quinta-feira, 16 de abril de 2015

Dia 10: De Nova Iorque a Nova Orleans, no Crescents

15/4/15

Viajando de trem desde ontem à tarde.
Sentada à mesinha onde escrevo, observo a paisagem composta basicamente de árvores esguias, com folhagem esparsa. O verde claro de suas folhas contrasta com o escuro de pinheiros que aparecem de vez em quando. Algumas casas solitárias em meios a vastos gramados, um pequeno lago, um riacho, uma vila à beira da estrada... inevitável comparar com as vilas de beira de estrada do nosso Nordeste, com suas casinhas simples de alvenaria ou de taipa, caiadas, baixinhas e humildes; casas meio que perdidas no meio da paisagem, sugerindo pessoas esquecidas, também elas quase que perdidas nesse mundo todo feito contra elas, para citar Clarice. A vila de beira de estrada que vejo pela janela do trem que me leva a Nova Orleans, com suas casas e edifícios de tijolo aparente, ou mesmo de madeira pintada, sugere uma imagem oposta: ordenamento, afirmação da vontade humana, domínio do espaço, amparo.
O céu cinzento, desde ontem, destaca o verde das árvores, que não precisa competir com o azul de dias ensolarados. Curiosamente, o nublado do dia parece combinar com o doce balanço do trem. Há uma certa melancolia nessa combinação. Não uma melancolia que entristece, mas uma que favorece a introspecção. Estou curtindo bastante a viagem de trem, que me foi inspirada por Gilberto Freyre. Ainda não chegamos ao Deep South, e anseio por ver essa paisagem social que tanto o impressionou. Verdade que dormir numa cadeira de trem, por espaçosa que seja, não é o melhor dos sonos, mas ainda assim me sinto repousada. Acabo de tomar café com uma senhora de Nova Iorque, no restaurante do trem. Chama-se Sarah. Dado que a viagem de trem é relativamente mais cara que a de avião, lhe pergunto porque fez a opção de viajar por terra. Afinal, trata-se de um longo percurso. Quase trinta horas entre Nova Iorque e Nova Orleans. Me responde que não conseguiu vôo direto e sente muito a pressão nos ouvidos, na descida do avião. Viaja de trem para evitar o desconforto que seria duplicado por uma conexão.
O trem é antigo e não tem maiores confortos. Há uma área com mesinhas onde se pode sentar para comer, escrever ou simplesmente mudar de ambiente. Em longos intervalos há pausas extensas para que os passageiros possam descer e caminhar um pouco. Os funcionários são bastante simpáticos. A grande maioria é de negros. É curioso como o serviço público, nos Estados Unidos, tem presença massiva de negros. Eles estão nos correios, no transporte público, na segurança.
O processo de embarque na estação de trem me pareceu bastante curioso. Aliás, há algumas coisas que impressionam nos Estados Unidos pelo insuspeitado grau de desorganização e aparente precariedade. Assim se passa com o metrô de Nova Iorque. Idem com o sistema de trens (Amtrak). A pessoa chega à estação e não encontra nenhuma indicação clara de como a coisa funciona. Você, então, se dirige ao guichê de informações e descobre que a primeira providência é despachar a bagagem num guichê ao final do corredor. Tomada essa providência, a pessoa volta ao guichê de informações e descobre que precisa ficar observando um velho painel que pende do teto e se encontra situado bem no meio da estação. Ali estão dispostos os nomes e horários dos trens. Passageiros se aglomeram em volta do painel, esperando que apareça a indicação do portão de embarque do seu trem, que pode estar a Leste ou a Oeste. As indicações aparecem cerca de 15 ou 10 min antes da partida do trem. Isso significa que quando o número do portão aparece no painel, provoca uma corrida desesperada de passageiros, que se precipitam na direção indicada. Percebe-se uma curiosa aflição no ar. Certamente um receio maio “atávico” de perder o trem, já que se dispõe efetivamente de pouco tempo para embarcar.
Confesso que o ambiente da estação, o processo de embarque e o próprio trem me provocaram essa estranha sensação de precariedade, muito pouco condizente com os Estados Unidos do século XXI. Um curioso anacronismo, mas com sabor de pitoresco para mim, que adoro esses anacronismos sociais. Afinal, uma viagem de trem tem tudo a ver com isso. Aprecio a temporalidade do trem, no seu movimento lento e compassado. Até o balanço do trem me agrada. À noite, me deu a sensação de um movimento de ninar. Se não fosse pela minha bursite, que me obrigou a ficar mudando de lado a noite toda, acho que teria dormido horas a fio, sem despertar. Os assentos são largos, reclinam bem e o apoio para as pernas sobe bastante. É possível encontrar uma posição relativamente confortável para dormir.
Aviões têm tudo a ver com o frenesi e o ritmo acelerado da vida contemporânea. São um meio de transporte para quem tem pressa de chegar. Trens implicam uma outra temporalidade, um outro ritmo. Exigem paciência e disposição para entregar-se à viagem e desfrutar o percurso. Como o Universo é perfeito – quando há confiança e entrega --, sinto que essa viagem de trem está acontecendo no momento perfeito. É o prelúdio de uma nova etapa dessa minha travessia, e um importante estímulo para a desaceleração que pretendo alcançar na minha vida.
A medida em que nos aproximamos do Sul, o céu vai abrindo e pedaços de azul aparecem em meio às nuvens. Infelizmente, temos um acidente com o trem. Uma pessoa cruzou a linha férrea e foi morta. Nos anunciam que ficaremos parados por três ou quatro horas. Estamos no Mississipi e o acidente aconteceu junto a uma área pantanosa. Da janela do trem observo as árvores alagadas e avisto uma pequena tartaruga nadando.
Todos no trem estão consternados, obviamente. Rezo pela pessoa acidentada, e me pergunto o que leva alguém a atravessar uma via férrea, com um trem enorme e pesado vindo em sua direção...
Ficamos umas duas horas parados na linha férrea e chegamos a Nova Orleans quase às dez da noite. Na estação, o senhor que me entrega minha mala é mais um fã do Brasil. Assim como o motorista de táxi, etíope, que me leva ao albergue, um ambiente super descolado, numa das casinhas de arquitetura típica da cidade. Vejo pouca coisa no caminho, mas meu coração me diz que vou adorar a Lousianna.


Dicas de viagem:
As passagens de trem podem ser compradas pela internet, no site da Amtrak. Mas o trem é recomendável apenas para quem quer fazer uma viagem de trem, ou tem problemas com avião. Na realidade, acaba sendo mais caro, especialmente se a pessoa quiser uma cabine com cama. Achei a viagem entre Nova Iorque e Washignton rápida, e imagino que o trem pode ser uma opção economicamente interessante para essas viagens mais curtas, em que a ponte área muito concorrida pode ser bem cara.
Quem tiver bagagem para despachar deve chegar 45 minutos antes. Considerando-se o trânsito de Manhattan, convém sair “de casa” umas duas horas antes. Se a pessoa tiver uma bagagem pequena, vale a pena pegar o metrô. A estação 34St. é exatamente a mesma da Amtrak.


Nenhum comentário:

Postar um comentário