18/4/15
D. acordou de péssimo humor, porque descobriu, na noite
passada, que a janela do quarto de L. estava quebrada. Na realidade, de algum
modo, ele quebrou a janela com um tiro. Só posso imaginar que estivesse
limpando a espingarda e ela disparou. Qualquer outra coisa me parece estupidez.
Em todo caso, D. ficou furiosa porque L. não disse nada. E ele estava se
programando para ir embora na segunda. Ao longo do dia, descubro que D.
confiscou alguns bens de L. na noite passada, quando descobriu a janela
quebrada, e que só irá devolvê-los quando ele tiver pago o conserto da janela.
L. não é má pessoa. Apenas muito jovem. Agiu irresponsavelmente. É no que
acredito, e é o que tento dizer a D., mas ela está nervosa demais para
considerar qualquer argumento. L. sai para tentar consertar a janela.
S., uma moça israelense chega na hora do almoço. D. vai buscá-la
na estação de ônibus. Tento dar as boas vindas a S. Vamos compartilhar o
quarto. S. está viajando pelo WWOOF. A pobre chega num péssimo momento.
Obviamente, não consegue entender o mau humor de D. e se sente mal com a
acolhida pouco calorosa. Saio com S. para dar uma volta e comer alguma coisa.
Vamos ao Chili´s. Cozinha tipicamente americana, mas bem decente. Conversamos
muito e nos entendemos super bem. S. tem 39 anos e está terminando seu doutorado
em Química. A seis meses de conclui-lo resolveu fazer algo semelhante ao que
estou fazendo, com a diferença de que seu período de viagem é mais curto, e ela
resolveu viajar apenas pelos Estados Unidos. Além disso, ela está trabalhando
apenas em fazendas. Ela ainda não sabe o que fará da vida quando voltar a
Israel e concluir seu doutorado. Sua família é de origem venezuelana, e seus
dois irmãos moram na Venezuela. Se mudaram pouco antes de Chávez ascender à
presidência. Ela me confirma que as coisas estão indo muitíssimo mal por lá.
Quando voltamos para casa, D. nos orienta a replantarmos
algumas das flores e plantas ornamentais que serão levadas para o Earth Festival. D. continua de péssimo
humor e S. fica cada vez mais chateada. Para completar, ela tem alergia a gato,
e a casa tem um bichano. S. está decidida a ir embora no dia seguinte. Vai tentar
achar algum trabalho em Nova Orleans. Falta pouco para ela voltar pra Israel.
Ela já está no fim da jornada. É muito bom o sentimento de conversar com alguém
que entende exatamente o que você está fazendo. Só espero que ao final da minha
jornada eu tenha um pouco mais de clareza sobre o rumo a ser dado à minha vida.
A noite chega e, após falar com papai, mamãe, Quel e Nica
pelo Skype (o que me deixa muuuuito feliz), eu vou cozinhar com D. Preparamos Shrimp Étoufée, um prato típico da
cozinha Criole. Quando o jantar está
quase pronto, algo surpreendente acontece. D. se irrita profundamente porque S.
deixou a janela e a porta do quarto abertas, e D. tem a casa permanentemente
climatizada, com o ar condicionado programado e controlado por termostato. D.
dá um piti. S. fica chateadíssima, com toda razão, e sobe para o quarto. Nos
sentamos para jantar, sem S. O que deveria ser um momento muito especial, acaba
se tornando um desastre. Comemos em silêncio e constrangidos. D. quer que S. vá
embora imediatamente. Tento argumentar com D. que já é noite, mas ela está
transtornada. Na realidade, D. está muito chateada com L., que a decepcionou
após conviver dois meses com ela, e está despejando parte de sua raiva e
frustração em S.
Após tão sorumbático jantar, eu e L. acompanhamos S. até a
estação de ônibus, e esperamos seu embarque, depois da meia-noite. Enquanto
esperamos o ônibus, conversamos sobre nossas experiências pessoais e nossas
viagens. S. tenta me convencer a deixar a casa de D. Me diz que aquela é sua quinta
experiência, e que eu deveria procurar um ambiente mais acolhedor, e pessoas
menos complicadas.
Tenho de concordar com ela que D. é mesmo uma pessoa
complicada. E que o ambiente da casa tem um peso. D. é uma mulher solitária e
judiada pela vida. Ninguém que perde um filho tão tragicamente pode ser leve.
S. não se conforma com minha determinação em ficar. Ela está voltando para a
fazenda de onde veio, e me convida para me juntar a ela. Diz que a proprietária
é uma pessoa simplesmente adorável. A instabilidade de humor de D. obviamente
me assusta, e a o convite de S. tem seu lado tentador. No entanto, meu coração
me diz que devo não apenas honrar minha palavra e ficar as duas semanas
prometidas, mas que preciso ter compaixão e solidariedade. Não posso esperar
que tudo seja maravilhoso nessa jornada. As dificuldades fazem parte do
aprendizado. Talvez sejam, inclusive, a parte mais importante. Não vim à procura
de flores, mas de sabedoria e crescimento.
Antes que S. embarque, trocamos telefones e combinamos de
nos encontrar no próximo final de semana, em Nova Orleans. Sinto que fiz uma
amizade.
Volto para casa triste com tudo que aconteceu a S. Foi tudo
muito absurdo e injusto com ela.
Desse dia tão estranho e tumultuado, ainda não sei bem que
lições importantes vou extrair. De imediato, penso em duas coisas práticas.
Falta de planejamento custa dinheiro. O pen drive de 64 G que comprei quando
saí com S. não comporta meus arquivos. Não teria gasto esse dinheiro se tivesse
me dado ao trabalho de verificar, precisamente, de quanto espaço eu
necessitava. A segunda lição é ainda mais importante: incorporar a ideia de que
preciso gastar o mínimo possível ao longo dessa jornada. Esse é o espírito de
L. e de S. Ambos evitam gastar qualquer dólar, a menos que seja realmente
necessário. Compreendo que o que me soaria como mesquinharia em outras
circunstâncias, para eles é uma estratégia de sobrevivência, pois a estrada é
longa, e não se sabe o que vai acontecer.
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