sessão de massagem com um osteopata, que está trabalhando voluntariamente como hospitalero aqui no Albergue Verde. E às seis da tarde farei minha segunda aula de Yoga. Fico tão agradecida por ter tempo e condições de desfrutar dessas pérolas do Caminho!
Mas deixa eu voltar um pouquinho ao dia de ontem e te contar como cheguei aqui. Dormi mal no Refugio de Jesus por causa do frio. Acordei no meio da noite, sentindo frio, me levantei e vesti mais camadas de roupa. Ainda bem que comprei mais umas duas peças mais quentinhas num bazar chinês de León. O problema é que depois, mesmo aquecida, não consegui mais pegar no sono. Tirei uns cochilos, até umas seis e meia, me levantei e comecei a me organizar, ainda no escuro, recorrendo à minha providencial lanterninha de cabeça. Tomei meu café e saí já com o dia claro.
Caminhei, a princípio, no acostamento de uma estradinha vicinal, pouquíssimo movimentada. Ainda que não seja tão aprazível caminhar no asfalto, pelo menos o entorno era bem tranquilo. Pude andar ouvindo os pássaros e apreciando o contraste entre o céu de um azul intenso e o amarelo das folhas das árvores à beira da estrada. Fui meditando e rezando, como muito me agrada fazer pelas manhãs. A distância que eu tinha a percorrer ontem era curta, então fui devagar e tranquila. Em certo ponto, acabou o asfalto e o Caminho seguiu por uma estradinha de terra batida, avermelhada, sempre com muitos seixos. Na entrada do pequeno povoado de Villavante, um rapaz se aproximou de mim e começamos a conversar. Ele é francês. Tinha uns olhos lindos, de um azul  profundo, desses que parece que você vai mergulhar neles se ficar olhando por muito tempo.
Laurent fazia parte da galera barulhenta da véspera, no Refugio de Jesus. Seus companheiros o estavam esperando num barzinho bem no início de Villavante. Eles me convidaram para sentar com eles. Era um grupo bem diverso, dois holandeses, um americano, uma alemã e Laurent. Estavam caminhando juntos há alguns dias. Após os protocolos iniciais de apresentação que já te descrevi, a conversa enveredou para histórias de amor do Caminho. Um dos rapazes estava contando que um viúvo e uma viúva do Canadá, que haviam estudado na mesma escola quando adolescentes, se reencontraram no Caminho, quando voltaram ao Canadá engataram um namoro, e decidiram abrir um albergue numa casa que estava a venda, em frente à qual um companheiro de Caminho lhes havia tirado uma foto no dia do reencontro. E aqui estão eles, levando esse albergue e vivendo em função do Caminho. Uma graça de história, né?
Terminado o lanche, partimos. O grupo logo se distanciou de mim, pois, como lhe disse, estava caminhando devagar para poupar o pé. E assim fui caminhando pelo meio de extensos milharais, com as folhagens já meio secas. Imagino que estejam prontos para a colheita. E tome milharal!
Após cruzar uma rodovia de tráfego intenso, cheguei a Puente, um pequeno apêndice de Hospital de Órbigo, que fica logo adiante. Órbigo tem uma enorme ponte com arcos de pedra. Diz que é uma ponte medieval, porém, a impressão é de que dos tempos medievais devem restar uma que outra pedra, e muitas lendas. A ponte está toda reformada. Nem por isso deixa de ser bonita. Apesar do que, o trecho que passa por cima do rio é bem pequeno (e o que tem cara de mais antigo mesmo). É a segunda pont que vejo que se estende generosamente em solo seco. Isso me deixou curiosa. Vou ver se ainda encontro alguém que me explique a razão de tanta ponte pra tão pouco rio.
Atravessei a Ponte do Passo Honroso, sobre o rio Órbigo e logo avistei a torre da Igrejinha (igualmente descaracterizada), que estava fechada. Uma das lendas dessa ponte é que um nobre cavaleiro, apaixonadíssimo, para conquistar a atenção e a admiração da amada, convocou um torneio, ao qual aocrreram bravos de toda a Europa, enfrentou e derrotou mais de duzentos. Daí o apodo da ponte Passo Honroso. A façanha, ao menos, deu resultado. Ele conseguiu se casar com a amada.
Órbigo é uma cidade sem grandes atrativos. São raras as casas de traços mais antigos. Fui seguindo as indicações de placas e cheguei ao Albergue Verde, que tinha sido mutíssimo recomendado por Marisa e Carlos (do Gaia). Eles falaram tanto desse lugar que resolvi encurtar a caminhada do dia pra poder ficar aqui. Como ele fica meio fora do centro, fui andando e pensando, espero que seja realmente um lugar especial... A fachada prometia. A parede da casa está completamente coberta de hera, um portãozinho simpático, com o nome do albergue acima, esculpido em uma placa de ferro.
Na chegada, a primeira diferença. A moça que me recebeu, uma húngara chamada Elga, me instalou na minha cama e me disse que eu tomasse banho tranquila e quando estivesse devidamente relaxada, retornasse à recepção para fazer o trâmite de apresentar passaporte, carimbar a credencial e pagar! Assim eu fiz, já encantada com o lugar. Tocava uma música ambiente bem suave, e pude sentir o perfume do incenso recém apagado. Na sala, ao lado da mesa de refeições, um ambiente com almofadas e tapetes no chão, de estilo indiano. O dono, Mincho, estava sentadinho numa cadeira e me deu logo as boas vindas. É um sujeito de cabelos compridos e barba, de olhar doce e sorriso acolhedor, aberto, genuíno.
Fiz um pequeno lanche no jardim, esperando a ceia comunitária que haveria à noite. Escrevi um pouco e às dezoito horas fui para a classe de Yoga, que é gratuita. Foi maravilhosa! Já tinha feito algumas aulas de Yoga em diferentes ocasiões (inclusive na fazenda Hare Krishna), e essa foi, sem dúvida, a melhor de todas. Foi uma hora e meia de relaxamento para o corpo, a mente e o espírito. Terminei a aula com uma sensação de leveza e um profundo sentimento de gratidão pelo presente que estava recebendo por meio desse albergue e das pessoas que aqui estão. Quem deu a aula foi Elga. Engraçado porque Elga, apesar de ter me recebido muito bem, parece uma pessoa fechada, e não muito calorosa. Me surpreendeu como sua aula foi boa.
Depois da aula, subimos para a ceia. Outro presente! Antes de começarmos a comer, Mincho pegou o violão e cantou duas músicas de agradecimento pela comida. Mincho fez uma paella vegetariana, com abobrinha, pimentões, berinjela e couve-flor simplesmente divina! E tudo fresquinho, colhido da horta orgânica que ele tem num terreno ao lado do jardim de onde eu te escrevo. Também comemos uma salada incrível e bela, com romã e pétalas de flores. Ah! Ainda tinha um húmus caseiro e umas sementes tostadas cujo nome esqueci. De sobremesa, um bolo de chocolate integral, cujo perfume eu havia sentido à tarde, enquanto cozinhava. Comemos à vontade, e todos os peregrinos estavam maravilhados, comentando que aquela tinha sido a melhor refeição do Caminho, até então.
Enquanto tomávamos infusões digestivas, muito bem-vindas após tanta comida, Mincho falou um pouco sobre meditação, sobre a importância de controlarmos a mente, de modo a dirigirmos nossa atenção à fruição de todas as coisas que estão ao nosso redor, para nosso deleite, do canto dos pássaros, ao sabor do bolo da sobremesa. Sempre que conseguimos “calar” a mente e nos rendermos às nossas sensações no momento presente, estamos meditando, disse ele. Eu tenho descoberto esse prazer de viver no presente por meio da meditação. Ainda estou longe do ponto ideal de viver no presente a todo instante, mas meditar tem me ajudado a estar mais atenta ao que se passa comigo, a como me relaciono com o mundo ao meu redor. Agora há pouco, enquanto escrevia uma carta de perdão no meu caderninho, uma abelha tentava pousar na caneta. Parei a mão e fiquei olhando para ela. Pude sentir a sensação causada pelo bater das suas levíssimas asas na minha mão.
Pode parecer banal essa ideia de viver no Aqui e no Agora, porém, é um desafio, porque a mente da gente está sempre nos projetando para o passado  (com frequência lamentando algo que já passou e que “perdemos”) ou para o futuro (onde ela nos faz acreditar que estão nossas promessas de felicidade). Quando a gente consegue driblar a mente e estar simplesmente PRESENTE, no momento que estamos vivendo, é como se a gente estivesse usando uma lente de aumento, que nos permite experimentar todo tipo de sensação com maior intensidade. E também fica bem mais fácil a gente se libertar das preocupações, porque elas sempre estão relacionadas com o futuro. É claro que a ideia é tentar se concentrar nas coisas boas do presente, e aí o sentimento de gratidão é a ferramenta mais poderosa, pra nos ajudar a alcançar um estado de paz e de leveza. Enfim, é um exercício nada fácil. Estou tentando progredir nessa direção. Dá mais leveza.
Voltando a Mincho, ele explicou ainda que o café da manhã estaria disposto na mesa na manhã seguinte, que nos servíssemos à vontade, e que não havia hora para acordar! Outra coisa maravilhosa! Toda a comida é oferecida em troca de qualquer doação. E ele enfatizou, mostrando a cestinha de doações: Por favor, só coloquem aqui o que vocês puderem dar com o coração. Eu quero abrir isso amanhã e sentir o amor de vocês. É nele que eu estou interessado.
Após o jantar, os peregrinos foram se recolhendo, e eu fiquei conversando com Mincho, que é realmente uma pessoa incrível. Ele manda abraços para você e todos lá em casa.
.......
Niquinha, interrompi a carta para a minha sessão de massagem. Foi tão boa! Deu um alívio grande na coluna e pude sentir o relaxamento da musculatura do pé também. Espero sentir diferença quando caminhar amanhã. A massagem também funciona por doação. Sempre me surpreendo e me encanto com essas pessoas que tão generosamente se doam aos peregrinos! Como eu já te disse, para mim é a maneira mais intensa de sentir o Amor de Deus.
Também fiz a aula de Yoga. Hoje quem a deu foi Mincho. Foi uma sessão bem diferente, mas igualmente linda. E bem leve, para iniciantes. As duas aulas foram muito distintas do que eu conhecia como Yoga. Estou encantada. Decidida a incorporar Yoga à minha rotina quando voltar ao Brasil. Dá uma sensação de leveza tão boa quando termina a sessão!
Hoje, morreu a cadelinha de MIncho. Ela estava muito doentinha e ele chamou o veterinário, para pôr um fim ao sofrimento dela. Ele estava muito triste, e se emocionou ao final da aula de Yoga. Mas sabe que mesmo triste, ele foi tão amoroso o dia todo. E na hora do jantar, cantou e confraternizou com todos com a mesma doçura e o mesmo sorriso franco e acolhedor de sempre. O jantar de hoje foi uma deliciosa sopa de abobrinha, uma salada de lentilhas também muito gostosa, e batata doce assada. Tudo muito gostoso e cheio de amor, o que faz toda a diferença.
Quando terminou o jantar e todos se recolheram, mais uma vez fiquei conversando com Mincho. Ele me desenhou um mapa da Índia e me apontou os lugares mais interessantes para conhecer. Conversamos também sobre a vida. Sinto que encontrei um amigo. Mais uma pessoa que o Caminho me trouxe de presente e com quem, subitamente, estabeleci uma conexão que sinto ser profunda. Mincho se recolheu mais ou menos quando chegaram duas moças bem jovens, uma suíça e uma iraniana. Ainda fiquei conversando um pouquinho com elas. Mehrnaz, a iraniana, é uma figura muito interessante. Gostei muito de conhecê-la.
Vou dormir leve hoje. Amanhã retomo a caminhada e devo chegar a Astorga, a última cidade de maior porte antes de Santiago. Veremos como se comporta o pé. Te dou notícias.
Boa noite, Minha Irmã!
Beijos no coração,

Léia

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