15/10/15
Boa tarde, Niquinha!
Te escrevo de um lugar
mágico: o Albergue Verde. Estou sentada num balanço, em meio a um gramado, com
várias árvores de frutas ao redor, redes penduradas, mesinhas, cadeiras e
espriguiçadeiras. Reina uma paz grande e escuto um galo que canta de vez em
quando. O dono do albergue, Mincho, é uma pessoa muito especial. Todos os anos
ele passa os invernos na Índia. É um mestre de Yoga e pelo jeito de falar,
compartilha da visão de mundo Zen. A casinha onde está instalado o albergue,
que vejo por entre as folhagens das árvores, era um antigo galpão da fazenda de
seu pai. Há cinco anos ele reformou tudo e abriu esse albergue. Cheguei aqui
ontem, e fiquei tão encantada, que resolvi ficar mais um dia. Para repousar o
pé e o cuidar do espírito, mais uma vez. Daqui a pouco farei uma sessão de
massagem com um osteopata, que está trabalhando voluntariamente como hospitalero aqui no Albergue Verde. E às
seis da tarde farei minha segunda aula de Yoga. Fico tão agradecida por ter
tempo e condições de desfrutar dessas pérolas do Caminho!
Mas deixa eu voltar um
pouquinho ao dia de ontem e te contar como cheguei aqui. Dormi mal no Refugio
de Jesus por causa do frio. Acordei no meio da noite, sentindo frio, me
levantei e vesti mais camadas de roupa. Ainda bem que comprei mais umas duas
peças mais quentinhas num bazar chinês de León. O problema é que depois, mesmo
aquecida, não consegui mais pegar no sono. Tirei uns cochilos, até umas seis e
meia, me levantei e comecei a me organizar, ainda no escuro, recorrendo à minha
providencial lanterninha de cabeça. Tomei meu café e saí já com o dia claro.
Caminhei, a princípio,
no acostamento de uma estradinha vicinal, pouquíssimo movimentada. Ainda que
não seja tão aprazível caminhar no asfalto, pelo menos o entorno era bem
tranquilo. Pude andar ouvindo os pássaros e apreciando o contraste entre o céu
de um azul intenso e o amarelo das folhas das árvores à beira da estrada. Fui
meditando e rezando, como muito me agrada fazer pelas manhãs. A distância que
eu tinha a percorrer ontem era curta, então fui devagar e tranquila. Em certo
ponto, acabou o asfalto e o Caminho seguiu por uma estradinha de terra batida,
avermelhada, sempre com muitos seixos. Na entrada do pequeno povoado de
Villavante, um rapaz se aproximou de mim e começamos a conversar. Ele é
francês. Tinha uns olhos lindos, de um azul
profundo, desses que parece que você vai mergulhar neles se ficar
olhando por muito tempo.
Laurent fazia parte da
galera barulhenta da véspera, no Refugio de Jesus. Seus companheiros o estavam
esperando num barzinho bem no início de Villavante. Eles me convidaram para
sentar com eles. Era um grupo bem diverso, dois holandeses, um americano, uma
alemã e Laurent. Estavam caminhando juntos há alguns dias. Após os protocolos
iniciais de apresentação que já te descrevi, a conversa enveredou para
histórias de amor do Caminho. Um dos rapazes estava contando que um viúvo e uma
viúva do Canadá, que haviam estudado na mesma escola quando adolescentes, se
reencontraram no Caminho, quando voltaram ao Canadá engataram um namoro, e
decidiram abrir um albergue numa casa que estava a venda, em frente à qual um
companheiro de Caminho lhes havia tirado uma foto no dia do reencontro. E aqui
estão eles, levando esse albergue e vivendo em função do Caminho. Uma graça de
história, né?
Terminado o lanche,
partimos. O grupo logo se distanciou de mim, pois, como lhe disse, estava caminhando
devagar para poupar o pé. E assim fui caminhando pelo meio de extensos
milharais, com as folhagens já meio secas. Imagino que estejam prontos para a
colheita. E tome milharal!
Após cruzar uma
rodovia de tráfego intenso, cheguei a Puente, um pequeno apêndice de Hospital
de Órbigo, que fica logo adiante. Órbigo tem uma enorme ponte com arcos de
pedra. Diz que é uma ponte medieval, porém, a impressão é de que dos tempos
medievais devem restar uma que outra pedra, e muitas lendas. A ponte está toda
reformada. Nem por isso deixa de ser bonita. Apesar do que, o trecho que passa
por cima do rio é bem pequeno (e o que tem cara de mais antigo mesmo). É a
segunda pont que vejo que se estende generosamente em solo seco. Isso me deixou
curiosa. Vou ver se ainda encontro alguém que me explique a razão de tanta
ponte pra tão pouco rio.
Atravessei a Ponte do
Passo Honroso, sobre o rio Órbigo e logo avistei a torre da Igrejinha
(igualmente descaracterizada), que estava fechada. Uma das lendas dessa ponte é
que um nobre cavaleiro, apaixonadíssimo, para conquistar a atenção e a
admiração da amada, convocou um torneio, ao qual aocrreram bravos de toda a
Europa, enfrentou e derrotou mais de duzentos. Daí o apodo da ponte Passo
Honroso. A façanha, ao menos, deu resultado. Ele conseguiu se casar com a
amada.
Órbigo é uma cidade
sem grandes atrativos. São raras as casas de traços mais antigos. Fui seguindo
as indicações de placas e cheguei ao Albergue Verde, que tinha sido mutíssimo
recomendado por Marisa e Carlos (do Gaia). Eles falaram tanto desse lugar que
resolvi encurtar a caminhada do dia pra poder ficar aqui. Como ele fica meio
fora do centro, fui andando e pensando, espero que seja realmente um lugar
especial... A fachada prometia. A parede da casa está completamente coberta de
hera, um portãozinho simpático, com o nome do albergue acima, esculpido em uma
placa de ferro.
Na chegada, a primeira
diferença. A moça que me recebeu, uma húngara chamada Elga, me instalou na
minha cama e me disse que eu tomasse banho tranquila e quando estivesse
devidamente relaxada, retornasse à recepção para fazer o trâmite de apresentar
passaporte, carimbar a credencial e pagar! Assim eu fiz, já encantada com o
lugar. Tocava uma música ambiente bem suave, e pude sentir o perfume do incenso
recém apagado. Na sala, ao lado da mesa de refeições, um ambiente com almofadas
e tapetes no chão, de estilo indiano. O dono, Mincho, estava sentadinho numa
cadeira e me deu logo as boas vindas. É um sujeito de cabelos compridos e
barba, de olhar doce e sorriso acolhedor, aberto, genuíno.
Fiz um pequeno lanche
no jardim, esperando a ceia comunitária que haveria à noite. Escrevi um pouco e
às dezoito horas fui para a classe de Yoga, que é gratuita. Foi maravilhosa! Já
tinha feito algumas aulas de Yoga em diferentes ocasiões (inclusive na fazenda
Hare Krishna), e essa foi, sem dúvida, a melhor de todas. Foi uma hora e meia
de relaxamento para o corpo, a mente e o espírito. Terminei a aula com uma
sensação de leveza e um profundo sentimento de gratidão pelo presente que
estava recebendo por meio desse albergue e das pessoas que aqui estão. Quem deu
a aula foi Elga. Engraçado porque Elga, apesar de ter me recebido muito bem,
parece uma pessoa fechada, e não muito calorosa. Me surpreendeu como sua aula
foi boa.
Depois da aula,
subimos para a ceia. Outro presente! Antes de começarmos a comer, Mincho pegou
o violão e cantou duas músicas de agradecimento pela comida. Mincho fez uma paella vegetariana, com abobrinha,
pimentões, berinjela e couve-flor simplesmente divina! E tudo fresquinho, colhido
da horta orgânica que ele tem num terreno ao lado do jardim de onde eu te
escrevo. Também comemos uma salada incrível e bela, com romã e pétalas de
flores. Ah! Ainda tinha um húmus caseiro e umas sementes tostadas cujo nome esqueci.
De sobremesa, um bolo de chocolate integral, cujo perfume eu havia sentido à
tarde, enquanto cozinhava. Comemos à vontade, e todos os peregrinos estavam
maravilhados, comentando que aquela tinha sido a melhor refeição do Caminho,
até então.
Enquanto tomávamos
infusões digestivas, muito bem-vindas após tanta comida, Mincho falou um pouco
sobre meditação, sobre a importância de controlarmos a mente, de modo a
dirigirmos nossa atenção à fruição de todas as coisas que estão ao nosso redor,
para nosso deleite, do canto dos pássaros, ao sabor do bolo da sobremesa.
Sempre que conseguimos “calar” a mente e nos rendermos às nossas sensações no
momento presente, estamos meditando, disse ele. Eu tenho descoberto esse prazer
de viver no presente por meio da meditação. Ainda estou longe do ponto ideal de
viver no presente a todo instante, mas meditar tem me ajudado a estar mais
atenta ao que se passa comigo, a como me relaciono com o mundo ao meu redor.
Agora há pouco, enquanto escrevia uma carta de perdão no meu caderninho, uma
abelha tentava pousar na caneta. Parei a mão e fiquei olhando para ela. Pude
sentir a sensação causada pelo bater das suas levíssimas asas na minha mão.
Pode parecer banal
essa ideia de viver no Aqui e no Agora, porém, é um desafio, porque a mente da
gente está sempre nos projetando para o passado (com frequência lamentando algo que já passou
e que “perdemos”) ou para o futuro (onde ela nos faz acreditar que estão nossas
promessas de felicidade). Quando a gente consegue driblar a mente e estar
simplesmente PRESENTE, no momento que estamos vivendo, é como se a gente
estivesse usando uma lente de aumento, que nos permite experimentar todo tipo
de sensação com maior intensidade. E também fica bem mais fácil a gente se
libertar das preocupações, porque elas sempre estão relacionadas com o futuro. É
claro que a ideia é tentar se concentrar nas coisas boas do presente, e aí o
sentimento de gratidão é a ferramenta mais poderosa, pra nos ajudar a alcançar
um estado de paz e de leveza. Enfim, é um exercício nada fácil. Estou tentando progredir
nessa direção. Dá mais leveza.
Voltando a Mincho, ele
explicou ainda que o café da manhã estaria disposto na mesa na manhã seguinte,
que nos servíssemos à vontade, e que não havia hora para acordar! Outra coisa
maravilhosa! Toda a comida é oferecida em troca de qualquer doação. E ele
enfatizou, mostrando a cestinha de doações: Por
favor, só coloquem aqui o que vocês puderem dar com o coração. Eu quero abrir
isso amanhã e sentir o amor de vocês. É
nele que eu estou interessado.
Após o jantar, os
peregrinos foram se recolhendo, e eu fiquei conversando com Mincho, que é
realmente uma pessoa incrível. Ele manda abraços para você e todos lá em casa.
.......
Niquinha, interrompi a
carta para a minha sessão de massagem. Foi tão boa! Deu um alívio grande na
coluna e pude sentir o relaxamento da musculatura do pé também. Espero sentir
diferença quando caminhar amanhã. A massagem também funciona por doação. Sempre
me surpreendo e me encanto com essas pessoas que tão generosamente se doam aos
peregrinos! Como eu já te disse, para mim é a maneira mais intensa de sentir o
Amor de Deus.
Também fiz a aula de
Yoga. Hoje quem a deu foi Mincho. Foi uma sessão bem diferente, mas igualmente
linda. E bem leve, para iniciantes. As duas aulas foram muito distintas do que
eu conhecia como Yoga. Estou encantada. Decidida a incorporar Yoga à minha
rotina quando voltar ao Brasil. Dá uma sensação de leveza tão boa quando
termina a sessão!
Hoje, morreu a
cadelinha de MIncho. Ela estava muito doentinha e ele chamou o veterinário,
para pôr um fim ao sofrimento dela. Ele estava muito triste, e se emocionou ao
final da aula de Yoga. Mas sabe que mesmo triste, ele foi tão amoroso o dia
todo. E na hora do jantar, cantou e confraternizou com todos com a mesma doçura
e o mesmo sorriso franco e acolhedor de sempre. O jantar de hoje foi uma
deliciosa sopa de abobrinha, uma salada de lentilhas também muito gostosa, e
batata doce assada. Tudo muito gostoso e cheio de amor, o que faz toda a
diferença.
Quando terminou o
jantar e todos se recolheram, mais uma vez fiquei conversando com Mincho. Ele
me desenhou um mapa da Índia e me apontou os lugares mais interessantes para
conhecer. Conversamos também sobre a vida. Sinto que encontrei um amigo. Mais
uma pessoa que o Caminho me trouxe de presente e com quem, subitamente, estabeleci
uma conexão que sinto ser profunda. Mincho se recolheu mais ou menos quando chegaram
duas moças bem jovens, uma suíça e uma iraniana. Ainda fiquei conversando um pouquinho
com elas. Mehrnaz, a iraniana, é uma figura muito interessante. Gostei muito de
conhecê-la.
Vou dormir leve hoje.
Amanhã retomo a caminhada e devo chegar a Astorga, a última cidade de maior
porte antes de Santiago. Veremos como se comporta o pé. Te dou notícias.
Boa noite, Minha Irmã!
Beijos no coração,
Léia
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