15/4/15
Viajando de trem desde ontem à tarde.
Sentada à mesinha onde escrevo, observo a paisagem composta
basicamente de árvores esguias, com folhagem esparsa. O verde claro de suas
folhas contrasta com o escuro de pinheiros que aparecem de vez em quando.
Algumas casas solitárias em meios a vastos gramados, um pequeno lago, um
riacho, uma vila à beira da estrada... inevitável comparar com as vilas de
beira de estrada do nosso Nordeste, com suas casinhas simples de alvenaria ou
de taipa, caiadas, baixinhas e humildes; casas meio que perdidas no meio da
paisagem, sugerindo pessoas esquecidas, também elas quase que perdidas nesse
mundo todo feito contra elas, para citar Clarice. A vila de beira de estrada
que vejo pela janela do trem que me leva a Nova Orleans, com suas casas e
edifícios de tijolo aparente, ou mesmo de madeira pintada, sugere uma imagem
oposta: ordenamento, afirmação da vontade humana, domínio do espaço, amparo.
O céu cinzento, desde ontem, destaca o verde das árvores,
que não precisa competir com o azul de dias ensolarados. Curiosamente, o
nublado do dia parece combinar com o doce balanço do trem. Há uma certa
melancolia nessa combinação. Não uma melancolia que entristece, mas uma que
favorece a introspecção. Estou curtindo bastante a viagem de trem, que me foi
inspirada por Gilberto Freyre. Ainda não chegamos ao Deep South, e anseio por ver essa paisagem social que tanto o
impressionou. Verdade que dormir numa cadeira de trem, por espaçosa que seja,
não é o melhor dos sonos, mas ainda assim me sinto repousada. Acabo de tomar
café com uma senhora de Nova Iorque, no restaurante do trem. Chama-se Sarah.
Dado que a viagem de trem é relativamente mais cara que a de avião, lhe
pergunto porque fez a opção de viajar por terra. Afinal, trata-se de um longo
percurso. Quase trinta horas entre Nova Iorque e Nova Orleans. Me responde que
não conseguiu vôo direto e sente muito a pressão nos ouvidos, na descida do
avião. Viaja de trem para evitar o desconforto que seria duplicado por uma
conexão.
O trem é antigo e não tem maiores confortos. Há uma área com
mesinhas onde se pode sentar para comer, escrever ou simplesmente mudar de
ambiente. Em longos intervalos há pausas extensas para que os passageiros
possam descer e caminhar um pouco. Os funcionários são bastante simpáticos. A
grande maioria é de negros. É curioso como o serviço público, nos Estados
Unidos, tem presença massiva de negros. Eles estão nos correios, no transporte
público, na segurança.
O processo de embarque na estação de trem me pareceu
bastante curioso. Aliás, há algumas coisas que impressionam nos Estados Unidos
pelo insuspeitado grau de desorganização e aparente precariedade. Assim se
passa com o metrô de Nova Iorque. Idem com o sistema de trens (Amtrak). A
pessoa chega à estação e não encontra nenhuma indicação clara de como a coisa
funciona. Você, então, se dirige ao guichê de informações e descobre que a
primeira providência é despachar a bagagem num guichê ao final do corredor.
Tomada essa providência, a pessoa volta ao guichê de informações e descobre que
precisa ficar observando um velho painel que pende do teto e se encontra
situado bem no meio da estação. Ali estão dispostos os nomes e horários dos
trens. Passageiros se aglomeram em volta do painel, esperando que apareça a
indicação do portão de embarque do seu trem, que pode estar a Leste ou a Oeste.
As indicações aparecem cerca de 15 ou 10 min antes da partida do trem. Isso
significa que quando o número do portão aparece no painel, provoca uma corrida
desesperada de passageiros, que se precipitam na direção indicada. Percebe-se
uma curiosa aflição no ar. Certamente um receio maio “atávico” de perder o
trem, já que se dispõe efetivamente de pouco tempo para embarcar.
Confesso que o ambiente da estação, o processo de embarque e
o próprio trem me provocaram essa estranha sensação de precariedade, muito
pouco condizente com os Estados Unidos do século XXI. Um curioso anacronismo,
mas com sabor de pitoresco para mim, que adoro esses anacronismos sociais.
Afinal, uma viagem de trem tem tudo a ver com isso. Aprecio a temporalidade do
trem, no seu movimento lento e compassado. Até o balanço do trem me agrada. À
noite, me deu a sensação de um movimento de ninar. Se não fosse pela minha
bursite, que me obrigou a ficar mudando de lado a noite toda, acho que teria
dormido horas a fio, sem despertar. Os assentos são largos, reclinam bem e o
apoio para as pernas sobe bastante. É possível encontrar uma posição relativamente
confortável para dormir.
Aviões têm tudo a ver com o frenesi e o ritmo acelerado da
vida contemporânea. São um meio de transporte para quem tem pressa de chegar.
Trens implicam uma outra temporalidade, um outro ritmo. Exigem paciência e
disposição para entregar-se à viagem e desfrutar o percurso. Como o Universo é
perfeito – quando há confiança e entrega --, sinto que essa viagem de trem está
acontecendo no momento perfeito. É o prelúdio de uma nova etapa dessa minha
travessia, e um importante estímulo para a desaceleração que pretendo alcançar
na minha vida.
A medida em que nos aproximamos do Sul, o céu vai abrindo e
pedaços de azul aparecem em meio às nuvens. Infelizmente, temos um acidente com
o trem. Uma pessoa cruzou a linha férrea e foi morta. Nos anunciam que
ficaremos parados por três ou quatro horas. Estamos no Mississipi e o acidente
aconteceu junto a uma área pantanosa. Da janela do trem observo as árvores
alagadas e avisto uma pequena tartaruga nadando.
Todos no trem estão consternados, obviamente. Rezo pela
pessoa acidentada, e me pergunto o que leva alguém a atravessar uma via férrea,
com um trem enorme e pesado vindo em sua direção...
Ficamos umas duas horas parados na linha férrea e chegamos a
Nova Orleans quase às dez da noite. Na estação, o senhor que me entrega minha
mala é mais um fã do Brasil. Assim como o motorista de táxi, etíope, que me
leva ao albergue, um ambiente super descolado, numa das casinhas de arquitetura
típica da cidade. Vejo pouca coisa no caminho, mas meu coração me diz que vou
adorar a Lousianna.
Dicas de viagem:
As passagens de trem podem ser compradas pela internet, no
site da Amtrak. Mas o trem é recomendável apenas para quem quer fazer uma viagem de trem, ou tem
problemas com avião. Na realidade, acaba sendo mais caro, especialmente se a
pessoa quiser uma cabine com cama. Achei a viagem entre Nova Iorque e
Washignton rápida, e imagino que o trem pode ser uma opção economicamente interessante
para essas viagens mais curtas, em que a ponte área muito concorrida pode ser
bem cara.
Quem tiver bagagem para despachar deve chegar 45 minutos
antes. Considerando-se o trânsito de Manhattan, convém sair “de casa” umas duas
horas antes. Se a pessoa tiver uma bagagem pequena, vale a pena pegar o metrô.
A estação 34St. é exatamente a mesma da Amtrak.
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