quinta-feira, 23 de abril de 2015

Dia 13: Um dia muito estranho

18/4/15

D. acordou de péssimo humor, porque descobriu, na noite passada, que a janela do quarto de L. estava quebrada. Na realidade, de algum modo, ele quebrou a janela com um tiro. Só posso imaginar que estivesse limpando a espingarda e ela disparou. Qualquer outra coisa me parece estupidez. Em todo caso, D. ficou furiosa porque L. não disse nada. E ele estava se programando para ir embora na segunda. Ao longo do dia, descubro que D. confiscou alguns bens de L. na noite passada, quando descobriu a janela quebrada, e que só irá devolvê-los quando ele tiver pago o conserto da janela. L. não é má pessoa. Apenas muito jovem. Agiu irresponsavelmente. É no que acredito, e é o que tento dizer a D., mas ela está nervosa demais para considerar qualquer argumento. L. sai para tentar consertar a janela.
S., uma moça israelense chega na hora do almoço. D. vai buscá-la na estação de ônibus. Tento dar as boas vindas a S. Vamos compartilhar o quarto. S. está viajando pelo WWOOF. A pobre chega num péssimo momento. Obviamente, não consegue entender o mau humor de D. e se sente mal com a acolhida pouco calorosa. Saio com S. para dar uma volta e comer alguma coisa. Vamos ao Chili´s. Cozinha tipicamente americana, mas bem decente. Conversamos muito e nos entendemos super bem. S. tem 39 anos e está terminando seu doutorado em Química. A seis meses de conclui-lo resolveu fazer algo semelhante ao que estou fazendo, com a diferença de que seu período de viagem é mais curto, e ela resolveu viajar apenas pelos Estados Unidos. Além disso, ela está trabalhando apenas em fazendas. Ela ainda não sabe o que fará da vida quando voltar a Israel e concluir seu doutorado. Sua família é de origem venezuelana, e seus dois irmãos moram na Venezuela. Se mudaram pouco antes de Chávez ascender à presidência. Ela me confirma que as coisas estão indo muitíssimo mal por lá.
Quando voltamos para casa, D. nos orienta a replantarmos algumas das flores e plantas ornamentais que serão levadas para o Earth Festival. D. continua de péssimo humor e S. fica cada vez mais chateada. Para completar, ela tem alergia a gato, e a casa tem um bichano. S. está decidida a ir embora no dia seguinte. Vai tentar achar algum trabalho em Nova Orleans. Falta pouco para ela voltar pra Israel. Ela já está no fim da jornada. É muito bom o sentimento de conversar com alguém que entende exatamente o que você está fazendo. Só espero que ao final da minha jornada eu tenha um pouco mais de clareza sobre o rumo a ser dado à minha vida.
A noite chega e, após falar com papai, mamãe, Quel e Nica pelo Skype (o que me deixa muuuuito feliz), eu vou cozinhar com D. Preparamos Shrimp Étoufée, um prato típico da cozinha Criole. Quando o jantar está quase pronto, algo surpreendente acontece. D. se irrita profundamente porque S. deixou a janela e a porta do quarto abertas, e D. tem a casa permanentemente climatizada, com o ar condicionado programado e controlado por termostato. D. dá um piti. S. fica chateadíssima, com toda razão, e sobe para o quarto. Nos sentamos para jantar, sem S. O que deveria ser um momento muito especial, acaba se tornando um desastre. Comemos em silêncio e constrangidos. D. quer que S. vá embora imediatamente. Tento argumentar com D. que já é noite, mas ela está transtornada. Na realidade, D. está muito chateada com L., que a decepcionou após conviver dois meses com ela, e está despejando parte de sua raiva e frustração em S.
Após tão sorumbático jantar, eu e L. acompanhamos S. até a estação de ônibus, e esperamos seu embarque, depois da meia-noite. Enquanto esperamos o ônibus, conversamos sobre nossas experiências pessoais e nossas viagens. S. tenta me convencer a deixar a casa de D. Me diz que aquela é sua quinta experiência, e que eu deveria procurar um ambiente mais acolhedor, e pessoas menos complicadas.
Tenho de concordar com ela que D. é mesmo uma pessoa complicada. E que o ambiente da casa tem um peso. D. é uma mulher solitária e judiada pela vida. Ninguém que perde um filho tão tragicamente pode ser leve. S. não se conforma com minha determinação em ficar. Ela está voltando para a fazenda de onde veio, e me convida para me juntar a ela. Diz que a proprietária é uma pessoa simplesmente adorável. A instabilidade de humor de D. obviamente me assusta, e a o convite de S. tem seu lado tentador. No entanto, meu coração me diz que devo não apenas honrar minha palavra e ficar as duas semanas prometidas, mas que preciso ter compaixão e solidariedade. Não posso esperar que tudo seja maravilhoso nessa jornada. As dificuldades fazem parte do aprendizado. Talvez sejam, inclusive, a parte mais importante. Não vim à procura de flores, mas de sabedoria e crescimento.
Antes que S. embarque, trocamos telefones e combinamos de nos encontrar no próximo final de semana, em Nova Orleans. Sinto que fiz uma amizade.
Volto para casa triste com tudo que aconteceu a S. Foi tudo muito absurdo e injusto com ela.

Desse dia tão estranho e tumultuado, ainda não sei bem que lições importantes vou extrair. De imediato, penso em duas coisas práticas. Falta de planejamento custa dinheiro. O pen drive de 64 G que comprei quando saí com S. não comporta meus arquivos. Não teria gasto esse dinheiro se tivesse me dado ao trabalho de verificar, precisamente, de quanto espaço eu necessitava. A segunda lição é ainda mais importante: incorporar a ideia de que preciso gastar o mínimo possível ao longo dessa jornada. Esse é o espírito de L. e de S. Ambos evitam gastar qualquer dólar, a menos que seja realmente necessário. Compreendo que o que me soaria como mesquinharia em outras circunstâncias, para eles é uma estratégia de sobrevivência, pois a estrada é longa, e não se sabe o que vai acontecer.

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